Reativar os Pontos de Cultura, já!
Um dos programas mais bem-sucedidos dos
governos Lula precisa voltar. Além de incentivar a imensa criatividade cultural
do país, ele é vacina contra a “guerra cultural” travada pela extrema-direita.
Seu criador propõe como retomá-lo
Célio Turino em entrevista a Cauê
Seignemartin Ameni, na Jacobin Brasil
Nos ataques golpistas em 8 de janeiro, as obras de artes foram um alvo central dos bolsonaristas. Municiados com fake news produzida em escala industrial pela extrema direita, o Brasil já teve uma vacina para combater a desinformação: os Pontos de Mídia Livre – um conceito que fazia parte de um dos programas mais bem sucedidos do governo Lula, os Pontos de Cultura.
O programa focava em potencializar grupos, coletivos e associações que já fazem um trabalho cultural Brasil afora. No final do governo Lula, em 2010, o programa contava com 3.500 Pontos de Cultura, criando 30 mil postos de trabalho e beneficiando mais de 8 milhões de pessoas – maioria jovens vivendo em regiões mais afastadas, de favelas a aldeias indígenas e quilombos, unindo cultural digital com saberes tradições e ações comunitárias fincada em territórios estratégicos. Embora o programa tenha sido descontinuado pelo governo petista a partir de 2011, ele se tornou uma referência mundial e hoje é uma realidade em mais de 17 países, como Argentina, Chile e etc., e até o papa Francisco é grande fã do projeto.
Para entender mais sobre o programa e como poderíamos reativá-lo, conversamos com um dos idealizadores: o historiador Célio Turino, que na época era Secretário da Cidadania Cultural no MinC. Para ele, o programa é perfeito para reconstruir o país após o descalabro bolsonarista.
Autor de diversos livros sobre cultura, Turino viaja a América Latina difundindo as ideias da Cultura Viva e do Bem Viver. Segundo ele, o programa tem baixo custo unitário e o retorno é enorme. O Ministério da Cultura poderia, além de reativar os Pontos de Cultura, promover caravanas culturais e festivais pelo país, utilizando o orçamento já existente.
Qual sua primeira avaliação nesses primeiros dias do governo Lula?
Dentro da correlação de forças social, política e parlamentar, a composição do governo é a que pôde ser feita. Nesse sentido o presidente Lula é muito sagaz, o lema do governo, inclusive, reflete o sentido do novo governo: União e Reconstrução. Importante não tropeçar nos primeiros dias e há que ter efetividade na entrega de soluções, que deve acontecer rapidamente.
Penso, no entanto, que o ministério das Comunicações deveria ter sido tratado com maior cuidado, afinal, a grande derrota do campo progressista deu-se na batalha cultural e de comunicação. Entendo a necessidade de composição, mas poderiam ter utilizado um ministério menos estratégico para essa composição alargada.
Espero, igualmente, que o governo seja firme no desmantelamento dos atos golpistas, que podem enveredar para o terrorismo bolsofascista e aí teremos complicações para a estabilidade do país. O êxito em conter a tentativa de Golpe de Estado, com a invasão dos edifícios dos três poderes da república merecem aplauso, em especial as ações do Ministério da Justiça e do Interventor Federal na Segurança Pública do DF, bem como a capacidade e credibilidade do presidente Lula em efetivar uma União Nacional em defesa da democracia. O golpismo e o terrorismo não vão prevalecer em nosso país.
A pasta da Cultura vai ter pela primeira vez na história um orçamento de R$ 10 bilhões. O que podemos fazer com isso?
Há que ter cuidado na análise e anúncio desses valores. Quem não tem experiência em orçamento público pode se equivocar e se deslumbrar com os números e em seguida se decepcionar. Considero que não vale a pena focar nos valores, até porque há a excepcionalidade de os recursos da Lei Paulo Gustavo (LPG), que deveriam ter sido executados em 2022, só acontecerem neste ano. Tirando a LPG o orçamento efetivo é de R$ 6,1 bilhões.
Outro ponto que merece cuidado é que a apresentação apenas de valores, sem demonstrar o sentido do uso desses recursos de forma mais precisa pode ter efeito inverso, gerando desinformação, fake news e ataques à Cultura, como tem sido a tônica do reacionarismo e da extrema direita, já de vários anos. Mais importante que anunciar valores é dizer como esses recursos serão aplicados e como a sociedade brasileira irá se beneficiar.
