Quem são os verdadeiros invasores de terra do Brasil?
A bancada ruralista parece continuar presa a uma opção pela violência para tratar de profundas chagas sociais e ambientais. As CPIs do MST e das ONGs são uma continuidade desses mesmos personagens que deveriam ter sido responsabilizados pelos crimes que cometeram e, ao mesmo tempo, servem como uma tentativa de desviar o foco e apagar vestígios desses delitos
Ayala Ferreira e Patrick Mariano/Le Monde Diplomatique
Em discurso na cúpula organizada pelo governo francês, reunindo vários chefes de Estado e de governo, com o objetivo de reforçar os mecanismos de apoio aos países do Sul para combater a pobreza e lutar contra as mudanças climáticas, o presidente Lula cobrou duramente a responsabilidade dos países mais ricos nesse tema e prometeu zerar o desmatamento no país até 2030.
A crise ambiental no Brasil foi agravada pelos últimos governos, que não apenas liberaram o avanço do capitalismo sobre os recursos naturais sem nenhum freio – principalmente nas terras indígenas e áreas protegidas –, mas também estimularam essa exploração, sucateando órgãos públicos e perseguindo quadros da administração pública que cumpriam com o dever de ofício. Essa avassaladora pilhagem nos diversos biomas do país repercutiram em todo o planeta e acenderam a luz vermelha de pesquisadores e representantes de governos preocupados com a situação do Brasil.
Importante dizer que a crise ambiental trouxe uma devastação igualmente trágica para os direitos das populações dessas regiões, bem como para seus corpos. A dimensão social da crise ambiental é seu reflexo direto e nefasto.
O relatório da Comissão Pastoral da Terra, apresentado no fim de 2022 a respeito da violência no campo, constatou um aumento de 150% em relação a 2021 no número de assassinatos no campo, sendo o maior registro desde 2016. As mortes guardam relação direta com o avanço selvagem do capital sobre a natureza (terra e água) e sobre áreas de pequenos agricultores, ribeirinhos, quilombolas, sem-terra, posseiros e indígenas. Entre os causadores dessa violência estão empresários, fazendeiros, governo, grileiros, madeireiros, mineradoras, garimpeiros, muitas vezes por meio da contratação de jagunços.
O relatório do CPT, publicado periodicamente há mais de trinta anos, é um triste retrato da violência contra trabalhadores e trabalhadoras e expõe a forma predatória como a ganância do capital e de seus agentes atua nos sertões brasileiros. Isso ficou ainda mais evidente com a crise ambiental dramática causada deliberadamente pelo último governo ao incentivar e ser protagonista de sua configuração e pela trágica situação do povo Yanomami, igualmente incentivada por agentes do Estado. Toda essa situação chocou o mundo.
O discurso do presidente brasileiro em terras francesas representa esse ponto de inflexão após as eleições de 2022. O retorno de Lula à Presidência fez a pauta ambiental voltar às preocupações do governo brasileiro e é hoje seu carro-chefe no exterior, junto com o combate à pobreza e à fome.
Nome aos bois
No entanto, essas forças econômicas que se fortaleceram com a “passada da boiada” dos últimos tempos até as eleições do ano passado não apenas continuam na ativa, mas também são predominantes no Congresso Nacional. E, ainda que tenham perdido a oportunidade de pilhar ainda mais os bens da natureza, têm voz e voto e controlam parte significativa dos meios de comunicação, assim como são atuantes nas redes sociais.
Esse dramático quadro social no campo deveria exigir da chamada bancada ruralista do Congresso Nacional e dos líderes de entidades representativas desses setores um reposicionamento drástico, ainda mais sob um governo que busca refazer a imagem negativa do país no exterior e aumentar a entrada de produtos brasileiros nas prateleiras dos mercados de todo o mundo. Aliás, é nítida também uma busca desse mercado pela comercialização de produtos produzidos com cuidados éticos mínimos, por razões tanto de saúde como sociais.
