12 julho 2023

Uma crônica de Gilberto Freyre

Papa-Figo

Gilberto Freyre

 

De uma família opulenta do Recife se diz que na segunda metade do século passado teve o desgosto de ver o próprio chefe definhar de repente, devastado por uma das doenças mais inimigas do homem, seja ele rico ou pobre, preto ou branco. Há quem guarde o nome arrevesado que os doutores davam então ao mal raro: nome hoje arcaico. Na medicina é assim: os nomes técnicos das doenças depressa se tornam arcaicos.

Mas a tradição popular conta outra história. Diz que o ricaço estava dando para lobisomem. Alarmando a população. Empalidecendo, amarelecendo, perdendo toda a cor de saúde, como em geral os homens que dão para lobisomem. Tornando-se mais bicho do mato do que homem de sobrado.

Desesperado de encontrar cura ou alívio para seu mal na ciência dos doutores recorrera o ricaço ao saber misterioso dos negros velhos. Um dos quais depois de bem examinar o doente rico dissera à família: “Ioiô só fica bom comendo figo de menino.” “Figo” no português do negro queria dizer fígado.

Diz-se que o próprio negro velho se encarregou de sair pelos arredores do Recife com um saco ou surrão às costas. Ia recolhendo menino no saco e dizendo que era osso para refinar açúcar. Mas era menino. Carne de menino e não osso de boi ou de carneiro. Quanto mais corado e gordo o meninozinho, melhor.

Desses meninos sussurra a lenda que o africano, protegido pelo branco opulento, arrancava em casa os fígados para a estranha dieta do doente. Só assim evitou-se — diz a lenda que parece ser muito recifense — que o argentário continuasse a alarmar a população sob a forma de terrível lobisomem. Curou-se mas de modo sinistro.

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