A estiagem do Lago de Tefé e a catástrofe natural e humanitária
Os acontecimentos recentes não deixam nenhuma dúvida de que a Amazônia está no auge de um período de transformações dramáticas devido às mudanças climáticas
Adalberto da Silva Retto Jr./Le Monde Diplomatique
O ressecamento do Lago de Tefé, Amazonas, e as cenas de botos agonizando em função da temperatura daquelas águas são provas cabais da catástrofe natural, mas também humanitária, pela qual estamos passando. Não podemos esquecer que, em se tratando da Amazônia, o sistema hidrológico de água doce abriga mais de 10% de todos os animais e cerca de 50% de todas as espécies de peixes conhecidas. Dados deste ano do IBGE mostram que a Amazônia foi desmatada em mais de 15% em relação ao seu estado inicial (era pré-humana). Os cientistas temem que se o desflorestamento atingir 25% não haverá árvores suficientes para manter o equilíbrio do ciclo da água. A região cruzará um terrível ponto de inflexão e, por fim, evoluirá para a savana. Afinal, a Amazônia molda o clima e pode estar ameaçada por um clima global cada vez mais quente e imprevisível.
E assim, a palavra “Amazônia” — que sempre evocou, em nossas mentes, vastas florestas tropicais, o maior sistema fluvial do mundo, uma abundante diversidade fundida e interdependente de vidas, culturas e biodiversidade — começa adquirir novo significado: tornou-se o retrato claro e o símbolo de como a humanidade é dependente dos ecossistemas naturais. Nessa mistura de plantas e animais existem muitíssimas possibilidades (muitas delas ainda ocultas) de cura para doenças e de componentes para tecnologia molecular, essenciais para aliviar a dor e melhorar a vida do ser humano no planeta. Além disso, nas profundezas da floresta ainda vivem sociedades indígenas que nunca tiveram contato com o homem moderno.
Vale, portanto, explicitar a relação entre a Amazônia, o clima e as mudanças que vêm ocorrendo, como consequência da destruição das florestas e da emissão de gases de efeito estufa na atmosfera. É urgente interpretar as melhores informações disponíveis para determinar a proximidade do ponto sem volta, no que diz respeito ao processo degenerativo da morte da floresta amazônica, e identificar as ações a serem tomadas para neutralizar esse processo. Em primeiro lugar, essa destruição influencia o clima ao atuar, no nível do solo, como um gigantesco consumidor de calor, absorvendo por meio da evaporação da água, através das folhas, metade da energia solar que chega até o solo. Em segundo lugar, a destruição representa um grande sumidouro de carbono bastante sensível, que “pinga” na atmosfera por meio de desmatamentos, secas e incêndios, contribuindo para o acúmulo de gases de efeito estufa, causadores do aquecimento global. E em terceiro, a água que flui dessas florestas para o Oceano Atlântico representa 15-20% do escoamento total global dos rios e pode ser suficiente para influenciar algumas das grandes correntes oceânicas que, por si só, são importantes reguladores do sistema climático global.
Atualmente, a Amazônia está no auge de um período de transformações dramáticas devido às mudanças climáticas, e os acontecimentos recentes não deixam nenhuma dúvida a esse respeito. O aquecimento global poderia reduzir as chuvas na Amazônia Oriental em mais de 20%, ao mesmo tempo em que aumentaria a temperatura geral de toda a região em mais de 2°C (ou mesmo até 8°C) até o final do século, se não conseguirmos reduzir drasticamente as emissões desses gases, o que é obrigatório para evitar alterações climáticas perigosas. Secas mais severas ocorrerão na Amazônia oriental e, juntamente com a tendência de aquecimento, tais secas serão reforçadas pela extinção em grande escala das florestas tropicais dessa região que, gradativamente, serão substituídas por vegetação semiárida.
As imagens assustadoras da atual estiagem denotam que o ponto sem volta pode estar mais próximo do que pensamos. As tendências atuais relacionadas à expansão da agricultura e da pecuária, o aumento dos incêndios, das secas e da extração ilegal de madeira podem causar o desaparecimento (ou gravíssimos danos) de 55% da floresta amazônica até 2030. O ponto de virada ecológico crítico será alcançado quando as florestas nativas, que oferecem resistência ao fogo, forem degradadas a ponto de se transformarem em matagais facilmente inflamáveis devido a danos repetidos causados pela seca, exploração madeireira ou queimadas.
Ademais, esse ponto sem retorno é favorecido pelos ciclos viciosos ligados aos incêndios nessa região. As áreas de florestas queimadas são mais suscetíveis a novos incêndios, pois a inexistência das árvores permite que mais luz solar penetre na floresta, fazendo com que folhas e galhos mortos sequem no solo. O ponto crítico de virada do clima é alcançado quando a desflorestação, a fumaça, as anomalias da temperatura da superfície do mar, como episódios de El Niño, e o próprio aquecimento global inibem a precipitação em escala regional. Esse ponto climático sem volta se perpetua automaticamente, pois favorece a degradação e novas queimadas de florestas que, por sua vez, reduzem a emissão de vapor d’água e aumentam a emissão de fumaça na atmosfera, duas ações que reduzem a precipitação. Estudos do Stockholm Resilience Center indicam que a inibição da precipitação devido ao desmatamento parece tornar-se mais forte quando o desmatamento excede 30%.
