Privatizando os lucros públicos
Além de aumentar as tarifas e
desmontar um importante braço logístico do Estado que diminui a desigualdade
regional atendendo todos os municípios do país entregando material didático e
campanhas sanitárias, a privatização dos Correios entrega ao setor privado uma
das estatais mais lucrativas do Brasil - que, só em 2020, lucrou R$ 1,53
bilhão, sendo a empresa pública com um dos melhores retornos à União
Camila de Caso,
CartaMaior
Jair
Bolsonaro tenta manter seu cambaleante governo entregando ao mercado financeiro
a agenda econômica liberal privatista e a cada novo escândalo o preço do apoio
do chamado Centrão e da burguesia fica mais alto. Não estamos mais na década de
90, não se pode mais entregar as empresas públicas a preço de banana chamando
de privatização. O nacionalismo da direita não permite.
Assim como o capitalismo se desenvolveu e se
reciclou, os seus jargões também o fizeram. Agora abrimos processos de
capitalização, velho eufemismo usado pelo atual governo na privatização da
Eletrobras, ou de concessão à iniciativa privada sem prazo de retorno à União
estabelecido, como foi utilizado para a entrega dos Correios. Nada do que
acontece com a sociedade brasileira parece chocar os agentes do mercado
financeiro desde que o calendário de privatização avance, desde que se entregue
o monopólio do braço logístico estatal para se tornar monopólio privado.
Ao pensar nos Correios, nos vem a velha e familiar
imagem dos carteiros. Apesar de cumprir uma função importante na entrega de
cartas e encomendas em todo o Brasil e que, diga-se de passagem, aumentou este
serviço ao invés de diminuir com o avanço do comércio eletrônico, e mais
recentemente da pandemia. Os Correios cumprem função fundamental de integração
do território brasileiro.
Contra a desigualdade regional
O correio público acaba por ser um importante
agente de integração territorial e de superação das desigualdades regionais,
cuja máxima expressão de capilaridade é a presença de agências próprias em
todos os municípios brasileiros, que somam quase 7 mil unidades de postagens e
mais 9.196 unidades de distribuição. O correio público, para além de suas
funções tradicionais, cumpre um papel importante como um braço logístico do
Estado ao integrar todos os municípios numa mesma rede de circulação.
Sua capilaridade e infraestrutura permitem também
participar ativamente como operador logístico de programas sociais para atingir
os lugares e a população mais pobre do país.
A promulgação das resoluções normativas 2640 (de
agosto de 1999) e 2707 (de maio de 2000) do Banco Central, instituindo a figura
do “correspondente bancário” no cenário nacional foi o marco inicial que
permitiu a criação da marca Banco Postal, autorizando aos bancos utilizarem as
agências dos Correios na prestação de serviços bancários básicos à população.
Essa medida foi de suma importância para levar os serviços bancários a
municípios e territórios que não eram atraentes para a abertura de agências
bancárias tradicionais.
É a partir desta capilaridade territorial que toda
a população brasileira tem acesso a toneladas de material didático como é o
exemplo da maior operação de distribuição de livros didáticos do mundo
executada em parceria com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
(FNDE). Não só isso, o próprio processo eleitoral só é possível de ser apurado
com a agilidade demonstrada desde 1996 pelo processo logístico e interligado
que os Correios fazem.
No âmbito das políticas nacionais de saúde, os
Correios participam da distribuição de vários materiais, desde cartazes das
campanhas do Ministério da Saúde aos postos e hospitais até pequenos
equipamentos, materiais cirúrgicos etc. Na complexa etapa da distribuição do
circuito espacial produtivo da vacina, muitas delas só conseguem chegar às
pequenas cidades, vilas e povoados por meio de um transporte especial
providenciado pelos Correios.
Estranha urgência
No momento de pandemia decorrente da Covid-19,
momento em que mais precisamos aumentar a velocidade de vacinação da população,
é adequado vender o principal braço logístico brasileiro?
A inexplicável urgência na tramitação do Projeto
de Lei nº 591/21 que privatiza os Correios esbarra ainda em dispositivos
inconstitucionais. Já de início a Constituição é afrontada com a alteração do
serviço postal para atividade econômica e não mais como serviço público. Só por
isso, não faria sentido sequer a existência desse projeto, que, no meio de uma
pandemia, recebeu prioridade na Câmara dos Deputados. Mas os problemas não
param aí.
A quebra do monopólio postal afetará seriamente um
quadro de sustentabilidade que tem permitido aos brasileiros pagar uma das
menores tarifas postais do mundo. Hoje os Correios arcam com os custos da
universalização, ou seja, com toda a infraestrutura necessária para levar o
serviço postal a todo o território nacional. Havendo outros operadores atuando
com os serviços de correspondência, que certamente focarão sua atuação nos
centros mais desenvolvidos e com maior demanda, o que restará a ser coberto
pelo operador responsável pelas regiões mais remotas será extremamente deficitário.
Os Correios calculam que o custo anual da universalização chega a R$ 6 bilhões.
O resultado disso será a velha fórmula de sempre: mais impostos ou tarifas
maiores para os brasileiros. Ou seja, vamos repetir o erro da Eletrobrás que
menos de 1 mês depois da privatização já tínhamos anúncios de aumento da conta
de energia.
O governo Bolsonaro chegou a usar dinheiro público
em campanhas contra os Correios para criar uma fake news da necessidade de
privatização de uma empresa pública eficiente e lucrativa. Em 2020, os Correios
tiveram lucro líquido de R$ 1,53 bilhão. O resultado superou o de 2019, de R$
102 milhões.
Os últimos 4 anos seguidos de lucro repetem o
histórico dos últimos 20. Entre 2001 e 2020, foram 16 anos de lucro. No total,
a empresa acumula resultado líquido positivo de R$ 12,4 milhões e repassou R$ 9
bilhões em dividendos. Os Correios tiveram o terceiro melhor desempenho no
retorno de investimento sobre o patrimônio líquido, ou seja, de repasses de
dividendos à União segundo o último Boletim das Participações Societárias,
devolvendo 69,5% dos valores investidos, à frente da Caixa Econômica (37%), do
Banco do Brasil (18,1%), do BNDES (16,9%), da Eletrobras (15,1%) e da Petrobras
913,6%).
A entrega dos serviços postais é o início do desmonte
do principal braço logístico estatal. A universalidade do serviço de correio, a
distribuição dos fixos postais, os fluxos regionais de correspondências, as
funções desempenhadas pelos Correios (não somente postal, mas de serviços
financeiros, comerciais e de logística de Estado), sua relevância histórica
para o país, sua importância econômica, política e social convidam para uma
imperiosa defesa de seu caráter público.
O que está em jogo é inclusive como faremos o
processo de reconstrução do país. O governo vendeu os serviços postais, mas o
mercado comprou o fim das políticas públicas.
Camila
de Caso é mestranda em Desenvolvimento Econômico no IE/Unicamp.
*Publicado
originalmente em 'Jacobin'
.
Veja: Quem avisa que vai melar o jogo com tanta
antecedência bom sujeito não é https://bit.ly/2TUCwlA
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