18 agosto 2021

Inflação contra quem?

Bolsonaro faz explodir a carestia, diz economista

Hora do Povo

 

O economista Nilson Araújo de Souza, ao analisar a explosão da inflação, afirmou que está provocando um forte aumento no preço dos alimentos e “que transtorna a economia e o bolso dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros não é de demanda, mas resulta de um choque de oferta”. Em entrevista ao HP, o professor afirma que, diante da pressão inflacionária que ressurgiu no segundo trimestre de 2020, o governo Bolsonaro “em lugar de formar os estoques reguladores no primeiro semestre do ano passado para “desovar” na entressafra do segundo semestre, deixou a produção escapar para o exterior, reduzindo sua oferta no mercado interno”.

HP: NA SUA OPINIÃO A INFLAÇÃO QUE VOLTOU A ASSOLAR O PAÍS ESTÁ SENDO CAUSADA POR AQUECIMENTO DA DEMANDA?

NILSON ARAÚJO DE SOUZA – A pressão inflacionária ressurgiu no segundo semestre do ano passado. Começou com o forte aumento dos preços dos alimentos: de janeiro a outubro, o preço do arroz aumentou 51,72%, o de óleo de soja 65,08%, o do leite longa vida 32,75%. Analisei esse fato em entrevista ao HP na época. O ultraneoliberalismo da equipe de Guedes rapidamente elegeu o culpado: teria sido o aumento da demanda causado pelo auxílio emergencial. E já se apressou a pregar o aumento dos juros para derrubar a demanda. Mas o problema não estava do lado da demanda. Estava do lado da oferta. Tratava-se de um choque de oferta. A razão básica é que, em lugar de formar os estoques reguladores no primeiro semestre do ano passado para “desovar” na entressafra do segundo semestre, o governo deixou a produção escapar para o exterior, reduzindo sua oferta no mercado interno.

A raiz do problema está na combinação entre o ultraneoliberalismo doentio, ou seja, a cegueira ideológica, e a irresponsabilidade da equipe de Guedes. Ao professar que cabe ao mercado – isto é, os cartéis – regular a produção, demitindo o Estado de cumprir seu papel nessa área, desmontou irresponsavelmente a política de estoques reguladores, que, desde os anos de 1960, vem regulando a oferta de alimentos no Brasil. Através dessa política, o governo garantia a compra antecipada de produtos agrícolas com o objetivo de manter a renda do agricultor e incentivar a produção e, no período de entressafra, “desovava” os estoques entregando os produtos à rede de comercialização a fim de evitar a elevação dos preços.

É, portanto, uma política que protege simultaneamente a renda do produtor e o consumidor. Essa política, que começou a ser desmontada pelo governo Temer, foi simplesmente destruída pela equipe de Guedes, a qual chegou, inclusive, a fechar armazéns da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). E assim, os estoques públicos de alimentos no Brasil no ano passado haviam desabado em 96% em relação a dez anos atrás. Nesse quadro, em lugar de formar estoques, como seria natural, o governo simplesmente liberou a farra exportacionista (de janeiro a agosto do ano passado, em plena pandemia, as exportações de arroz aumentaram 169,4% em termos físicos).

Para agravar a situação, os preços das chamadas commodities se elevaram no mercado internacional: o índice que mede a evolução dos preços de commodities agrícolas, minerais e de energia aumentou 66% nos 12 meses até março deste ano; no primeiro trimestre deste ano, o aumento foi de cerca de 25%. Mais que isso, os preços aumentaram não apenas em dólares, mas também em reais, em decorrência da desvalorização cambial: de janeiro de 2020 a março de 2021, o dólar se valorizou em relação ao real em 34%; depois, baixou um pouco, mas manteve-se elevado. O exemplo dos combustíveis é notável: o preço está, na prática, dolarizado, pois varia com a variação do dólar.

E por que o Brasil, grande produtor e exportador de alimentos, tem que vender seus produtos internamente pelos preços internacionais? Não existe nada de “natural” nisso, a não ser o fato de que o mercado internacional de alimentos é controlado pelas transnacionais dos alimentos, as quais determinam o preço em todos os mercados. Mas isso, certamente, poderia ser coibido por governos soberanos que colocassem em primeiro lugar a soberania e a segurança alimentar de seu povo. E o Brasil tem experiência nessa questão com a política de estoques reguladores, mas, como vimos, em lugar de formar e guardar esses estoques para o período de entressafra, a equipe de Guedes simplesmente os pulverizou.

Para reequilibrar o mercado de alimentos e conter a pressão sobre os preços, o governo poderia ter aprendido com a experiência desastrosa do ano passado e aproveitado a safra deste ano para formar os estoques reguladores. Mas não. Manteve a mesma política burra e irresponsável do ano passado. Pior ainda, a inflação, nascida no mercado de alimentos, já contaminou outros setores e se espalhou para o resto da economia. A forma inicial de contaminação ocorreu através de um perverso “indexador”, o Índice Geral de Preços (IGP-M), que reflete mais diretamente a variação dos preços das commodities e sua transformação de dólar em real, e serve de referência para a correção de aluguéis, mas termina repercutindo também nas tarifas e preços de bens e serviços públicos e outros bens e serviços cartelizados.