Os benefícios podem ser muitos, mas para tanto há que ter política cultural clara, com sentido, orientações comuns e macro-programas, como o Cultura Viva e os Pontos de Cultura, recuperação de patrimônio histórico, ativando inclusive a construção civil, circulação de bens culturais por todo país e estruturação do Sistema Nacional de Cultura.
Para que o leitor possa compreender melhor o orçamento da cultura em 2023, como ele está estruturado?
Primeiro. Desta quantia, R$ 6,9 bilhões (R$ 3,9 bi -Lei Paulo Gustavo- e R$ 3 bi -Aldir Blanc 2) são resultado de ampla mobilização da sociedade que se iniciou em 2020, com a Lei Aldir Blanc e isso precisa ser reconhecido. São recursos de lei, que serão distribuídos aos 5.700 municípios do Brasil, aos 26 estados e ao Distrito Federal, independente de partido político ou mesmo de decisão do Ministério.
Como eu disse, a aplicação será toda descentralizada, em cálculo prévio. Fui eu quem fiz o cálculo para a descentralização, aqui de casa, à mão, junto com a Bia, assessora da deputada Jandira Feghali (PCdoB), então relatora da Aldir Blanc 1. Com a fórmula 80/20 (80% segundo a população e 20% de acordo com os Fundos de Participação dos Estados e Municípios), adotadas agora nas Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2, garantimos uma melhor equalização na distribuição de recursos nacionais. Também evita situações como a que vimos durante o governo passado, com liberações em critério, como no Ministério da Educação e outros, em que lobistas e pastores cobravam até barra de ouro para liberação de recursos aos municípios. A distribuição ficou muito mais transparente, criteriosa e justa.
Com o cálculo que fizemos, os Estados com maior IDH e potencial de receita receberam um valor per capita menor que aqueles Estados com menos recursos e mais custos (custo amazônico, por exemplo). Isso resultou que o Estado de São Paulo teve o menor valor per capita (R$ 5,5 por habitante) e Estados como Amapá e Roraima receberam R$ 24 por habitante, ficando os Estados do nordeste com uma média de R$ 10 a R$ 12. Foi uma medida justa e necessária no contexto de uma lei emergencial, durante a pandemia da Covid-19 e resultado de uma ampla mobilização, que resultou na aprovação da Lei Aldir Blanc em apenas 40 dias.
O cálculo foi feito no domingo que antecedeu a votação da Lei Aldir Blanc. Para as novas leis o ideal seria uma fórmula mais precisa, o que não houve. Quando dos Pontos de Cultura, ainda em 2004, eu iniciei essa prática de cálculo prévio para distribuição de recursos para os entes federados, foi a primeira vez que isso aconteceu na cultura. Naquele cálculo usamos três fatores: IDH, densidade populacional e diversidade cultural de projetos apresentados proporcionalmente. Essa fórmula, ao meu ver, seria mais adequada para o momento, até porque já não é uma situação emergencial. Seria possível acrescentar outros fatores, inclusive, como percentual de populações em zonas vulneráveis e fronteiras, custo amazônico, ambiental e etc.. Claro que a cada novo fator a fórmula vai ficando mais complexa. Mas é possível fazer e resulta em tabela bem justa. Em todo caso, a fórmula que será utilizada é a mesma da Aldir Blanc 1, que garantiu uma razoável e equitativa distribuição de recursos, uma vez que Estados e municípios ficam sabendo de antemão qual o recurso que lhes será destinado.
Todavia, alerto que isso irá gerar alguma frustração nos Estados mais populosos, sobretudo nas periferias e áreas historicamente menos atendidas com recursos da cultura. Daí a necessidade de uma regulamentação e acompanhamento da execução que sejam muito eficientes.
Também há que levar em conta que foram eleitos governos bastante conservadores, e por que não, reacionários, em muitos Estados e isso também terá implicação nos municípios. A nova gestão no MinC deverá ter muita habilidade e capacidade propositiva para conseguir assegurar uma boa aplicação da lei, de forma transparente, democrática e, sobretudo, que atenda às necessidades de uma Cultura a re-encantar o Brasil, assegurando que o recurso chegue aonde mais precisa. Bem como a base da cultura deverá estar atenta e se mobilizar com força para evitar problemas em suas localidades.
