Brasil: há reindustrialização possível, aos 200?
Ao
lado da Defesa, segurança alimentar e energética tornam-se estratégicas às
potências globais em tempos de guerra sem fim. Brasil pode ser gigante nestes
dois setores, mas opta pelo atraso: reprimarização e desmonte da Petrobrás
José Álvaro de Lima Cardoso, Outras palavras
Existe uma relação forte entre soberania nacional e a capacidade de
produção industrial de um país, que vale para períodos de paz, assim como para
eventuais conflitos com outros países. É necessário mencionar situações de
conflito porque nenhum país está livre dessa possibilidade, especialmente no
quadro mundial atual, de grande polarização política em várias regiões do
mundo. Se qualquer país tiver que travar uma guerra, e não dispuser de
infraestrutura industrial básica, se encontrará em maus lençóis.
Alguns países, que dispõem de projeto nacionais de desenvolvimento, até
trataram de “exportar” as indústrias poluentes, ou “menos interessantes”, mas
mantêm pelo menos o núcleo duro industrial, para garantir segurança alimentar,
energética e de defesa nacional. Três áreas, aliás, que estão muito
inter-relacionadas (não existe “defesa nacional” sem segurança alimentar e
energética). Imaginem a Rússia neste momento, em que teve que reagir a uma
provocação da OTAN e está sofrendo um boicote econômico inusitado, se não
dispusesse de indústria básica. A indústria do país é essencialmente de base,
voltada para o desenvolvimento de bens de produção e matérias-primas. Mas o
país fabrica também equipamentos de transporte e comunicação, veículos e
aeronaves. Sem indústria, estaria dependendo totalmente do fornecimento da
China e de outros países que não aderiram ao boicote. Se o conflito escala, e
se torna mundial, é possível que essa fonte de fornecimento se fechasse e a
Rússia não disporia de indústria nem mesmo para repor seu equipamento bélico.
A alavancagem de valor na indústria significa a movimentação da cadeia
produtiva como um todo: comércio, setor de pesquisa, serviços em gerais,
transporte, logística, infraestrutura, e assim por diante. A cadeia produtiva
estruturada pela indústria pode ser facilmente compreendida pelo ramo
petroquímico, área da química encarregada dos derivados de petróleo e sua
utilização na indústria. A indústria petroquímica transforma petróleo bruto em
uma gama enorme de produtos como gás natural, gasolina, gás liquefeito de
petróleo (GLP), querosene, óleo diesel, nafta petroquímica, solventes, asfalto,
dentre outros. O petróleo, além de fonte de energia essencial nos dias atuais,
e uma das mais importantes substâncias da Terra, é utilizado como matéria prima
para mais de 3.000 bens industriais.
Não há setor da economia que gere uma cadeia produtiva tão densa e rica
como a indústria. É claro que a indústria de hoje não é a do século XIX. Nos
países desenvolvidos, e em parte é assim no Brasil, há uma grande integração
entre indústria e os setores de serviços. As cadeias produtivas são o conjunto
de etapas através das quais os diversos insumos (matéria-prima) são
transformados em um bem. Os insumos são transformados, por meio do trabalho
humanos e uso de máquinas e equipamentos, até se transformarem em produtos
chamados de intermediários.
A cadeia produtiva abrange os bens de consumo, que chegam ao consumidor
final, assim como os bens de produção (matéria-prima) e bens de capital
(equipamentos e bens necessários para a produção de outros bens ou serviços),
que servem para produzir os bens de consumo. A cadeia produtiva, que comumente
desenvolve seu ciclo em mais de um país, movimenta inúmeros setores da
economia, gerando emprego e renda.
No processo de produção industrial é fundamental universidades e centros
para desenvolvimento da pesquisa básica, assim como dispor de um banco de
fomento para financiar pesquisas e a própria indústria. É essencial também
estruturar um sistema de serviços e distribuição dos produtos, e assim por
diante. Em toda a cadeia de produção e distribuição há agregação de valor,
trazido pelo trabalho humano, que gera renda, impostos, e outros serviços.
