Bolsonaro
faz explodir a carestia, diz economista
Hora do Povo
O
economista Nilson Araújo de Souza, ao analisar a explosão da inflação, afirmou
que está provocando um forte aumento no preço dos alimentos e “que transtorna a
economia e o bolso dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros não é de
demanda, mas resulta de um choque de oferta”. Em entrevista ao HP, o professor
afirma que, diante da pressão inflacionária que ressurgiu no segundo trimestre
de 2020, o governo Bolsonaro “em lugar de formar os estoques reguladores no
primeiro semestre do ano passado para “desovar” na entressafra do segundo
semestre, deixou a produção escapar para o exterior, reduzindo sua oferta no
mercado interno”.
HP: NA SUA OPINIÃO A
INFLAÇÃO QUE VOLTOU A ASSOLAR O PAÍS ESTÁ SENDO CAUSADA POR AQUECIMENTO DA
DEMANDA?
NILSON ARAÚJO DE SOUZA – A pressão inflacionária ressurgiu
no segundo semestre do ano passado. Começou com o forte aumento dos preços dos
alimentos: de janeiro a outubro, o preço do arroz aumentou 51,72%, o de óleo de
soja 65,08%, o do leite longa vida 32,75%. Analisei esse fato em entrevista ao
HP na época. O ultraneoliberalismo da equipe de Guedes rapidamente elegeu o
culpado: teria sido o aumento da demanda causado pelo auxílio emergencial. E já
se apressou a pregar o aumento dos juros para derrubar a demanda. Mas o
problema não estava do lado da demanda. Estava do lado da oferta. Tratava-se de
um choque de oferta. A razão básica é que, em lugar de formar os estoques
reguladores no primeiro semestre do ano passado para “desovar” na entressafra
do segundo semestre, o governo deixou a produção escapar para o exterior,
reduzindo sua oferta no mercado interno.
A
raiz do problema está na combinação entre o ultraneoliberalismo doentio, ou
seja, a cegueira ideológica, e a irresponsabilidade da equipe de Guedes. Ao
professar que cabe ao mercado – isto é, os cartéis – regular a produção,
demitindo o Estado de cumprir seu papel nessa área, desmontou
irresponsavelmente a política de estoques reguladores, que, desde os anos de
1960, vem regulando a oferta de alimentos no Brasil. Através dessa política, o
governo garantia a compra antecipada de produtos agrícolas com o objetivo de
manter a renda do agricultor e incentivar a produção e, no período de
entressafra, “desovava” os estoques entregando os produtos à rede de
comercialização a fim de evitar a elevação dos preços.
É,
portanto, uma política que protege simultaneamente a renda do produtor e o
consumidor. Essa política, que começou a ser desmontada pelo governo Temer, foi
simplesmente destruída pela equipe de Guedes, a qual chegou, inclusive, a
fechar armazéns da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). E assim, os
estoques públicos de alimentos no Brasil no ano passado haviam desabado em 96%
em relação a dez anos atrás. Nesse quadro, em lugar de formar estoques, como
seria natural, o governo simplesmente liberou a farra exportacionista (de
janeiro a agosto do ano passado, em plena pandemia, as exportações de arroz
aumentaram 169,4% em termos físicos).
Para
agravar a situação, os preços das chamadas commodities se elevaram no mercado
internacional: o índice que mede a evolução dos preços de commodities
agrícolas, minerais e de energia aumentou 66% nos 12 meses até março deste ano;
no primeiro trimestre deste ano, o aumento foi de cerca de 25%. Mais que isso,
os preços aumentaram não apenas em dólares, mas também em reais, em decorrência
da desvalorização cambial: de janeiro de 2020 a março de 2021, o dólar se
valorizou em relação ao real em 34%; depois, baixou um pouco, mas manteve-se
elevado. O exemplo dos combustíveis é notável: o preço está, na prática,
dolarizado, pois varia com a variação do dólar.
E
por que o Brasil, grande produtor e exportador de alimentos, tem que vender
seus produtos internamente pelos preços internacionais? Não existe nada de
“natural” nisso, a não ser o fato de que o mercado internacional de alimentos é
controlado pelas transnacionais dos alimentos, as quais determinam o preço em
todos os mercados. Mas isso, certamente, poderia ser coibido por governos
soberanos que colocassem em primeiro lugar a soberania e a segurança alimentar
de seu povo. E o Brasil tem experiência nessa questão com a política de
estoques reguladores, mas, como vimos, em lugar de formar e guardar esses
estoques para o período de entressafra, a equipe de Guedes simplesmente os
pulverizou.
Para
reequilibrar o mercado de alimentos e conter a pressão sobre os preços, o
governo poderia ter aprendido com a experiência desastrosa do ano passado e
aproveitado a safra deste ano para formar os estoques reguladores. Mas não.
Manteve a mesma política burra e irresponsável do ano passado. Pior ainda, a
inflação, nascida no mercado de alimentos, já contaminou outros setores e se
espalhou para o resto da economia. A forma inicial de contaminação ocorreu
através de um perverso “indexador”, o Índice Geral de Preços (IGP-M), que
reflete mais diretamente a variação dos preços das commodities e sua
transformação de dólar em real, e serve de referência para a correção de
aluguéis, mas termina repercutindo também nas tarifas e preços de bens e
serviços públicos e outros bens e serviços cartelizados.