Voltando ao número de R$ 10 bilhões que à primeira vista impressiona. Tirando os R$ 6,9 bi das leis aprovadas no ano passado, restam aproximadamente R$ 3 bilhões. Desse total, perto de R$ 1,5 bi já está comprometido com a lei do Mecenato via renúncia fiscal (conhecida como Lei Rouanet). Isso é de um padrão já estabelecido e não significa agregação de novos valores. Boa parte desses recursos seguirão financiando projetos já em curso, vários muito bons e necessários, ressalto, como a manutenção de museus e instituições culturais, sendo que a cada R$ 1,00 investido pela lei Rouanet há um retorno de R$ 1,60 para a economia como todo. O fato é que não haverá um novo impacto na percepção e alocação desses recursos, havendo alguns ajustes que poderão melhorar a execução, mas sem que isso adicione novos recursos.
O mesmo com os recursos da Condecine, que vem desde 2001 e vai para o audiovisual, igualmente para projetos e lógica em curso. Ou seja, os recursos realmente disponíveis para aplicação direta pelo no Ministério da Cultura, para todas as secretarias e Instituições vinculadas, como IPHAN, Funarte, Palmares… não serão muito significativos nesse ano. Arrisco dizer que serão numericamente inferiores ao orçamento anual disponível no período até 2010. Daí o cuidado na apresentação dos números, até para evitar frustrações.
Quais deveriam ser as prioridades?
Toda essa energia de ódios, mentiras e violências por parte da extrema direita é resultado, em grande parte, da manipulação de afetos e do imaginário da sociedade, levando-a a um horizonte utópico regressivo e reacionário, conforme vimos com os ataques golpistas de 8 de janeiro. Por isso, cultura e comunicação, mais até que ações de repressão e legislação, são estratégicas para uma reconstrução duradoura de um ambiente democrático e esperançoso para o país. Isso para construirmos uma nova hegemonia no imaginário social, mais alegre, criativa e solidária.
Percebendo isso, na madrugada seguinte à apuração dos votos no primeiro turno eu escrevi o artigo Cultura para Encantar o Brasil. Em resumo, proponho três medidas para a ação da cultura stricto senso, e que, ao meu ver, deveriam ter implantação imediata:
Caravanas Sérgio Mamberti de Cultura e Arte – Mil caravanas durante 2023, organizadas de forma descentralizada e que deveriam cobrir o conjunto dos 5.700 municípios do Brasil e as periferias das grandes cidades, em multilinguagens, de brigadas muralistas e de grafiti às artes cênicas, música, oficinas culturais, livro e leitura… e envolvendo dezenas de milhares de artistas em todo o Brasil. Custo total de R$ 300 milhões (R$ 300 mil por caravana)
500 Festivais e Mostras de arte pelo país – Também de forma descentralizada e abrangendo todo o território nacional e em multilinguagens. Será um convite à criatividade artística nacional, do contrário como surgirão nossos novos Chicos, Gils e Caetanos? E não só na música, mas em todas as linguagens artísticas. Uma média de 10 festivais acontecendo simultaneamente por semana, em todo o território nacional. Custo Total R$ 250 milhões.
5.000 Pontos de Cultura recebendo financiamento público no valor unitário de R$ 120 mil/ano. O Ponto de Cultura é o melhor meio para chegar aos territórios em trabalho de base permanente, e já provamos sua eficácia. No entanto, nos últimos anos houve um abandono no financiamento público a essas ações, que continuam acontecendo em milhares de comunidades espalhadas pelo Brasil. Essa meta deve e pode ser alcançada em, no máximo seis meses de trabalho, e demonstro como é possível atingi-la. Custo Total: R$ 600 milhões em 2023.
Como fazer isso se você mesmo observou que os recursos diretos do Ministério da Cultura não serão tão significativos?
Executando a proposição “união e reconstrução” adotada pelo presidente Lula. Repasse de recursos orçamentários e políticas de edital são meios para execução de políticas públicas, jamais devem ser o fim. A finalidade tem que ser o efeito na vida das pessoas, e não somente na chamada comunidade das artes e da cultura. O efeito na vida das pessoas comuns, as crianças que terão mais acesso a atividades culturais, aos jovens, aos idosos, aos territórios de identidade, aos trabalhadores, à população adulta, ao povo como um todo, enfim. O grande desafio da nova gestão do MinC está em apresentar projetos comuns à aplicação dos recursos advindos das Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2.