Indústria significa também desenvolvimento da tecnologia. Por exemplo, a
economia norte-americana tem grande dependência da indústria de armas. Das 100
maiores companhias de armas, 41 têm sede no país. Elas venderam 54% do total de
2020, ou US$ 285 bilhões (R$ 1,6 trilhão) – aumento real de 1,9% em comparação
com 2019. Desde 2018, os 5 primeiros lugares da lista são ocupados por
companhias norte-americanas. A China vem em seguida: vendas de companhias do
país representam 13% do total de 2020 (US$ 66,8 bilhões, ou R$ 383 bilhões).
O orçamento dos EUA para 2023, no ano fiscal que começa agora em
outubro, é de US$ 5,8 trilhões. Deste valor, US$ 813 bilhões são destinados à
guerra. Os orçamentos militares dos países que lideram o ranking neste ano,
são:
-Estados Unidos (US$ 801 bilhões)
-China (US$ 293 bilhões)
-Índia (US$ 76,6 bilhões)
-Reino Unido (US$ 68,4 bilhões)
-Rússia (US$ 65,9 bilhões),
Juntos, estes países concentram 61,7% do total de US$ 2.113 trilhões
(cerca de R$11,6 trilhões).
O orçamento militar da Rússia, de US$ 65,9 bilhões, equivale a 8,2% do
orçamento norte-americano. É curioso que a Rússia, país que resolveu encarar os
norte-americanos e a OTAN em relação às provocações na Ucrânia, tenha orçamento
para a defesa nacional que equivale a 8,2% dos EUA. O fato revela que o
travamento de uma guerra não depende somente de dinheiro, precisa de outros
fatores também. Esse fato já tinha ficado evidente muitas vezes na história. Há
um ano, por exemplo, em agosto de 2021 os norte-americanos foram escorraçados
do Afeganistão, por um exército de quase miseráveis, que tinham uma fração dos
recursos bélicos norte-americanos e não tinham nem o básico, como fuzis
automáticos.
Vendo as imagens dos soldados do Talibã, quase maltrapilhos, pode-se
compreender como uma “causa” consistente na guerra é um fator muito mais
decisivo do que lutar por dinheiro, como era o caso do exército
norte-americano, ou dos seus mercenários, especialistas em guerra por
procuração. Para os EUA, a guerra é uma necessidade econômica, dentre outros
motivos. Por exemplo, esse país está provocando a China em Taiwan, que
sabidamente é território chinês. Além do interesse geopolítico, os EUA, neste
momento, anunciaram três contratos para vender armas e serviços técnicos a
Taiwan no valor total de US$ 1,1 bilhão, segundo informações do Departamento de
Estado. Os norte-americanos irão fornecer a Taiwan equipamentos e suporte
logístico para suas estações de radar, mísseis e outros equipamentos.
Nesse quadro, a política de venda de refinarias e exportação de óleo cru
do governo Bolsonaro são prejudiciais ao país porque restringem as
possibilidades de desenvolvimento da pesquisa e tecnologia e não aproveitam as
potencialidades da cadeia de petróleo, que é extremamente densa. Se a Petrobrás
é hoje uma gigante na exploração de petróleo em águas profundas e
ultraprofundas, e referência mundial na área, é fruto do desenvolvimento de
tecnologia regular e de alto nível. A descoberta do pré-sal não é sorte ou
coincidência, e sim resultado de esforços contínuos em pesquisas, num padrão
extremamente alto. Além do orgulho nacional do Brasil despontar no conhecimento
e exploração de petróleo originário da camada de pré-sal, a cadeia de produção
de tecnologia e renda, possibilitada por essa exploração, é riquíssima e traz
inúmeros benefícios sociais e econômicos. É isso, também, que está em jogo, na
atual política de “fatiamento” da Petrobrás.
Revista 'Princípios'
publica dossiê de 200 anos de uma independência incompleta https://bit.ly/3Rv2FAw
Europa: O desgaste da guerra e a escassez de combustível
Escalada
dos preços globais de energia e alimentos produz catástrofe no custo de vida.
