Jean-Luc Godard, contraditório e coerente,
até o fim
A partir da década de 1960,
Jean-Luc Godard foi um dos que ultrapassou os limites estéticos e narrativos da
7ª arte.
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Jean-Luc Godard, cineasta emblemático da Nouvelle Vague (Nova Onda), morreu nesta terça-feira (13), aos 91 anos. O cineasta franco-suíço recorreu ao suicídio assistido para acabar com sua vida, como disse o assessor da família à Agence France-Presse.
“O Sr. Godard recorreu à assistência jurídica na Suíça para a saída voluntária na sequência de ‘múltiplas patologias incapacitantes’ de acordo com os termos do relatório médico”, explicou Patrick Jeanneret, confirmando informação publicada pelo jornal Liberation.
Na Suíça, existem diferentes formas de morte assistida, como a eutanásia passiva e o suicídio assistido. Esta última, não especificamente regulamentada, mas autorizada sob certas condições, é a prática mais conhecida. A prática é assim enquadrada por códigos de ética médica e apoiada por organizações. A mais importante delas, Exit, acompanhou cerca de 1.400 pessoas até a morte em 2021.
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A revolução permanente
Nascido em 3 de dezembro de 1930 em Paris, o mais ilustre dos artistas franco-suíços morreu deixando uma obra incontável. Com a perda de um dos maiores cineastas de todos os tempos, ficam os eletrochoques de imagens e sons que sua obra ocupa na memória dos amantes da sétima arte em todo o mundo.
Sua amplitude e influência é daquelas que poucos realizadores do mundo podem se orgulhar. O Cinema Novo brasileiro, com Glauber Rocha à frente, é caudatário da Nouvelle Vague, como de outras vanguardas europeias, ao passo que se define em sua originalidade antropofágica. Pode-se dizer até que se influenciaram mutuamente. Os filmes brasileiros e franceses desse período, anos 1960, soam atuais ainda hoje.
Seu cinema era uma ruptura da modernidade nascida com o neorrealismo italiano e do desastre da Segunda Guerra Mundial. Godard terá sido o mais apaixonado e provocador representante da Nouvelle Vague, tendo se tornado a bandeira do movimento nos quatro cantos do planeta, um exemplo a ser seguido ou admirado por todos aqueles que achavam que o cinema nasceu para mudar o mundo. Foi um dos mais amados e odiados cineastas, sem meios termos.
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Os jovens casais de seus filmes fritaram no inferno e no paraíso da liberdade amorosa da modernidade líquida. Acossado (A bout de souffle), primeiro longa-metragem, realizado em 1960, foi o meteoro fumegante e mortal, sucesso imediato de público e crítica, choque estético e influência para muitos futuros cineastas. Sempre vai ser citado entre os poucos títulos que mudaram a história do cinema.
Proximidade e afastamento do público
Aliás, todo jovem de mente fértil sai da exibição de filmes de Godard crente de que também pode ser cineasta, com vontade de sair contando histórias com uma câmera trêmula na mão. Por mais incomuns que sejam as narrativas de seus filmes, a gente sempre volta aos seus filmes para ter essa sensação de também ser um autor. Seus filmes não são como um blockbuster americano cheio de ação entediante, impossíveis de serem realizados por artistas que não sejam produtores bilionários. Estão mais para filmes com aparência de caseiros e simples, quando na verdade são sofisticados com sua montagem dialética genial, inesperada e surpreendente.
Godard era descendente de uma privilegiada classe média alta protestante franco-suíça. Passou pelos horrores da Segunda Guerra Mundial cercado de privilégios que lhe foram concedidos pelas afinidades colaboracionistas do avô. Por essa e outras, se desentendeu com a família, a ponto de ser proibido de comparecer ao funeral de sua mãe em 1954.
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Por alguns anos, sua família vai ser constituída por cineastas rebeldes como ele, que ridicularizavam a indústria audiovisual de seu país, ao ponto de reinventá-la. A glória da Nouvelle Vague vai ser sua desgraça, também. Os autores vão debandando aos poucos do movimento para recriar o cinema clássico a partir do frescor trazido pelo movimento. Godard será o Trotsky da revolução permanente, mantendo seu modus operandi solitário pelas décadas seguintes, sem se importar com os modismos audiovisuais, mesmo que derrapando, às vezes.
Há quem diga que Godard restou como o único sinônimo de arte. Afinal, são mais de cem filmes em 60 anos de carreira. Se estiver de luto, reveja ou comece por Uma mulher é uma mulher (1961),Viva sua vida (1962), Bande à part (1964), Masculino Feminino (1966), Desprezo (1963), Pierrot le fou (1965). São os maiores representantes de sua ironia e graça, de sua leveza, melancolia e revolta, da ambição do pensamento e da crueza dos sentimentos, citação e invenção, a homenagem aos gêneros, mas também sua traição, os amores efêmeros e a contundente intuição das questões sociais de seu tempo.
Dentre tantas obras, muitas foram abertamente militantes e internacionalistas, especialmente o período em que se uniu ao grupo Dziga-Vertov de cinema político. Seus filmes polêmicos pareciam querer deliberadamente destruir seu status conquistado de majestade artística. Foi assim com filmes como Two or Three Things I Know About Her (1967), La Chinoise (1967), Fim de semana (1967), Longe do Vietnã (1967), Um filme como os outros (junho de 1968), Pravda (1969), Lutas na Península da Itália (1970), Até a vitória (filmado na Jordânia, permaneceu inacabado), ou o western marxista-leninista Le Vent d’est (1970).
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Muitos desses filmes não interessaram a ninguém e representaram um momento crítico para sua reputação. Tout va bien (1972), no qual duas estrelas, Yves Montand e Jane Fonda são sequestrados por trabalhadores em greve, é, de certa forma, o atestado de óbito do esquerdismo na França. Sua aproximação e distanciamento da esquerda tradicional também são uma constante na obra cinematográfica. Contradições tão perenes que se assemelham a coerência.
Filmes para si
Até outro dia, na altura dos quase 90 anos, Godard ainda filmava, ainda que sombriamente diante da decadência civilizatória que testemunhava. Seus filmes dos últimos anos se abrem apenas para aqueles que concordam em se entregar a eles. Dizem que assistir filmes como Adieu au Langage e Les Ponts de Sarajevo, ambos de 2014, e o último Le Livre d’image (2018) é como entrar nos pensamentos de um homem de dez mil anos de idade.
No obituário que escreveu ao Le Monde, Jacques Mandelbaum define a última contradição de Godard, ao mandar seu filme a Cannes, em 2019, onde nunca ganhou nada, sem levá-lo ao circuito comercial. “Esta contradição última coroa uma jornada que sempre foi nutrida pela contradição. Entre o fervoroso defensor de um cinema popular e menor e o artista que adere ao elitismo da alta cultura, entre o dândi de direita e o esquerdista enfurecido, entre o arauto do cinema de autor e o cineasta que aconchega o autorismo burguês, entre aquele que se considera um judeu do cinema e aquele que faz efeitos de montagem entre Golda Meir e Adolf Hitler. A que Godard, exatamente, se dedica? Talvez à fotografia que abre o auto-retrato JLG/JLG, este Godard criança que se parece com Kafka, tão triste, tão orgulhoso e tão só, assim comentada pelo adulto que se tornou: “Já estava de luto por mim, meu e único companheiro.»
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