Na verdade, é como se a economia fosse dolarizada. No IGP-M, o principal componente (60%) é o Índice de Preços ao Produtor e foi exatamente esse índice que disparou com a disparada do preço em dólar e mais ainda em real, devido à sua desvalorização, dos preços das commodities. Nos últimos 12 meses terminados em julho último, o IGP-M aumentou em 33,83% e o IPA em 44,26%; já estavam elevados no ano passado: puxado pelo IPA (34,16%), o IGP-M atingiu 24,52% nos últimos 12 meses até novembro de 2020. Esse aumento de preços do produtor, além de repercutir o aumento do preço dos alimentos, recebe o impacto da desvalorização do real e da desorganização da cadeia produtiva: por exemplo, pesquisa realizada entre industriais indicava no começo do ano que 78% deles estão tendo dificuldade com o fornecimento de insumos e matérias primas.

Inicialmente, essa disparada dos preços do produtor (diga-se matérias primas, insumos intermediários, semielaborados) não repercutiu tanto nos bens industriais destinados ao consumo final. Devido à restrição da demanda e à capacidade ociosa, a indústria estava absorvendo esse aumento de custo; por isso, o IPCA, que mede a variação do preço ao consumidor, estava relativamente baixo: foi de 4,52%% no acumulado do ano passado. Mas já começou a repercutir: nos últimos 12 meses até julho, o acumulado foi de 8,99%. Isso é o que se chama de “inércia” inflacionária. Significa, no fundo, que o governo, em lugar de atacar a origem e a correia de transmissão da inflação, permanece inerte, de braços cruzados. E, quando faz alguma coisa, age no sentido de reforçar essa transmissão, criando ou legitimando indexadores. Mas a inflação não apenas se reproduz, acelera. Essa aceleração se deve à cartelização da economia. Os cartéis, pelo seu poder de monopólio e como forma de manter seu superlucro, reajustam antecipadamente os preços que, segundo sua “expectativa”, tenderiam a ser praticados no futuro.

HP: A MEDIDA TOMADA PELO BANCO CENTRAL DE ELEVAR OS JUROS VAI RESOLVER?

NILSON ARAÚJO DE SOUZA – A taxa básica de juros, a Selic, que estava em 2% ao ano, já chegou a 5,25% e os representantes do mercado financeiro ouvidos pelo Banco Central na pesquisa Focus já projetam 7,25% para final do ano. A ortodoxia monetarista costuma usar a elevação da taxa de juros como instrumento para combater a inflação partindo da premissa de que a inflação seria produto da pressão da demanda sobre a oferta. Os neoliberais, monetaristas de hoje, como arautos do tripé macroeconômico, também usam a taxa de juros.

Ocorre que, como demonstramos antes, a atual inflação que transtorna a economia e o bolso dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros não é de demanda, mas resulta de um choque de oferta. Quando a inflação é de demanda, a terapia dos juros altos até consegue conter o processo inflacionário, mas à custa de uma recessão e mais desemprego, à medida que desestimula a atividade produtiva – o empresário, além de evitar tomar dinheiro emprestado para financiar a produção, aplica o rico dinheirinho no mercado financeiro – e sacrifica as finanças públicas, inviabilizando o investimento público. Se se trata de um choque de oferta, o buraco é mais embaixo, bem mais embaixo. A terapia é outra.

HP: EM SUA OPINIÃOQUE MEDIDAS DEVEM SER TOMADAS PARA ENFRENTAR ESSA SITUAÇÃO?

NILSON ARAÚJO DE SOUZA – Como se trata de choque de oferta, tem que atacar pelo lado da oferta. Há medidas emergenciais para aumentar a oferta, como o bloqueio da exportação dos produtos mais sensíveis, como fizeram a Índia e o Vietnã em 2020. O governo não tem estoques reguladores, mas as tradings das transnacionais têm. Ao mesmo tempo, retomar a política de estoques reguladores para a próxima safra, que começa a ser colhida no próximo mês de fevereiro. Mas, simultaneamente, incentivar com crédito subsidiado, política de preços mínimos e aquisição antecipada dos alimentos oriundos da pequena produção voltada para o mercado interno, que está sendo esmagada pelo agronegócio.

Mas, como a inflação já se generalizou, usando o dólar e consequentemente o IGP-M como correia de transmissão e os cartéis como aceleradores, tem que quebrar essa cadeia em setores fundamentais da economia, particularmente em áreas cartelizadas. Simultaneamente, deve-se deflagrar um programa econômico que, ao retomar a produção de maneira sustentada, amplie a oferta de bens e serviços. Mas, como está sendo feito nos principais países do mundo, dos EUA à China, isso implicaria em usar o Estado e, consequentemente, o investimento público como alavanca do desenvolvimento, e o mercado interno, alavancado pelo salário, como prioritário.

Mas aí já é outra conversa. Desse governo mentecapto que aí está, orientado na área econômica pelo ultraneoliberalismo de Guedes, que só enxerga o mercado, isto é, os monopólios como reguladores da economia, não se pode esperar nada diferente do que vem sendo feito. Aliás, o Brasil é um dos poucos países do mundo que mantém esse arremedo de política econômica.

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