UE ainda depende dos hidrocarbonetos russos e população mal poderá se aquecer
no inverno, mas petroleiras mantêm lucros recordes
Michael Roberts, no The Next Recession, com
tradução em A Terra é Redonda
Os
governos do G7 estão enfrentando um grande problema. A guerra na Ucrânia contra
a Rússia não está sendo ganha. Parece que será um longo conflito bem
desgastante, aparentemente sem fim definido. E, no entanto, o mundo, e
particularmente a Europa, dependem do fornecimento de energia fornecida pela
Rússia. O G7 concordou em parar de comprar petróleo russo, como parte do
programa de usar sanções econômicas como arma de guerra. Mas até agora, as
importações de energia da Rússia não foram interrompidas porque isso
significaria uma catástrofe para os países da União Europeia, particularmente
para a Alemanha. E a Rússia ainda está vendendo grandes volumes – globalmente –
embora com desconto do preço mundial – para a Índia, China e outras economias
sedentas de energia.
No
início de junho, a União Europeia concordou em impedir as suas empresas de
“fazer seguro e de financiar o transporte, nomeadamente, por vias marítimas, de
petróleo [russo] para terceiros” após o final de 2022. O objetivo é tornar
“difícil para a Rússia” continuar exportando petróleo bruto e produtos
petrolíferos para o resto do mundo”. Mas isso ainda não está sendo implementado
e os petroleiros gregos estão entregando as exportações de petróleo russo em
todo o mundo. Até a última semana, o gás russo ainda estava sendo trazido
normalmente para a Europa.[i]
Como
resultado, o superávit comercial desse país disparou à medida que as receitas
de exportação de petróleo e gás aumentaram, impulsionadas principalmente por
enormes aumentos de preços (gráfico da esquerda). Em uma imagem espelhada, a
balança comercial da zona do euro afundou; verificou-se um déficit severo e o
valor do euro caiu abaixo do dólar pela primeira vez em mais de 20 anos
(gráfico da direita).
Os
governos europeus têm tentado desesperadamente encontrar fontes alternativas de
fornecimento de energia. Percorreram todo o mundo para comprar gás e petróleo a
preços de mercado. Isso levou à disparada dos preços do gás natural e do
petróleo. No entanto, com grandes custos, a Europa vem aumentando seu
armazenamento de gás para enfrentar o próximo inverno. Os níveis de
armazenamento de gás estão agora em 80% da capacidade e ainda mais altos na
Alemanha.
Esse
resultado foi obtido por meio de importações mais caras de gás natural
liquefeito (GNL), as quais são trazidas por navios. A Europa reduziu suas
importações de gás da Rússia (em parte por razão política, mas principalmente
porque a Rússia reduziu o fornecimento de gás para 20% no gasoduto principal –
e agora esta semana para zero). Para substituir essa perda, comprou GNL da
Espanha e da América do Norte.
Mesmo assim, terá que usar toda a sua capacidade de armazenamento para
passar o inverno sem cortes de energia. Uma questão, entretanto, subsiste: e
depois?
É por isso que os líderes do G7 decidiram por uma nova sanção contra a
Rússia; eles esperam que ela acelere a capitulação russa na guerra na Ucrânia.
Liderados por Janet Yellen, secretária do Tesouro dos EUA, propõem introduzir
um teto de preço em todas as importações de petróleo da Rússia. Em vez de
aplicar uma proibição geral de seguro ou financiamento de qualquer embarque de
petróleo russo, crédito e seguro serão disponibilizados, desde que o preço pago
pela energia russa esteja abaixo de um determinado nível.
O nível do teto ainda está para ser decidido e ele valerá para o novo
ano de 2023. Atualmente, o preço do petróleo bruto Brent é de cerca de US$
90-100/barril. Assim, se o teto de preço fosse fixado em, digamos, US$
50/barril, as receitas de exportação russas provavelmente cairiam e Vladimir
Putin perderia parte do financiamento para a guerra russa contra a Ucrânia.
Ademais, os preços da energia cairiam acentuadamente. De fato, apenas com essa
notícia, os preços do gás e do petróleo já caíram, embora ainda sejam quatro
vezes mais altos (gás) e 80% mais altos (petróleo) do que antes do início da
guerra.
