19 agosto 2021

Tentativa de inocentar Bolsonaro

Entenda ponto a ponto parecer negacionista da PGR que despreza máscaras para defender Bolsonaro
Diante de dúvidas sobre se houve ou não crime do presidente, especialistas avaliam que órgão deveria determinar investigação, não arquivamento
Géssica Brandino e Renata Galf,
Folha de S. Paulo

 

Frente a duas notícias-crimes apresentadas ao STF (Supremo Tribunal Federal) acusando o presidente Jair Bolsonaro de prática de crimes contra a saúde pública, a PGR (Procuradoria-Geral da República) não apenas argumentou que não há fatos que justifiquem a investigação como negou que haja evidências científicas quanto ao nível de efetividade do uso de máscaras.

Para especialistas do direito, um dos pontos que mais chamam a atenção é que o parecer, assinado pela subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo, mais se aproxima de uma peça de defesa, construindo uma intrincada argumentação de modo a contrapor a notícia-crime. Algo que, no caso da Presidência, caberia à AGU (Advocacia-Geral da União).

Também é generalizada a crítica à argumentação de que não haveria evidências sobre os benefícios do uso da máscara, o que, na avaliação da maioria dos especialistas em direito e em saúde ouvidos pela Folha, aproxima o documento do negacionismo científico.

Lindôra é uma das pessoas mais próximas do procurador-geral, Augusto Aras, que, por sua vez, é próximo de Bolsonaro e vem sendo amplamente criticado por seus pares pela inação diante de condutas do presidente.

Com mandato próximo do fim, Aras já teve sua recondução anunciada pelo presidente, mas a indicação ainda precisa ser avalizada pelo Senado.

Entenda quais foram os argumentos apresentados pela PGR.

O que estava sendo analisado e quais eram as possibilidades da PGR? A manifestação da Procuradoria ocorreu em resposta a duas notícias-crimes apresentadas ao STF pelo PT e pelo PSOL contra Bolsonaro.

A notícia-crime é um meio de comunicar às autoridades o possível cometimento de crimes e, a partir dela, pode ou não ser instaurado um inquérito penal, momento em que ocorre a investigação. Neste caso, a manifestação da PGR foi contrária à abertura do inquérito.

Após um eventual inquérito, caberia à PGR decidir se apresenta ou não uma denúncia, abrindo assim uma ação penal. Neste caso, a pessoa deixa de ser investigada e passa à condição de ré. Para o presidente se tornar réu, além da denúncia, é preciso o aval de ao menos 342 deputados federais.

No caso do presidente da República, a PGR é o órgão acusador, e o STF, o julgador.

Quais acusações foram feitas contra Bolsonaro? PT e PSOL acusam o presidente de ter cometido crime de infração de medida sanitária preventiva, previsto no artigo 268 do Código Penal, ao não usar máscara e ao promover aglomerações.

Além disso, levando em consideração o episódio em que Bolsonaro retirou a máscara de uma criança durante um evento com apoiadores, o PSOL também aponta o crime de expor a vida ou a saúde de um terceiro a perigo direto e iminente, previsto no artigo 132 da mesma lei, bem como o artigo 232 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

E, por fim, citando gastos com a realização de motociata em maio no Rio de Janeiro, a representação feita pelo PT também cita possível emprego irregular de verbas públicas, conduta prevista pelo artigo 315 do Código Penal.

Quais são os argumentos apresentados pela PGR na manifestação enviada ao STF? Em relação ao não uso de máscara, a PGR fez uma argumentação intrincada para tentar provar que não haveria cometimentos de crimes.

Um dos argumentos é que a aplicação do direito penal deveria ser limitada e que, em casos menos graves, sanções administrativas como multas já seriam suficientes. “No caso específico da conduta de quem descumpre decreto que impõe o uso de máscara de proteção facial (...) não se pode falar em subsunção à norma penal incriminadora do art. 268 do Código Penal, em face da baixa lesividade do comportamento."

Um dos pontos considerados mais graves é a alegação de que as máscaras não seriam efetivas e que há “incerteza sobre o grau de eficácia do equipamento".

“Essa conduta [não uso de máscara] não se reveste da gravidade própria de um crime, por não ser possível afirmar que, por si só, deixe realmente de impedir introdução ou propagação da Covid-19”, diz a peça. E continua: “Não é possível realizar testes rigorosos, que comprovem a medida exata da eficácia da máscara de proteção como meio de prevenir a propagação do novo coronavírus”.

A advogada criminalista Ana Carolina Moreira Santos critica o posicionamento do órgão. “Essa avaliação de que a conduta não é grave é uma avaliação pessoal. Se temos um crime que prevê essa conduta, a vontade do legislador brasileiro está dizendo que se trata sim de uma conduta grave."