Como exemplo, apresento a seguinte proposta: assegurar o financiamento inicial de 5.000 Pontos de Cultura no país, em valor igualitário de R$ 120 mil/ano (importante um MDC – mínimo denominador comum, conforme aprendemos na matemática – quando garoto aprendi no quarto ano primário). E com prazo para que aconteça em no máximo seis meses (com dinheiro chegando na ponta), isso é perfeitamente viável.
Como? Destinando 20% dos recursos totais da lei Aldir Blanc II para uma seleção nacional unificada (articulada entre MinC, Fórum dos Secretários Estaduais, Fórum de Secretários das Capitais e Regiões Metropolitanas, Confederação dos Municípios e Sociedade Civil), em formação paritária.
Quanto isso representa em recursos totais? R$ 600 milhões. Recursos já existentes com a lei Aldir Blanc II (ou seja, não haverá novo ônus ao orçamento de 2023). Quanto resulta em benefício direto à sociedade? 15 milhões de pessoas diretamente atendidas nas comunidades; 1,5 milhão em atividades regulares, com cursos, oficinas de arte e cultura, sobretudo para jovens, além de grupos permanentes de teatro, dança, cineclubes, clubes de leitura e etc.; ao menos 50 mil postos de trabalho – dados IPEA/2009 sobre a média do Impacto de um Ponto de Cultura em suas comunidades.
Além dos 20% para Pontos de Cultura, sugiro mais 10% para demais ações do Cultura Viva (Griôs, Cultura e Saúde, Economia Viva, Pontinhos, Pontos de Mídia Livre, Interações Estéticas, Pontos de Leitura, etc.). Isso resulta em R$ 900 milhões de recursos que já serão distribuídos nesse ano pela lei Aldir Blanc II. Com as Mil Caravanas Sérgio Mamberti de Arte e Cultura e os 500 Festivais e Mostras,o mesmo. Ainda assim sobrará R$ 1,55 bilhão para outras ações a serem executadas pelos Estados e municípios. Importante que esses recursos sejam muito bem utilizados, como na recuperação do patrimônio histórico e artístico, serviços educativos em museus e formação artística.
Se não houver uma clara diretriz o dinheiro pode se perder em editais dispersos e sem unidade. Importante levar em conta que a Lei Aldir Blanc II, de autoria da Jandira Feghali, foi pensada para estruturar o Sistema Nacional de Cultura, por isso deve ter aplicação integrada, como acontece com o Fundeb (educação Básica) e o SUS. Sabendo, inclusive, que essa mesma quantidade de recursos virá anualmente, por um período de 5 anos. Houve muito trabalho para chegar até aqui, por isso o Estado brasileiro (aqui incluo União, Estados e municípios, bem como a sociedade) não pode errar.
E quanto à Lei Paulo Gustavo?
A característica da Lei Paulo Gustavo é diferente. Enquanto a Aldir Blanc II foi pensada para a estruturação do Sistema Nacional de Cultura (SNC) com fluxo contínuo de recursos, começando por transferência anual de R$ 3 bilhões por cinco anos, a Lei Paulo Gustavo tem caráter emergencial, como foi com a Aldir Blanc I. Ela destrava os recursos já existentes no Fundo Nacional de Cultura, incluindo o Fundo Setorial do Audiovisual, que foram contingenciados e acumulados ao logo de duas décadas, é preciso esclarecer.
Vale explicar ao leitor como esses recursos foram encontrados. E que são recursos que, por lei, só podem ser aplicados na cultura. Foi a partir da Lei Aldir Blanc I que percebemos que havia essa quantidade de recursos retidos no Fundo Nacional de Cultura. Por que houve esse acúmulo? Porque anualmente os governos, na administração do orçamento, fazem contingenciamento de recursos. Ou seja, o recurso está no orçamento, mas não pode ser utilizado e essa retenção é contabilizada como superávit fiscal.
Quando a mobilização pela lei Aldir Blanc I, que ainda nem levava esse nome, a deputada Perpétua Almeida, líder do PCdoB na Câmara, conseguiu marcar uma reunião com o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, no dia 30 de abril de 2020. Dessa reunião participaram, além deles, a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) e os deputados José Guimarães (PT-CE) e André Figueiredo (PDT-CE), a Zélia Duncan e eu. Foi uma ótima reunião, acontecida por meio virtual. Foi esse encontro que destravou o processo que desembocou na aprovação praticamente unânime da Lei Aldir Blanc, 40 dias depois.