Essa arma de limite de preço funcionará? Há muitos furos nessa medida
extrema. A Rússia poderia se recusar a exportar petróleo a um preço mais baixo,
pois isso não apenas reduziria uma de suas poucas fontes de receita externa,
mas também exigiria o fechamento de poços de petróleo que não são facilmente
reiniciados. Um desligamento prolongado dos poços de petróleo russos pode
causar danos graves e duradouros à sua capacidade de produção.
Mas a Rússia pode continuar a exportar petróleo para países que se
recusam a respeitar o teto de preços do G7, por exemplo, China e Índia. De
fato, antes da invasão, a Índia quase não importava petróleo russo. Em julho,
estava importando cerca de 1 milhão de barris por dia de petróleo russo (com
grandes descontos), ou cerca de 1% da oferta global. A medida funcionará se
todos os países concordarem em usar os financiamentos e os seguros restringidos
pelo G7 e não recorrer àqueles que estão fora dessas restrições. Muitos países
podem não desejar seguir as normas financeiras impostas pelo G7.
Enquanto isso, os enormes aumentos nos preços globais de energia (e de
alimentos) estão criando uma catástrofe no custo de vida nas populações do
mundo em geral. Em toda a Europa, os salários reais estão caindo como se pode
ver no gráfico em sequência.
A situação pior ocorre na Grã-Bretanha. O Banco da Inglaterra (BoE)
prevê que a taxa de inflação atingirá um pico de 13,3% em outubro e a renda
real disponível das famílias deve cair 3,7% entre 2022 e 2023, tornando esses
dois anos os piores já registrados. Mas pode ser ainda pior do que isso. O
Citibank prevê que a inflação deve subir para 18,6% em janeiro, o pico mais
alto em quase meio século, devido à disparada dos preços do gás no atacado. E o
Goldman Sachs vai mais longe, pois espera aumentos ainda maiores do gás; assim,
agora espera que a inflação do Reino Unido atinja um pico de 22%!
Como sempre, são os pobres os mais atingidos. Mais de 40% das famílias
do Reino Unido não poderão aquecer suas casas adequadamente em janeiro, quando
as contas de energia aumentarem novamente. Sim, esta é a situação da
Grã-Bretanha, em 2022. Cerca de 28 milhões de pessoas em 12 milhões de
residências, ou 42% de todas as residências, não poderão se dar ao luxo de
aquecer e alimentar adequadamente suas propriedades a partir de janeiro, quando
uma conta de energia anual típica deverá exceder £ 5.300.
Mesmo em outubro, quando o teto do preço da energia da Grã-Bretanha
aumentar em 80%, para £ 3.549, 9 milhões de famílias enfrentarão a pobreza de
combustível. Com a atual crise do custo de vida sendo mais sentida pelas
famílias de baixa renda, a pobreza absoluta está a caminho de aumentar em três
milhões nos próximos dois anos), enquanto a pobreza infantil relativa deve
atingir seu nível mais alto (33% em 2026-27) desde os picos da década de 1990.
Veja-se, agora, por que está sendo aplicado um teto de preço de energia
no interior do Reino Unido? Supostamente, é para impedir que as empresas de
energia aumentem demais os preços e obtenham superlucros às custas das
famílias. No Reino Unido, um regulador chamado Ofgem estabelece um preço máximo
a cada seis meses com a finalidade suposta de regular a lucratividade das
empresas varejistas de energia, as quais foram privatizadas e, por isso, cobram
dos clientes por gás e eletricidade.
Mas esse limite de preço disparou de menos de £ 1.000 por ano, em 2021,
para £ 3.549 em outubro e, em seguida, deve chegar a £ 6.600 até o verão do
próximo ano. Esse tipo de aumento é completamente impossível de ser absorvido
pelas famílias médias e pelas pequenas empresas; muito menos ainda podem ser
absorvidos pelos mais pobres.
Como explicar esses aumentos de preços? Muito se fala dos lucros obtidos
pelos monopólios retalhistas de energia e é verdade que estão a obter grandes
lucros e a distribuir milhões aos seus acionistas. Mas quando se analisa o
detalhamento dos custos desses varejistas, descobre-se uma história mais
secreta.