O advogado criminalista Leonardo Sica destaca que a argumentação do documento é muito distinta do que comumente se vê em pareceres de promotores e procuradores, que são membros de órgão acusatório.

“[A Procuradoria] fez uma ginástica argumentativa incrível para dizer que não era crime. É bem mais simples [do que isso] dizer que não é crime”, disse. “Parece mesmo uma peça de defesa, não do Ministério Público.”

O professor da Faculdade de Direito da USP Rafael Mafei diz que não cabe à PGR analisar o mérito das notícias-crime.

“É muito preocupante quando você tem uma instituição com a autoridade e respeitabilidade da Procuradoria-Geral da República oferecendo ao debate público um argumento negacionista com verniz de validade jurídica, porque isso alimenta a ideia equivocada de que existe respaldo jurídico à desobediência de medidas sanitárias."

A professora de saúde pública da USP Deisy Ventura, afirma que a manifestação da PGR “passa a integrar os anais da infâmia do direito brasileiro” por defender condutas de um chefe de Estado que adota como estratégia a imunidade de rebanho por meio do contágio na pandemia.

“É chocante, extravagante e inadmissível que alguém, mas principalmente um agente público, mas principalmente um chefe de Estado, retire a máscara de uma criança durante uma aglomeração na constância de um surto de uma doença contagiosa."

Qual tem sido o comportamento de Bolsonaro e suas frases sobre máscaras, aglomerações e pandemia? De forma recorrente, desde o início de 2020, o presidente tem dado declarações e adotado ações contra medidas não farmacológicas de prevenção à pandemia, enquanto defende o uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid-19, chamada por ele de “gripezinha”.

Bolsonaro já insinuou que as máscaras causam efeitos colaterais e se recusa a usar a proteção em eventos com aglomeração de apoiadores, motivo pelo qual já foi multado diversas vezes.

Além de atacar governadores por conta de medidas de distanciamento social, chamadas por ele de estado de sítio, o mandatário recorreu a um falso relatório do TCU (Tribunal de Contas da União) para dizer que há uma supernotificação de mortes por Covid no país. O presidente foi desmentido pelo órgão.

Qual a função da PGR ao analisar um pedido de investigação contra o presidente e quais os seus limites legais? A advogada criminalista Marina Pinhão Coelho de Araújo, presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), diz que o Ministério Público, quando toma ciência de uma notícia-crime, precisa avaliar a plausibilidade e a necessidade de uma investigação.

Ela afirma que isso não ocorreu neste caso.

“Se não há mais necessidade de investigar porque todos os elementos já estão postos, ela que apresente os elementos, mas ela não fez isso. O que ela fez foi uma defesa do presidente, dizendo que ele não fez, não foi o responsável. Como ela diz isso sem ter uma investigação mais profunda? Difícil."

A também advogada criminalista Ana Carolina Moreira Santos ressalta que arquivar notícias-crimes mesmo antes de uma investigação também é função do Ministério Público, mas isso só deve ocorrer quando é nítido que não há crime. “É algo que realmente só ocorre em casos em que há certeza da inexistência do crime, que me parece que não é a hipótese."

“Nessa fase preliminar, a dúvida milita em prol da sociedade. Em caso de dúvida, há a necessidade de se instaurar a persecução penal, para que através do contraditório e da ampla defesa ao final se chegue ao momento em que a dúvida milita em favor do réu, do acusado, e não mais em favor da sociedade”, argumentou.

Por que a ciência recomenda o uso de máscaras no contexto da pandemia da Covid? O que sabemos sobre isso? O histórico de epidemias anteriores já demonstrou que o uso de medidas não farmacológicas, como o distanciamento físico, higiene das mãos e uso de máscaras, são efetivas para diminuir a transmissão, afirma a pneumologista e pesquisadora da Fiocruz Margareth Dalcolmo.

“É um assunto relativamente tranquilo, com evidências óbvias de que, diante de uma doença com transmissão respiratória e comprovadamente ambiental, não há dúvida de que o uso de uma barreira mecânica protege a própria pessoa e, sobretudo, protege as demais pessoas”, diz a médica, que se declarou surpresa com os argumentos da Procuradoria.

A consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia e professora da Unicamp Raquel Stucchi destaca que há vários trabalhos feitos ao longo dos últimos 18 meses que comprovam a eficácia, tanto que países que tinham abolido voltaram a usar a proteção.

“Não é por achismo que os países que aboliram o uso de máscara por acharem que a pandemia estava controlada voltaram a exigir. Se eles fizeram isso é porque há comprovação científica em relação à eficácia para conter a transmissão. Há também comprovação de que o uso das máscaras não gera nenhum outro risco e nem tem uma reação adversa”, diz.

