Entenda ponto a ponto
parecer negacionista da PGR que despreza máscaras para defender Bolsonaro
Diante de dúvidas sobre se houve ou não
crime do presidente, especialistas avaliam que órgão deveria determinar
investigação, não arquivamento
Géssica
Brandino e Renata
Galf, Folha de S. Paulo
Frente a duas notícias-crimes apresentadas ao STF (Supremo Tribunal Federal) acusando o presidente Jair Bolsonaro de prática de crimes contra a saúde pública, a PGR (Procuradoria-Geral da República) não apenas argumentou que não há fatos que justifiquem a investigação como negou que haja evidências científicas quanto ao nível de efetividade do uso de máscaras.
Para
especialistas do direito, um dos pontos que mais chamam a atenção é que o parecer,
assinado pela subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo, mais
se aproxima de uma peça de defesa, construindo uma intrincada argumentação de
modo a contrapor a notícia-crime. Algo que, no caso da Presidência, caberia à AGU
(Advocacia-Geral da União).
Também é
generalizada a crítica à argumentação de que não haveria evidências sobre os
benefícios do uso da máscara, o que, na avaliação da maioria dos especialistas
em direito e em saúde ouvidos pela Folha,
aproxima o documento do negacionismo científico.
Lindôra é uma
das pessoas mais próximas do procurador-geral, Augusto Aras,
que, por sua vez, é próximo de Bolsonaro e vem sendo amplamente
criticado por seus pares pela inação diante de condutas do presidente.
Com mandato
próximo do fim, Aras já teve sua recondução
anunciada pelo presidente, mas a indicação ainda precisa ser
avalizada pelo Senado.
Entenda quais
foram os argumentos apresentados pela PGR.
O
que estava sendo analisado e quais eram as possibilidades da PGR? A manifestação da Procuradoria ocorreu
em resposta a duas notícias-crimes apresentadas ao STF pelo PT e pelo PSOL
contra Bolsonaro.
A
notícia-crime é um meio de comunicar às autoridades o possível cometimento de
crimes e, a partir dela, pode ou não ser instaurado um inquérito penal, momento
em que ocorre a investigação. Neste caso, a manifestação da PGR foi contrária à
abertura do inquérito.
Após um eventual
inquérito, caberia à PGR decidir se apresenta ou não uma denúncia, abrindo
assim uma ação penal. Neste caso, a pessoa deixa de ser investigada e passa à
condição de ré. Para o
presidente se tornar réu, além da denúncia, é preciso o aval de ao
menos 342 deputados federais.
No caso do
presidente da República, a PGR é o órgão acusador, e o STF, o julgador.
Quais
acusações foram feitas contra Bolsonaro? PT e PSOL acusam o presidente de ter
cometido crime de infração de
medida sanitária preventiva, previsto no artigo 268 do Código Penal,
ao não usar máscara e ao promover aglomerações.
Além disso,
levando em consideração o episódio em que Bolsonaro retirou a
máscara de uma criança durante um evento com apoiadores, o PSOL
também aponta o crime de expor a vida ou a saúde de um terceiro a perigo direto
e iminente, previsto no artigo 132 da mesma lei, bem como o artigo 232 do ECA
(Estatuto da Criança e do Adolescente).
E, por fim,
citando gastos com a realização de motociata em maio no Rio de Janeiro, a
representação feita pelo PT também cita possível emprego irregular de verbas
públicas, conduta prevista pelo artigo 315 do Código Penal.
Quais são
os argumentos apresentados pela PGR na manifestação enviada ao STF? Em relação ao não uso de máscara, a
PGR fez uma argumentação intrincada para tentar provar que não haveria
cometimentos de crimes.
Um dos
argumentos é que a aplicação do direito penal deveria ser limitada e que, em
casos menos graves, sanções administrativas como multas já seriam suficientes.
“No caso específico da conduta de quem descumpre decreto que impõe o uso de
máscara de proteção facial (...) não se pode falar em subsunção à norma penal
incriminadora do art. 268 do Código Penal, em face da baixa lesividade do
comportamento."
Um dos pontos
considerados mais graves é a alegação de que as máscaras não
seriam efetivas e que há “incerteza sobre o grau de eficácia do
equipamento".
“Essa conduta [não uso de máscara] não se reveste da gravidade própria de um
crime, por não ser possível afirmar que, por si só, deixe realmente de impedir
introdução ou propagação da Covid-19”, diz a peça. E continua: “Não é possível
realizar testes rigorosos, que comprovem a medida exata da eficácia da máscara
de proteção como meio de prevenir a propagação do novo coronavírus”.
A advogada
criminalista Ana Carolina Moreira Santos critica o posicionamento do órgão.
“Essa avaliação de que a conduta não é grave é uma avaliação pessoal. Se temos
um crime que prevê essa conduta, a vontade do legislador brasileiro está
dizendo que se trata sim de uma conduta grave."