No futuro devido, o desmatamento da Amazônia poderá acelerar duas tendências principais: a crescente procura global por soja, biocombustíveis e carne, o que aumenta o rendimento da produção agrícola e pecuária na Amazônia, fortalecendo assim os incentivos para que os agricultores e pecuaristas convertam suas reservas florestais, legalmente exigidas, em terras agrícolas e pastagens; em segundo lugar, o risco de incêndios acidentais desencoraja os proprietários a investirem no plantio de árvores sensíveis ao fogo, na gestão florestal ou na melhoria das pastagens, reforçando a dependência da pecuária extensiva (com baixa densidade de vegetação por pasto) e da agricultura baseada no corte e queima de vegetação que, por outro lado, aumentam ainda mais o risco de incêndios acidentais. Em outras palavras, a sinergia entre a floresta, a economia e o clima da Amazônia favorece a ocorrência de extinção florestal em grande escala nos próximos 15-25 anos. Num cenário de extinção, os incêndios florestais são cada vez mais comuns e a pecuária extensiva e a agricultura de corte e queima, ambas dependentes do fogo, constituem uma fonte cada vez maior de fontes de fogo; e mais, a frequência das secas regionais aumenta devido à diminuição da transpiração e ao aumento da produção de fumaça.
Uma maior destruição da floresta amazônica levará a uma antecipação de mudanças na precipitação em outras partes do planeta. Estudos indicam que a precipitação pode diminuir na Índia e na América Central e que os cinturões de trigo do Brasil e dos Estados Unidos podem sofrer uma diminuição da precipitação durante a época de crescimento das culturas.
A conservação da floresta amazônica é, portanto, crucial para estabilizar o clima mundial. Lembrando que, no nosso planeta, a vida teve origem nos oceanos primordiais, ressaltar que Água é vida e é indispensável aos seres vivos parece pouco, diante do cenário esboçado. Mas há mais: a água tem características únicas e extraordinárias, porque cada massa de água enriquece a biodiversidade. As zonas úmidas fornecem grande quantidade de serviços ecossistêmicos, incluindo a regulação dos ciclos hidrogeológicos e, portanto, essas zonas contribuem para regular o clima, mitigar e prevenir os fenômenos de eutrofização da água, funcionando como “armadilha de nutrientes”, uma vez que a presença excessiva de nutrientes torna, de fato, a água doce imprópria para a vida. São também de extrema importância para a reprodução dos peixes e, em consequência, para a pesca, essencial para muitas populações locais. Mas não só: é muito elevada a biodiversidade dessas zonas úmidas que, além dos peixes, albergam um sem número de espécies de aves, anfíbios, répteis, invertebrados e plantas aquáticas.
Cada vez que um fenômeno desse tipo ocorre no mundo, o nível de emergência global se intensifica, já que as organizações internacionais têm desenvolvido diversas ferramentas para o monitoramento quantitativo e qualitativo desses fenômenos. É sensato, portanto, explicitar que, para enfrentar o futuro, parece necessário recomeçar a partir do conhecimento dos problemas e dos limites das aquisições científicas, mas também de suas conquistas.
Hoje, ainda com alguma dificuldade, o conhecimento científico retornou à pauta no país, mas ainda permanece majoritariamente alheio às questões do risco e quase resignado ao fatalismo. Abordar o tema da prevenção de riscos fazendo uso de ferramentas de planejamento é certamente muito desafiador em todas as diferentes escalas, principalmente quando se trata da Amazônia.
Ora, o ser humano sempre procurou água para fundar cidades. Porém, vale ressaltar, que diferentemente do processo de urbanização da costa brasileira, das cidades do ciclo do ouro e daquele baseado no binômio café/ferrovia, a relação da água com o processo de urbanização na Amazônia vai além. Até hoje, a rede de cidades da Amazônia brasileira baseia-se quase que eminentemente nos veios fluviais e, apesar da estreita relação entre água e cidade, a região possui dificuldade na gestão urbana dos recursos hídricos (subterrâneos e superficiais) e em seu papel na criação de ambientes urbanos mais resilientes.
Se desde a origem dos primeiros povoamentos, o ser humano deu especial atenção à sua relação com o meio onde viria a se instalar, ao longo do último século essa atitude parece ter mudado consideravelmente: a lógica econômica e a especulação acabaram por suplantar o respeito e o medo pelas consequências de catástrofes que o homem sempre demonstrou para com a natureza. Parece, portanto, de extremo interesse percorrer a história do planejamento urbano desde as suas origens até os dias de hoje, para compreender como e em que medida as componentes físicas, morfológicas e geológicas do território influenciaram as escolhas de uso e transformação do solo, denotando atenção à natureza do meio ambiente e seus riscos.
Prevenir o risco exige, por um lado, uma rigorosa atividade de previsão científica; por outro, capacidade de ler os vínculos territoriais no nível estrutural e de planejar uma organização territorial (do sistema de povoamento, de infraestrutura, ambiental e agrícola) na escala local e também consistente com as previsões de risco. Ou seja, a organização do território deve ser interpretada e desenhada de tal forma que, caso haja um possível risco, essa conformação urbana seja capaz de ser resiliente (quando possível e necessário, também resistente) e, melhor ainda, antifrágil.
Por isso, é fundamental conservar esse tesouro (que não é infinito) e seus ecossistemas nas melhores condições possíveis, apesar de estes estarem cada vez mais rodeados de ambientes antropizados cuja hostilidade para com outros seres vivos é crescente. Investir recursos econômicos no ambiente e na ecologia, e mudar o comportamento humano são o principal caminho para respeitar os recursos hídricos. O cuidado e a proteção da água, tanto potável como natural, representam a missão nossa de cada dia.
Adalberto da Silva Retto Jr., nascido em Tefé (AM), é arquiteto urbanista e engenheiro agrônomo. Atua como professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp). É doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pelo Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza (2003), com pós-doutorado no Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza. Foi professor-pesquisador visitante na Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-2013).
Uma eterna roda viva https://bit.ly/3Ye45TD
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