O presidente da Câmara se comprometeu em levar a votação de urgência uma lei para a cultura e pediu uma estimativa de valor. Como gestor de cultura há algumas décadas eu apresentei um número de aproximadamente R$ 1,2 bilhão. De imediato ele considerou bastante razoável e percebemos que poderíamos avançar no valor. Jandira foi nomeada relatora para unificar as diversas leis emergenciais para cultura, a partir da inicialmente apresentada pela Benedita da Silva (PT-RJ) e eu fiquei auxiliando-a voluntariamente. Foi quando eu sugeri que fosse incluído o recurso retido no FNC. Ela pediu para a assessoria dela apurar os números e qual nossa surpresa quando descobrimos R$ 2,87 bilhões retidos no fundo. Daí os R$ 3 bilhões da Aldir Blanc, arredondando.
Ocorre que alguns dias antes da votação da Lei, nos demos conta que a maior parte desse recurso era oriunda do Condecine (contribuição para o audiovisual, de uso exclusivo para o audiovisual) e Jandira, de forma muito sagaz, conseguiu que os recursos para a LAB viessem do chamado “orçamento de guerra”, de recursos para o enfrentamento à Covid, preservando os recursos no FNC.
Conto essa história porque é necessário que as pessoas compreendam que todo recurso acumulado no FNC e FSA (fundo setorial do audiovisual) é resultado de muitos anos de recursos da sociedade brasileira, destinados à cultura, arrecadados pela atividade cultural, e que não foram utilizados nos momentos em que deveriam ter sido, isso desde 2001. Foi essa conquista da Aldir Blanc que permitiu que um novo projeto fosse apresentado na sequência, destravando os recursos do Fundo Nacional de Cultura, que é a essência da lei Paulo Gustavo, e que acumulou arrecadações outras, de 2020 para cá, no que resulta nos R$ 3,9 bilhões.
Por isso é muito importante que esses recursos sejam muito bem aplicados, sabendo que desse valor aproximadamente R$ 3 bilhões terão uso exclusivo no Audiovisual. Como houve muito atraso na aprovação e execução da Lei Paulo Gustavo, o ideal seria que ela não fosse aplicada dentro da lógica da emergência, cabendo orientações para investimentos mais estruturantes. Penso que isso deveria ser resolvido agora na regulamentação, que está para acontecer nas próximas semanas. A indústria audiovisual é naturalmente concentrada, seja em Hollywood, na Coreia, na Nigéria ou em Buenos Aires. É da característica da indústria, as temáticas, as locações, são descentralizadas, mas a produção tem que ter um polo. Num país imenso como o Brasil cabem vários polos e eles existem para além do Rio de Janeiro e São Paulo, como em Recife, Porto Alegre… Certamente deveria haver um na Amazônia. Mas se houver uma grande pulverização creio que o resultado não será tão bom para a indústria do audiovisual no país.
Como ela parte da mesma base de cálculo da Aldir Blanc I, isso inevitavelmente acontecerá. Espero que o povo do audiovisual perceba isso a tempo e a regulamentação consiga dar uma solução real para aplicação dos recursos. Por exemplo: estimulando editais unificados entre vários municípios e até mesmo Estados, de modo a garantir a execução de produtos audiovisuais com recursos necessários para produções profissionais. Nos Estados Unidos um filme com orçamento abaixo de US$ 10 milhões (R$ 55 milhões) é considerado filme de baixo orçamento; no Brasil inexiste filme com esse orçamento, ficando todos muito abaixo. Do contrário veremos uma pulverização de microproduções, algumas muito boas, como já provamos ser possível, como com a rede de cineastas indígenas a partir dos Pontos de Cultura, mas vale a pena pensar um pouco mais para evitar que esse dinheiro, acumulado com muito sacrifício e que vem de uma única vez, se esvaia. Enfim, fica a sugestão.
Os pontos de cultura foram um marco nos governos do PT, atingindo muitas pessoas e amparando quem já faz um trabalho cultural por todo país. Mas, infelizmente, ele foi desmantelado. Você que trabalhou diretamente com o programa, qual sua avaliação?