O infectologista Jamal Suleiman, do Instituto Emílio Ribas, classifica como leviana a argumentação de Lindôra contra as máscaras. “Curiosamente a narrativa de que vale qualquer coisa para proteger, incluindo o tratamento precoce, não vale para medidas não farmacológicas.”

O médico afirma que os estudos observacionais e epidemiológicos feitos com o item de proteção são importantes porque muitos foram realizados em ambiente domiciliar, fechado e de fácil controle.

“É óbvio que a máscara não dá 100% de garantia, mas ninguém nunca disse que dava. O fato de não dar 100% não significa que o equipamento seja desqualificado. [A argumentação da PGR] É ruim do ponto de vista de saúde pública, do ponto de vista de comunicação com a sociedade."

Qual o risco para as pessoas que não usam esse item de proteção? Dalcolmo, da Fiocruz, alerta que o uso de máscaras fará parte da rotina dos brasileiros por pelo menos mais dois anos, uma vez que novas variantes do vírus, como a delta, têm capacidade de transmissão muito maior. Ela estima que a nova cepa, que já é dominante no Rio de Janeiro, será também em São Paulo em questão de dias.

“Hoje a gente não trata mais de um caso só. A gente trata a família inteira, porque contamina todo mundo. Eu estou tratando vários assim: pai, mãe, filhos, crianças pequenas, às vezes com dois anos de idade."

Além de ter uma carga viral mais alta, estudos também apontam que a delta pode ser transmitida por mais tempo, completa Stucchi. “Você aumenta muito a transmissibilidade do vírus e aumenta, portanto, a chance de novos casos, novas infecções, formas graves que necessitarão de hospitalização e poderão vir a morrer."

A argumentação feita por Lindôra alimenta o negacionismo diante da pandemia? Especialistas em saúde foram unânimes na crítica aos argumentos de Lindôra que questionam o uso das máscaras.

É uma declaração que me surpreende pela inoportunidade num momento em que temos tantos outros problemas importantes a tratar, sanitariamente falando. Segundo que confunde a opinião pública, quando o uso de máscara já é algo estabelecido nos costumes", diz Dalcolmo.

Suleiman afirma que a PGR deveria ter introduzido uma tese em defesa da disponibilização de máscaras de qualidade em larga escala para a população e não alimentar o negacionismo atacando medidas que são eficazes.

“Ela reforça essa atitude negacionista, eu diria, inconsequente, que é quase uma atitude homicida, sim, da sociedade como um todo, porque favorece que a gente despreze o conhecimento já adquirido sobre a Covid, sobre a transmissão do Sars-Cov-2 entre as pessoas”, completa Stucchi.

Marina Coelho, do IBCCrim, foi a única a divergir nesse aspecto, por considerar que a fala da subprocuradora foi feita dentro dos autos e sem intenção de disseminar teses contra medidas de proteção.

O STF pode ignorar o parecer da PGR? Tendo em vista que o Ministério Público é o titular da ação penal e que há no Supremo o entendimento de que não se pode consultar outro integrante da cúpula da PGR para uma segunda manifestação —como pode ser feito por um juiz em primeira instância—, a interpretação dos especialistas aponta que as notícias-crime devem ser arquivadas.

Entretanto, parte deles não descarta a possibilidade dos ministros do STF burlarem a regra, o que não é usual, e permitirem que ao menos seja feita a investigação. Para Coelho, isso pode acontecer, mas a investigação perderia o sentido, já que a PGR não apresentaria denúncia ao final do processo.

“O STF não precisa pensar igual à PGR, e os ministros podem entender que há elementos para se investigar. Não seria ilegal, mas a meu ver fica um pouco inócuo, porque vai fazer uma investigação que depois não tem como evoluir."

Para Mafei, a única hipótese para o STF seria pedir ao Conselho Superior do Ministério Público Federal a indicação de outro procurador para um segundo parecer, mas ele aponta que isso parece ir contra a jurisprudência da corte. “Teriam de rever esse entendimento."

O advogado criminalista e presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal, Vinícius Assumpção, considera que o STF não poderia determinar a abertura do inquérito após uma manifestação contrária da PGR.

“O Judiciário, ainda que seja a Suprema Corte, não estaria autorizado a iniciar uma investigação ou um processo penal de forma autônoma e independente”. Ele pondera, no entanto, que isso já ocorreu em outras ocasiões.

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Veja: Uma breve palavra sobre nossa conversa com o ex-presidente Lula https://bit.ly/3kbDHqq

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