Na
verdade, é como se a economia fosse dolarizada. No IGP-M, o principal
componente (60%) é o Índice de Preços ao Produtor e foi exatamente esse índice
que disparou com a disparada do preço em dólar e mais ainda em real, devido à
sua desvalorização, dos preços das commodities. Nos últimos 12 meses terminados
em julho último, o IGP-M aumentou em 33,83% e o IPA em 44,26%; já estavam
elevados no ano passado: puxado pelo IPA (34,16%), o IGP-M atingiu 24,52% nos
últimos 12 meses até novembro de 2020. Esse aumento de preços do produtor, além
de repercutir o aumento do preço dos alimentos, recebe o impacto da
desvalorização do real e da desorganização da cadeia produtiva: por exemplo,
pesquisa realizada entre industriais indicava no começo do ano que 78% deles
estão tendo dificuldade com o fornecimento de insumos e matérias primas.
Inicialmente,
essa disparada dos preços do produtor (diga-se matérias primas, insumos
intermediários, semielaborados) não repercutiu tanto nos bens industriais
destinados ao consumo final. Devido à restrição da demanda e à capacidade
ociosa, a indústria estava absorvendo esse aumento de custo; por isso, o IPCA,
que mede a variação do preço ao consumidor, estava relativamente baixo: foi de
4,52%% no acumulado do ano passado. Mas já começou a repercutir: nos últimos 12
meses até julho, o acumulado foi de 8,99%. Isso é o que se chama de “inércia”
inflacionária. Significa, no fundo, que o governo, em lugar de atacar a origem
e a correia de transmissão da inflação, permanece inerte, de braços cruzados.
E, quando faz alguma coisa, age no sentido de reforçar essa transmissão,
criando ou legitimando indexadores. Mas a inflação não apenas se reproduz,
acelera. Essa aceleração se deve à cartelização da economia. Os cartéis, pelo
seu poder de monopólio e como forma de manter seu superlucro, reajustam
antecipadamente os preços que, segundo sua “expectativa”, tenderiam a ser
praticados no futuro.
HP: A MEDIDA TOMADA PELO BANCO CENTRAL DE ELEVAR OS JUROS VAI RESOLVER?
NILSON ARAÚJO DE SOUZA – A taxa básica de juros, a Selic, que estava em 2% ao ano, já
chegou a 5,25% e os representantes do mercado financeiro ouvidos pelo Banco
Central na pesquisa Focus já projetam 7,25% para final do ano. A ortodoxia
monetarista costuma usar a elevação da taxa de juros como instrumento para
combater a inflação partindo da premissa de que a inflação seria produto da
pressão da demanda sobre a oferta. Os neoliberais, monetaristas de hoje, como
arautos do tripé macroeconômico, também usam a taxa de juros.
Ocorre que, como demonstramos antes, a atual inflação que transtorna a
economia e o bolso dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros não é de
demanda, mas resulta de um choque de oferta. Quando a inflação é de demanda, a
terapia dos juros altos até consegue conter o processo inflacionário, mas à
custa de uma recessão e mais desemprego, à medida que desestimula a atividade
produtiva – o empresário, além de evitar tomar dinheiro emprestado para
financiar a produção, aplica o rico dinheirinho no mercado financeiro – e
sacrifica as finanças públicas, inviabilizando o investimento público. Se se
trata de um choque de oferta, o buraco é mais embaixo, bem mais embaixo. A
terapia é outra.
HP: EM SUA OPINIÃO, QUE
MEDIDAS DEVEM SER TOMADAS PARA ENFRENTAR ESSA SITUAÇÃO?
NILSON ARAÚJO DE SOUZA – Como se trata de choque de oferta, tem que atacar pelo lado da
oferta. Há medidas emergenciais para aumentar a oferta, como o bloqueio da
exportação dos produtos mais sensíveis, como fizeram a Índia e o Vietnã em
2020. O governo não tem estoques reguladores, mas as tradings das
transnacionais têm. Ao mesmo tempo, retomar a política de estoques reguladores
para a próxima safra, que começa a ser colhida no próximo mês de fevereiro.
Mas, simultaneamente, incentivar com crédito subsidiado, política de preços
mínimos e aquisição antecipada dos alimentos oriundos da pequena produção
voltada para o mercado interno, que está sendo esmagada pelo agronegócio.
Mas, como a inflação já se generalizou, usando o dólar e consequentemente
o IGP-M como correia de transmissão e os cartéis como aceleradores, tem que
quebrar essa cadeia em setores fundamentais da economia, particularmente em
áreas cartelizadas. Simultaneamente, deve-se deflagrar um programa econômico
que, ao retomar a produção de maneira sustentada, amplie a oferta de bens e
serviços. Mas, como está sendo feito nos principais países do mundo, dos EUA à
China, isso implicaria em usar o Estado e, consequentemente, o investimento
público como alavanca do desenvolvimento, e o mercado interno, alavancado pelo
salário, como prioritário.
Mas aí já é outra conversa. Desse governo mentecapto que aí está,
orientado na área econômica pelo ultraneoliberalismo de Guedes, que só enxerga
o mercado, isto é, os monopólios como reguladores da economia, não se pode
esperar nada diferente do que vem sendo feito. Aliás, o Brasil é um dos poucos
países do mundo que mantém esse arremedo de política econômica.
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Veja: Uma tremenda demonstração de fraqueza https://bit.ly/3lRLcVT
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