O que se descobre é que as empresas de varejo de energia são restritas
pelo Ofgem a apenas uma taxa de lucro de 2% sobre os custos (totais, não
operacionais). Mas esses custos incluem os custos de distribuição de gás e
eletricidade pelos canos e linhas para as residências. Os fornecedores desses
serviços são um grupo separado de monopólios (no Reino Unido, os Seis Grandes).
Os Seis Grandes podem cobrar uma taxa de lucro de até 40% em seus preços para
as empresas de varejo e, assim, levar cerca de 7 a 10% do preço para o dono da
casa. As empresas de distribuição são de propriedade de vários fundos de hedge
e empresas de private equity que recebem sua parte.
Mas a maior parte da conta doméstica é o preço cobrado pelas empresas
globais de energia pelo gás e petróleo que fornecem, como Shell, BP, Mobil,
Exxon etc.
É aqui que está a verdadeira bonança na conta lucros. A profusão de
ganhos no segundo trimestre incluiu um lucro recorde de US$ 11,5 bilhões para a
rival da BP, Shell, lucros recordes de US$ 17,6 bilhões e US$ 11,6 bilhões,
respectivamente, para as americanas ExxonMobil e Chevron, além de US$ 9,8
bilhões para a francesa Total. Nos primeiros seis meses do ano, as empresas
obtiveram lucros ajustados combinados de quase US$ 100 bilhões.
Então, quando o chefe da Ofgem do Reino Unido, Jonathan Brearley, diz
que “não podemos forçar as empresas a comprar energia por menos do que o preço…
precisamos todos trabalhar juntos”, de certa forma, ele está certo. Se o
mercado governa, então, diante de seu poder regulatório, pouco se pode fazer;
eis que ele trabalha com o imperativo sistêmico de que as empresas devem ter
lucro, o máximo lucro possível. Mas se o objetivo do Ofgem fosse garantir um
acordo justo para as famílias em condições de monopólio natural, então
claramente ela falhou em atingir esse objetivo.
Leia também: Crise na Ucrânia: os russos estão errados? https://bit.ly/3OoyqJI
A privatização da distribuição de gás e eletricidade no Reino Unido
desde o final dos anos 1980 e início dos anos 1990 resultou em um punhado de
empresas muito grandes e muito poderosas desfrutando de grandes margens de
lucro com os acionistas colhendo grandes dividendos, enquanto as famílias do
Reino Unido estão sujeitas a contas de energia altíssimas.
Por exemplo, os seis grandes distribuidores pagaram quase 23 bilhões de
libras em dividendos, seis vezes seus impostos nos últimos dez anos. Mas então,
como disse um CEO, “as empresas estão lá para obter lucro, e os dividendos são
uma maneira de compartilhar isso com os acionistas”.
Os poderosos também estão chocados com a explosão do preço da energia.
De fato, vários chefes de Estado questionaram o princípio econômico da
precificação de mercado. Um deles, Boris Johnson, disse que ele era
“francamente ridículo”, outro, Emmanuel Macron, firmou que era “absurdo”,
finalmente, Ursula von der Leyen concluiu que “este sistema de mercado não
funciona mais”. A presidente da União Europeia admitiu que isso estava “expondo
as limitações do nosso atual projeto de mercado de eletricidade”. Mas qual é a
resposta efetiva? Bem, “precisamos de um novo modelo de mercado de eletricidade
que realmente funcione” (!). “Desenhos de mercado alternativos que poderiam
incluir a dissociação do gás da formação do preço de mercado”. Assim, os preços
do gás seriam controlados e não sujeitos ao mercado – mas como?
Não vou me aprofundar na miríade de propostas vindas do governo do Reino
Unido, do Partido Trabalhista da oposição e de vários grupos de reflexão sobre
como aliviar ou evitar a catástrofe que está por vir para milhões de lares na
Europa e particularmente no Reino Unido. Não vou fazer isso porque há uma coisa
que todos eles têm em comum – não há propostas para acabar com o mercado de preços
de energia ou trazer para a propriedade comum as empresas de energia, varejo,
distribuição e atacado (no Reino Unido, a melhor proposta sugere a
nacionalização apenas do varejo). Fazer isso exigiria uma transformação
revolucionária da estrutura das economias, começando pela energia.