Sim, o conceito de Ponto de Cultura e de Cultura Viva é uma construção brasileira e que hoje é referência em todo o mundo, estando presente em 17 países – inclusive o papa Francisco é grande fã do programa e já me convidou diversas vezes para falar sobre ele no Vaticano. Ao final da minha gestão como secretário da cidadania cultural no MinC, em 2010, financiávamos 3.500 Pontos de Cultura, em 1.100 municípios, beneficiando mais de 8 milhões de pessoas, em sua maioria jovens, nas regiões mais afastadas do país, de favelas a aldeias indígenas e quilombos, unindo cultura digital com saberes tradicionais e ação comunitária fincada nos territórios, dos quais entre 800-900 mil em atividades regulares, em sua maioria jovens, e gerando mais de 30 mil postos de trabalho (dados do IPEA, 2009).
O fato é que, na história do Brasil, a política pública de cultura que mais chegou nas comunidades mais afastadas, com abrangência, eficácia, equidade, reconhecendo a cultura como processo e não produto, abrangendo a identidade e a diversidade cultural de forma ampla, da ancestralidade às invenções contemporâneas, foi a Cultura Viva. Os recursos públicos efetivamente chegaram na ponta, por mais dificuldade que tenha havido, e potencializaram a autonomia e o protagonismo sociocultural como nunca antes na história desse país, promovendo desenvolvimento na relação com as redes, em processo que combinava identidade com alteridade. Mais que uma política inclusiva, foi uma política emancipatória.
Lamentavelmente, a partir de 2011, houve um desmonte deliberado, com muita incompreensão e incapacidade de diálogo e de ação. Os dados são inquestionáveis e posso apresentá-los um a um.
De todos os processos de seleção de projetos culturais acontecidos no país, o método de seleção de projetos do Cultura Viva foi o que mais contemplou propostas na proporção dos inscritos (em média 30% do total dos inscritos em editais eram contemplados, sempre dos rincões mais afastados, desprezados e silenciados). Pelo conceito original da proposta, não tivesse havido a mudança abrupta em 2011, já teríamos alcançado a universalidade (sem necessidade de edital e disputa entre proponentes, ou seja, quem faz e comprova vínculos reais nas comunidades teria acesso direto aos recursos).
Nesse momento em que o Ministério da Cultura é retomado considero fundamental olhar para a experiência do Cultura Viva caso os movimentos sociais da cultura pretendam uma política pública eficaz, equitativa, exequível e que contemple a vasta identidade e diversidade cultural brasileira. O que diferencia o conceito da Cultura Viva dos demais processos seletivos é a lógica da colaboração e não da competição entre fazedores culturais. Do contrário, ao meu ver, o país seguirá reproduzindo editais concorrenciais, que colocam agentes culturais em disputa permanente. E com a maioria ficando de fora. Por mais dinheiro que entre, ao final, essa é a lógica.
Sugeri a solução para apoio a 5.000 Pontos de Cultura neste ano, com valor igual a todos, de R$ 120.000,00 e demonstro que essa meta é totalmente possível e alcançável em seis meses. Mas penso que é necessário ir além. Para 2024 a meta seria dobrada, alcançando 10.000, até o país chegar a 20.000 Pontos de Cultura em 2026. Essa era a meta prevista para 2020, conforme o Plano estabelecido na Conferência Nacional de Cultura de 2010, e que, como todos sabem, foi abandonada, não somente em relação à Cultura Viva. Claro que para tanto os recursos precisarão de nova fonte. Em 2007 eu consegui viabilizar 2.700 novos Pontos de Cultura em parceria com Estados e municípios, que aportavam recursos próprios, inclusive, creio que esse deve ser o caminho.
Como funcionava o programa?
Identificávamos ações de identidade e diversidade cultural nas comunidades e as potencializávamos, com recursos (R$ 60 mil/ano por Ponto de Cultura), articulação em rede, capacitação em teias e um conjunto de ações, como Griôs, Cultura Digital em software livre, Economia Viva, Interações Estéticas, Pontões, Pontinhos, Cultura e Saúde, Agentes Jovens, Pontos de Leitura, Pontos de Memória, Pontos de Mídia Livre… Enfim, um conjunto de ações culturais para além do simples repasse de recursos. Foi a maior e mais pulverizada ação de base territorial, não só na cultura, já feita pelo governo brasileiro em parceria com as comunidades do Brasil, preservando a autonomia e o protagonismo sociocultural. Com eficácia comprovada (cada Ponto de Cultura beneficia 3.000 pessoas, 300 das quais em atividades regulares e gera 11 postos de trabalho, metade voluntários) e a baixo custo unitário (R$ 5 mil por mês àquela época, para 2023 sugiro um repasse de R$ 10 mil/mês, adequando valores que eu calculei em 2004, e até com defasagem).