O advogado
criminalista Leonardo Sica destaca que a argumentação do documento é muito
distinta do que comumente se vê em pareceres de promotores e procuradores, que
são membros de órgão acusatório.
“[A
Procuradoria] fez uma ginástica argumentativa incrível para dizer que não era
crime. É bem mais simples [do que isso] dizer que não é crime”, disse. “Parece
mesmo uma peça de defesa, não do Ministério Público.”
O professor da
Faculdade de Direito da USP Rafael Mafei diz que não cabe à PGR analisar o
mérito das notícias-crime.
“É muito
preocupante quando você tem uma instituição com a autoridade e respeitabilidade
da Procuradoria-Geral da República oferecendo ao debate público um argumento
negacionista com verniz de validade jurídica, porque isso alimenta a ideia
equivocada de que existe respaldo jurídico à desobediência de medidas
sanitárias."
A professora
de saúde pública da USP Deisy Ventura, afirma que a manifestação da PGR “passa
a integrar os anais da infâmia do direito brasileiro” por defender condutas de
um chefe de Estado que adota como estratégia a imunidade de rebanho por meio do
contágio na pandemia.
“É chocante,
extravagante e inadmissível que alguém, mas principalmente um agente público,
mas principalmente um chefe de Estado, retire a máscara de uma criança durante
uma aglomeração na constância de um surto de uma doença contagiosa."
Qual tem
sido o comportamento de Bolsonaro e suas frases sobre máscaras, aglomerações e
pandemia? De
forma recorrente, desde o início de 2020, o presidente tem dado declarações e
adotado ações contra medidas não farmacológicas de prevenção à pandemia,
enquanto defende o uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a
Covid-19, chamada por ele de “gripezinha”.
Bolsonaro já insinuou que as
máscaras causam efeitos colaterais e se recusa a usar a
proteção em eventos com aglomeração de apoiadores, motivo pelo qual já foi
multado diversas vezes.
Além de atacar
governadores por conta de medidas de distanciamento social, chamadas por ele de
estado de sítio, o mandatário recorreu a um falso relatório do TCU (Tribunal de
Contas da União) para dizer que há uma supernotificação de mortes por Covid no
país. O presidente foi desmentido pelo órgão.
Qual
a função da PGR ao analisar um pedido de investigação contra o presidente e
quais os seus limites legais? A
advogada criminalista Marina Pinhão Coelho de Araújo, presidente do IBCCrim
(Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), diz que o Ministério Público,
quando toma ciência de uma notícia-crime, precisa avaliar a plausibilidade e a
necessidade de uma investigação.
Ela afirma que
isso não ocorreu neste caso.
“Se não há
mais necessidade de investigar porque todos os elementos já estão postos, ela
que apresente os elementos, mas ela não fez isso. O que ela fez foi uma defesa
do presidente, dizendo que ele não fez, não foi o responsável. Como ela diz
isso sem ter uma investigação mais profunda? Difícil."
A também
advogada criminalista Ana Carolina Moreira Santos ressalta que arquivar
notícias-crimes mesmo antes de uma investigação também é função do Ministério
Público, mas isso só deve ocorrer quando é nítido que não há crime. “É algo que
realmente só ocorre em casos em que há certeza da inexistência do crime, que me
parece que não é a hipótese."
“Nessa fase
preliminar, a dúvida milita em prol da sociedade. Em caso de dúvida, há a
necessidade de se instaurar a persecução penal, para que através do
contraditório e da ampla defesa ao final se chegue ao momento em que a dúvida
milita em favor do réu, do acusado, e não mais em favor da sociedade”, argumentou.
Por que a
ciência recomenda o uso de máscaras no contexto da pandemia da Covid? O que
sabemos sobre isso? O
histórico de epidemias anteriores já demonstrou que o uso de medidas não
farmacológicas, como o distanciamento físico, higiene das mãos e uso de máscaras, são efetivas para diminuir a transmissão,
afirma a pneumologista e pesquisadora da Fiocruz Margareth Dalcolmo.
“É um assunto relativamente
tranquilo, com evidências óbvias de que, diante de uma doença com transmissão
respiratória e comprovadamente ambiental, não há dúvida de que o uso de uma
barreira mecânica protege a própria pessoa e, sobretudo, protege as demais
pessoas”, diz a médica, que se declarou surpresa com os argumentos da
Procuradoria.
A consultora da Sociedade
Brasileira de Infectologia e professora da Unicamp Raquel Stucchi destaca que
há vários trabalhos feitos ao longo dos últimos 18 meses que comprovam a
eficácia, tanto que países que tinham abolido voltaram a usar a proteção.
“Não é por achismo que os países
que aboliram o uso de máscara por acharem que a pandemia estava controlada
voltaram a exigir. Se eles fizeram isso é porque há comprovação científica em
relação à eficácia para conter a transmissão. Há também comprovação de que o
uso das máscaras não gera nenhum outro risco e nem tem uma reação adversa”,
diz.