E, no entanto, mesmo em escala limitada, a propriedade pública da
energia funciona. Na Alemanha, por exemplo, dois terços de toda a eletricidade
são adquiridos de empresas de energia de propriedade municipal e, desde 2016, o
conselho da cidade de Munique fornece energia renovável suficiente para as
necessidades de todas as famílias. A Dinamarca tem uma rede de transmissão
totalmente de propriedade pública e a maior proporção de energia eólica do
mundo. Um sistema de energia de propriedade pública pode ser complementado por
desenvolvimentos de menor escala, como energia de propriedade da comunidade. Em
2008, a ilha de Eigg foi a primeira comunidade a lançar um sistema elétrico
movido a energia eólica, hídrica e solar, permitindo que a população local
tivesse maior participação e voz em sua energia.
Mas esses passos são limitados e parciais. No geral, as regras do
mercado, assim como o Big Oi” têm o comando da situação. Agora os
preços de mercado estão sendo agravados pelas tentativas desesperadas dos
líderes do G7 de derrotar a Rússia na guerra.
Como resultado, os esforços para controlar as emissões de carbono e
cumprir as metas globais estão sendo revertidos à medida que a produção de
energia de combustíveis fósseis é acelerada e os subsídios aos combustíveis
fósseis para ajudar a controlar os preços da energia são aumentados. Os
subsídios fiscais de energia não apenas reforçam a dependência da União
Europeia das importações de combustíveis fósseis, mas também trabalham contra a
consecução das metas climáticas do Pacto Verde Europeu.
Nos EUA, a geração de energia a carvão foi maior em 2021 sob o
presidente Joe Biden do que em 2019 sob o então presidente Donald Trump.
Note-se que o último se posicionou como o suposto salvador da indústria de
carvão da América. Na Europa, a energia do carvão aumentou 18% em 2021, seu
primeiro aumento em quase uma década.
O economista Dieter Helm, professor de política energética da
Universidade de Oxford, diz que a mudança dos combustíveis fósseis raramente
pareceu mais complicada. “A transição energética já estava com problemas – 80%
da energia do mundo ainda é proveniente de combustíveis fósseis” – disse ele.
“Espero que, no curto prazo, os EUA aumentem a produção de petróleo e gás e o
consumo de carvão da UE possa aumentar” – completou.
Não há como escapar da conclusão óbvia. Para evitar a catástrofe
energética e reverter a enorme perda nos padrões de vida já em curso,
precisamos assumir as empresas de combustíveis fósseis e eliminar gradualmente
sua produção com maior investimento em energias renováveis, para reduzir os
preços dos combustíveis para residências e pequenas empresas.
Mas isso significa um plano global para direcionar investimentos em
coisas que a sociedade precisa, como energia renovável, agricultura orgânica,
transporte público, sistemas públicos de água, remediação ecológica, saúde
pública, escolas de qualidade e outras necessidades atualmente não atendidas.
Tal plano também poderia equalizar o desenvolvimento em todo o mundo, transferindo
recursos da produção inútil e prejudicial do Norte para o desenvolvimento do
Sul, construindo infraestrutura básica, sistemas de saneamento, escolas
públicas, assistência médica. Ao mesmo tempo, um plano global poderia ter como
objetivo fornecer empregos equivalentes para trabalhadores deslocados pela
redução ou fechamento de indústrias desnecessárias ou prejudiciais.
Em vez disso, milhões enfrentam uma crise de custo de vida de proporções
recordes. E não se esqueça da perspectiva de uma nova queda global na produção,
investimento e emprego. De acordo com o FMI, o PIB real nos países do G20 (ou
mais exatamente 18 principais economias, exceto Arábia Saudita) caiu no segundo
trimestre de 2022. Mas a taxa de inflação continuou a subir.
E o FMI observa: “A perspectiva global já escureceu significativamente
desde abril. O mundo pode em breve estar à beira de uma recessão global, apenas
dois anos após a última.” Jacon Frenkel, chefe do consórcio do Grupo dos 30 de
formuladores de políticas globais, resumiu: “Temos a crise energética, temos a
crise alimentar, temos a crise da cadeia de suprimentos e temos a guerra, tudo
isso tem profundas implicações para o desempenho econômico do mundo”.
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