Você acha que ele tem o potencial de fazer frente ao trabalho cultural e social que as igrejas evangélicas fazem nas quebradas?
Sem dúvida. Não para competir, mas para oferecer, sobretudo aos jovens nas periferias, outras alternativas de afeto e imaginação. O conceito chave para a Cultura Viva é a Cultura do Encontro através da arte. E assim os jovens, e demais pessoas, continuam praticando sua fé na religião que escolherem, por vezes até com mais fé, porque resultado da liberdade de escolha, mas sem se tornarem presa para os fundamentalismos e pregações do ódio e intolerâncias.
Sem essa ação cultural de base, eu não vejo como o país conseguirá sair do labirinto das dissonâncias cognitivas hoje impostas pelas manipulações, os medos e as mentiras. E além do diálogo inter-religioso e intercultural. No conceito de Ponto de Cultura há os estúdios multimídia, Pontos de Mídia livre a auxiliar no enfrentamento às fake news e manipulações midiáticas de todo tipo. Ainda nem haviam os termos pós-verdade e fake news, mas em 2004, aqui no Brasil, desde nosso trabalho no Ministério da Cultura, nós já havíamos inventado a vacina, com os Pontos de Cultura.
Conhece outros países que também trabalham com programas parecidos?
Como eu disse, esses são conceitos nascidos no Brasil, praticados em escala e com eficácia comprovada. Posso dizer com segurança que o Cultura Viva foi a maior política pública de identidade e diversidade cultural do mundo. Inúmeros pesquisadores estrangeiros reconhecem isso. Os Pontos de Cultura são referência para a política de Cultura Digital na Comunidade Europeia, conforme declaração de uma das encarregadas da área, igualmente nos antecipamos em 15 anos à política de financiamento da Mídia Livre, com os Pontos de Mídia Livre.
Com o desmonte que foi acontecendo a partir de 2011 eu não tive espaço no Brasil e segui difundindo a ideia mundo afora. Hoje os Pontos de Cultura estão em 17 países. Recentemente estive no congresso comemorativo aos 10 anos de Pontos de Cultura na Argentina, já são 1.800 Pontos de Cultura por lá, com investimento anual de US$ 20 milhões. A população da Argentina é semelhante à do Estado de São Saulo, imagine mais de R$ 100 milhões em investimento direto em Ponto de Cultura no Estado de São Paulo. Ano passado também estive no Chile, a convite do governo de lá, percorri todo o país e agora, a 2 de janeiro, o Ministério da Cultura lançou uma chamada pública para Pontos de Cultura. O Papa Francisco também é um grande fã do programa e já me convidou diversas vezes para conferências e seminários no Vaticano.
Qual papel da cultura na reconstrução do país após o governo Bolsonaro?
A Cultura do ódio e da cizânia, presente em parte significativa da população brasileira é resultado de uma bem sucedida estratégia de “guerra cultural” impetrada contra a nação brasileira. Não à toa a extrema direita foi ganhando espaço a partir das chamadas “guerras culturais”, com ataques à cultura e às artes. Agora mesmo, veja o que fizeram nos ataques ao Palácio do Planalto, ao STF e ao Congresso, em que obras de arte foram alvo. Agridem professores e ferem a liberdade de cátedra nas escolas, com a chamada “Escola sem Partido”, que na verdade foi apenas uma estratégia para impor a ideologização reacionária às crianças e jovens, inclusive com militarização fascista. Manipulam informações com esses influencers e blogueiros, disseminadores de fake news.
A extrema direita chegou ao poder pela “guerra cultural” e a derrota dela só será sustentável se vier pela cultura. E pela comunicação aliada à cultura. Sem isso, teremos mais problemas no futuro.
Célio Turino é historiador e foi secretário da cidadania cultural no Ministério da Cultura (2004-10) quando idealizou e implantou o programa Cultura Viva. Desde 2011 caminha pela América Latina difundindo as ideias da Cultura Viva e do Bem Viver. É autor de diversos livros, sendo o mais recente Por todos os caminhos: Pontos de Cultura na América Latina” (SESC-2020).
Cauê Seignemartin Ameni é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária e um dos organizadores da Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (FLIPEI).
Ora,
direis: ouvir estrelas? https://bit.ly/3Ye45TD
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