Entretanto, nada disso causa constrangimento ou desacelera o ímpeto da bancada ruralista no Congresso Nacional. Esta parece continuar presa a uma opção pela violência para tratar de profundas chagas sociais e ambientais. A CPI do MST na Câmara dos Deputados e a CPI das ONGs no Senado Federal são uma continuidade delitiva desses mesmos personagens que deveriam ter sido responsabilizados pelos crimes que cometeram nos últimos anos e, ao mesmo tempo, servem como uma tentativa de desviar o foco e apagar vestígios desses mesmos delitos.
A CPI do MST retirou qualquer dúvida que ainda pudesse existir a respeito da isenção e imparcialidade com que tais órgãos do Parlamento deveriam ser revestidos. Não apenas a discrepante desproporcionalidade entre seus integrantes – a maioria composta da chamada bancada da bala e de ruralistas –, mas também a análise dos requerimentos apresentados desde sua aprovação e das entrevistas concedidas por seu relator e presidente, tudo indica a continuidade da pauta do bolsonarismo, que resultou na tentativa de golpe do dia 8 de janeiro deste ano.
O relator da Comissão, ex-ministro do Meio Ambiente no último governo, mal esperou a primeira sessão e já se dirigiu à imprensa para dizer que as investigações podem chegar ao atual líder das pesquisas para a prefeitura de São Paulo, Guilherme Boulos – por sinal, personagem contra quem gostaria de disputar o pleito no próximo ano. Ele evidencia, desse modo, interesse meramente de promoção eleitoral e de reposicionamento de sua imagem profundamente desgastada por investigações policiais e por uma gestão desastrosa à frente do Ministério do Meio Ambiente.
Foi, aliás, desse mesmo relator a proposta de realizar diligências-relâmpago com aviso de poucas horas, como se fossem operações policiais, com invasão de residências e uma série de abusos, desvirtuando-se mais uma vez os propósitos regimentalmente estabelecidos para essas comissões.
Ganha mais força essa relação de continuidade entre a pauta bolsonarista de destruição dos poderes constituídos e o uso das comissões parlamentares de inquérito para dar continuidade a seus propósitos quando se lê que o presidente do colegiado da Câmara se tornou, ele próprio, investigado.
Por ordem de ministro do STF foi determinado que a Polícia Federal investigue o deputado federal que preside os trabalhos da CPI, por suspeitas de incentivo a atos antidemocráticos no Rio Grande do Sul e em Brasília. Presidente que, aliás, tem tido a prática de cortar o microfone de parlamentares mulheres quando fazem uso regimental da palavra. Foi assim que tentou calar a deputada Sâmia Bomfim (Psol-SP).
E é com essa mesma violência de gênero que parlamentares do PL vêm tentando silenciar seis deputadas do PT e do Psol, pedindo a cassação delas, alegando quebra de decoro, por protestarem contra a aprovação do marco temporal de terras indígenas (PL 490/07) no Plenário da Câmara, no fim de maio.
Enquanto tentam intimidar as parlamentares, pelo menos sete dos dezenove nomes de políticos envolvidos com ruralistas que detêm propriedades em sobreposição a territórios indígenas são do PL. Segundo denúncia do relatório do De Olho nos Ruralistas, esses deputados e senadores que representam os interesses de ruralistas receberam pelo menos R$ 3,64 milhões em doações de campanha eleitoral. Ao todo são 57 doações oriundas de fazendeiros e sócios de empresas que integram o levantamento dos 1.692 imóveis rurais incidentes em terras indígenas (TIs). Dessa forma, o mesmo relatório apresenta quem são os verdadeiros invasores de terra no Brasil, que somam ruralistas que estão no centro do poder político do país e possuem 96 mil hectares de fazendas sobrepostas a TIs.
