23 agosto 2021

Dor da saudade

A vida finda
Melka Pinto*

Vivo hoje o 7° dia da partida do meu pai dessa vida, perdi a pessoa que mais amava nesse mundo (até minha filha chegar). Foi como se tivessem arrancado um pedaço do meu corpo, dói tanto, morrer dói nos outros. Não importa as circunstâncias, o tempo, a forma, ninguém quer perder quem ama. E ainda que ele vivesse dizendo "eu já posso morrer" se referindo a nossa condição material: ele aposentado, deixaria a pensão pra minha mãe, eu enfermeira concursada, meu irmão engenheiro, uma neta que ele sempre me pediu, ele não podia morrer. Eu não queria perdê-lo por nada nesse mundo. 

Na segunda passada, 16 de agosto de 2021 perto das 19h recebo a ligação da minha mãe aos prantos, "beta, acho que teu pai tá morrendo" e eu morri um pouquinho ali também, nunca uma viagem pra Itamaracá foi tão longa, fiz promessas pra Deus e pra Nossa Senhora da Conceição. Mas não tinha mais promessa que desse jeito, meu pai tinha morrido. Partiu de forma relativamente breve, com alguma angústia de uma insuficiência respiratória aguda seguida de parada cardiorrespiratória irreversível, não sei o quanto doeu e ele sofreu, mas peço a Deus que tenha sido menos que meu parto, espero que tenha sido realmente rápido, que ele não tenha sofrido quase nada, pois era como prevíamos que poderia ser sua morte, devido ao histórico familiar e pessoal de dois infartos anteriores e a pressão alta.

É de família partir assim devido a uma herança de defeito no coração, ele sempre me contava do pai dele, meu avô comunista que nunca conheci, meu pai contava que ele morreu depois de ir se deitar e ninguém viu, partiu em silêncio. Isso de saber que ele não ficou hospitalizado em processo de degradação e que foi "rápido" me conforta um pouco, apesar de claro achar que mais cuidado com a saúde permitiriam mais anos aqui com a gente, minha mãe falava tanto, em abril mandei textão pra ele falando da tosse, de exames de PSA e de ir num cardiologista, mas ele não queria se cuidar. Mas quem vai saber se isso nos daria mais tempo aqui com ele? Sei lá, nesses últimos dias inclusive esqueci que meio milhão de brasileiros também morreram. Esqueci que a pandemia existe.

Meu pai sobrevivia ileso a esses tempos atuais de novo coronavírus e de bolsonarismo, cuidou da minha filha junto com minha mãe por três meses em 2020 para eu trabalhar na linha de frente e estava vacinado com as duas doses, a primeira delas fui eu quem apliquei, nesse dia enquanto ele esperava a vez dele, me olhava todo orgulhoso vendo eu vacinar outras pessoas. O fato é que meu pai morreu e como já falei, era a pessoa que eu mais amava nessa vida. Ele me compreendia, me estimulava a ser o que eu quisesse, me orientava, me cuidava, me protegia.

Fui ler sobre luto, apareceu uma matéria no meu Google notícias devido a morte recente de Tarcísio Meira, lá uma psicóloga dizia que a parte boa da morte, ou positiva era que quem fica cria consciência da finitude da vida. A vida é finda. Ela acaba. A gente não sabe quando vai. Pode ser amanhã, ou em 40 anos. Mas ela acaba. Não deixe pendências. E quando chega ao fim o que fica é o que a gente fez até o coração ter parado de bater, o que fica na memória de quem permanece. Meu pai deixou um legado de amor, de cuidado, de coragem, de honestidade, de honra, de superação, de resistência. Mas o luto, ao menos nesses primeiros sete dias pra mim é sentir a dor de não ter mais meu pai comigo pra ser a primeira ligação de qualquer coisa importante na minha vida, ou de lembrar de como eu ficava ansiosa quando era criança esperando ele chegar do trabalho e corria ao encontro dele só de ouvir o barulho da chave.

Estive com ele no final de semana que antecedeu sua partida na segunda-feira, mostrei minha dissertação coisa que nunca tinha feito desde que comecei a escrevê-la, falei da importância profissional do mestrado pra mim, da minha pesquisa e da minha vontade de dar aula, ele preparou um camarão pra mim, chamei ele pra assistir Bacurau, mas ele não quis, devia ter insistido, ninguém pode morrer sem assistir esse filme e meu maior alívio é ter uma semana antes agradecido pela sua vida e por tudo que ele me fez ser, coisa que fazia com alguma frequência, pois era o que ele representava pra mim, a gratidão de tudo que eu sou.

Meu pai não morreu, virou poesia.

*Enfermeira, mestranda em Saúde Pública pela UFPE, ex-presidente da União dos Estudantes de Pernambuco-UEP

 .Veja: A poética ousada e cativante de Joana Côrtes https://bit.ly/3xdnKW8

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