O infectologista Jamal Suleiman,
do Instituto Emílio Ribas, classifica como leviana a argumentação de Lindôra
contra as máscaras. “Curiosamente a narrativa de que vale qualquer coisa para
proteger, incluindo o tratamento precoce, não vale para medidas não
farmacológicas.”
O médico afirma que os estudos observacionais e epidemiológicos feitos
com o item de proteção são importantes porque muitos foram realizados em
ambiente domiciliar, fechado e de fácil controle.
“É óbvio que a máscara não dá 100%
de garantia, mas ninguém nunca disse que dava. O fato de não dar 100% não
significa que o equipamento seja desqualificado. [A argumentação da PGR] É ruim
do ponto de vista de saúde pública, do ponto de vista de comunicação com a
sociedade."
Qual o risco
para as pessoas que não usam esse item de proteção? Dalcolmo, da Fiocruz, alerta que o uso de máscaras
fará parte da rotina dos brasileiros por pelo menos mais dois anos, uma vez que
novas variantes do vírus, como a delta, têm capacidade de transmissão muito
maior. Ela estima que a nova cepa, que já é dominante no Rio de Janeiro, será
também em São Paulo em questão de dias.
“Hoje a gente não trata mais de um
caso só. A gente trata a família inteira, porque contamina todo mundo. Eu estou
tratando vários assim: pai, mãe, filhos, crianças pequenas, às vezes com dois
anos de idade."
Além de ter uma carga viral mais
alta, estudos também apontam que a delta pode ser transmitida por mais tempo,
completa Stucchi. “Você aumenta muito a transmissibilidade do vírus e aumenta,
portanto, a chance de novos casos, novas infecções, formas graves que
necessitarão de hospitalização e poderão vir a morrer."
A argumentação
feita por Lindôra alimenta o negacionismo diante da pandemia? Especialistas em saúde foram unânimes na crítica
aos argumentos de Lindôra que questionam o uso das máscaras.
“É uma declaração que me surpreende pela
inoportunidade num momento em que temos tantos outros problemas importantes a
tratar, sanitariamente falando. Segundo que confunde a opinião pública, quando
o uso de máscara já é algo estabelecido nos costumes", diz Dalcolmo.
Suleiman afirma que a PGR deveria
ter introduzido uma tese em defesa da disponibilização de máscaras de qualidade
em larga escala para a população e não alimentar o negacionismo atacando
medidas que são eficazes.
“Ela reforça essa atitude
negacionista, eu diria, inconsequente, que é quase uma atitude homicida, sim,
da sociedade como um todo, porque favorece que a gente despreze o conhecimento
já adquirido sobre a Covid, sobre a transmissão do Sars-Cov-2 entre as
pessoas”, completa Stucchi.
Marina Coelho, do IBCCrim, foi a
única a divergir nesse aspecto, por considerar que a fala da subprocuradora foi
feita dentro dos autos e sem intenção de disseminar teses contra medidas de
proteção.
O STF pode
ignorar o parecer da PGR? Tendo em vista que o Ministério Público é o titular da ação penal e que
há no Supremo o entendimento de que não se pode consultar outro integrante da
cúpula da PGR para uma segunda manifestação —como pode ser feito por um juiz em
primeira instância—, a interpretação dos especialistas aponta que as
notícias-crime devem ser arquivadas.
Entretanto, parte deles não
descarta a possibilidade dos ministros do STF burlarem a regra, o que não é
usual, e permitirem que ao menos seja feita a investigação. Para Coelho, isso
pode acontecer, mas a investigação perderia o sentido, já que a PGR não apresentaria
denúncia ao final do processo.
“O STF não precisa pensar igual à
PGR, e os ministros podem entender que há elementos para se investigar. Não
seria ilegal, mas a meu ver fica um pouco inócuo, porque vai fazer uma
investigação que depois não tem como evoluir."
Para Mafei, a única hipótese para
o STF seria pedir ao Conselho Superior do Ministério Público Federal a
indicação de outro procurador para um segundo parecer, mas ele aponta que isso
parece ir contra a jurisprudência da corte. “Teriam de rever esse
entendimento."
O advogado criminalista e presidente do Instituto Baiano de Direito Processual
Penal, Vinícius Assumpção, considera que o STF não poderia determinar a
abertura do inquérito após uma manifestação contrária da PGR.
“O Judiciário, ainda que seja a
Suprema Corte, não estaria autorizado a iniciar uma investigação ou um processo
penal de forma autônoma e independente”. Ele pondera, no entanto, que isso já
ocorreu em outras ocasiões.
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Veja:
Uma breve palavra sobre nossa conversa com o ex-presidente
Lula https://bit.ly/3kbDHqq
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