Outra matéria recentemente publicada pelo jornal O Globo revelou que sete membros da Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga o MST receberam contribuições para a campanha de acusados de delitos ambientais e agrários, que vão de desmatamento ilegal a contrabando de ouro. Nos debates iniciais da comissão, o que se viu foi uma tentativa de caracterizar as ações de ocupação de terra como crime, matéria já por diversas vezes analisada pelos tribunais superiores e de justiça, com ampla vantagem para a configuração como legítima no Estado de direito democrático e pleno exercício de cidadania.
Criminalização dos movimentos sociais
Desse modo, a instalação de comissões parlamentares de inquérito para investigar movimentos sociais legítimos representa um grave ataque às forças sociais e uma tentativa de criminalizar a luta social. Mas vai além. Acuados pelas ações golpistas do dia 8 de janeiro, os parlamentares ligados ao bolsonarismo viram nessas comissões uma forma de disputar o espaço das investigações dos órgãos públicos sobre a frustrada tentativa de golpe de Estado, tumultuar o processo de reconstrução do país e fortalecimento dos órgãos de fiscalização e controle, e gerar conteúdo para suas redes sociais.
Os movimentos sociais terão de enfrentar mais essa tentativa de sufocar sua atuação e contar com a solidariedade e a mobilização da sociedade como antídotos a essa perseguição. Denunciar os crimes ambientais e contra a sociedade praticados por esses setores bolsonaristas que comandam os trabalhos da CPI é tarefa central de seus militantes. A desmoralização desses colegiados não é tarefa fácil, mas é a única alternativa para quem já sofreu por quarenta anos o frio dos barracos de lona e sentiu na pele as balas dos ruralistas e seus jagunços.
Os movimentos sociais do campo estão mais ativos do que nunca. Foram decisivos para a eleição do presidente Lula e representam o que a sociedade tem de mais forte e pulsante de atuação política e cobrança efetiva das promessas trazidas pela Constituição de 1988.
Foi por meio da força desses movimentos populares que, ao apreciar as mudanças feitas pelo Congresso na estrutura da Esplanada dos Ministérios em junho, o presidente Lula decidiu devolver atribuições às pastas de Marina Silva, do Ministério do Meio Ambiente (MMA), e Sônia Guajajara, do Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Dessa forma, o MMA retomou o controle sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos, e o MPI, sobre a coordenação do saneamento e construção de edificações em terras indígenas. O veto não reverteu na íntegra o esvaziamento dos ministérios, já que o MMA segue sem o Cadastro Ambiental Rural (CAR), e o MPI, sem a prerrogativa de demarcação dos territórios indígenas – exemplos de que existe muito por que lutar neste país.
A legitimidade da atuação dos movimentos sociais em países como o Brasil é resultante da democracia e do quadro de extrema injustiça social que infelizmente ainda atravessa as relações de produção e a própria sociabilidade. Resistir é a condição de existir para milhares de homens e mulheres que reivindicam políticas públicas. Ocupar é, ainda e infelizmente, a única forma de ter voz na sociedade. Portanto, não é uma Comissão Parlamentar de Inquérito ou cassações improvidas que vão calar a voz e apagar a existência de quem há séculos resiste neste país.
Oxalá as promessas de Lula em terras francesas se tornem realidade e, junto com políticas efetivas de proteção ambiental, se faça uma reforma agrária a sério, com estímulo à produção de alimentos saudáveis e melhoria considerável da vida de comunidades tradicionais, trabalhadores e trabalhadoras, não apenas distribuindo terra, mas também saber, saúde e cultura, sem o que não se pode falar em vida plena.
Somos a última geração que pode salvaguardar nossas florestas e temos o dever histórico de proteger as populações indígenas e seus territórios, bem como estimular a agricultura camponesa e a reforma agrária, elementos indissociáveis e imprescindíveis para a efetiva proteção do meio ambiente e a construção de uma vida digna para milhões de brasileiras e brasileiros.
*Ayala Ferreira é da direção nacional do Setor de Direitos Humanos do MST; e Patrick Mariano é doutor em Teoria Geral e Filosofia do Direito pela USP e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap).
Bolsonaro em baixa, redefinições na extrema direita https://tinyurl.com/5n6awhxu
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