27 março 2021

Dom Helder


Era um super-homem?

Cícero Belmar

 

Conheci um homem que pode virar santo. É um processo que demora anos, mas posso dizer, estive algumas vezes com uma pessoa honesta, humilde e caridosa. Se isso faz do humano um santo, ele o era.

Na foto, estou ao seu lado: o arcebispo que vivia uma cruzada ideológica, social e religiosa, em nome dos mais pobres, encarou poderosos e desafiou até a Igreja. Aparentemente frágil, mas um gigante.

Foi uma foto de fins da década de 1980 ou início da de 1990. Dom Hélder Câmara é o dom da paz, que hoje o Vaticano pode santificar. Eu, um mero repórter iniciante e idealista, cobria o setor de Direitos Humanos.

Na fotografia, caminhamos por uma estrada de barro avermelhado, num engenho da Zona da Mata de Pernambuco. Terras que ele ajudou a fazer a reforma agrária, para garantir vida digna aos sem terra da região.

Faço perguntas, enquanto seguimos; anoto as respostas. À nossa frente, vão os trabalhadores rurais. Mulheres com crianças no braço, homens com cartazes exigindo seus direitos. O fotógrafo clicou esse momento.

A foto é uma metáfora: as pessoas seguem como ovelhas e o bom pastor, logo atrás, como a conduzi-las. O então arcebispo de Olinda e Recife veste uma batina surrada, creme. Eu, barba imensa, magérrimo, camisa no estilo bata, bolsa à tira colo, óculos escuros, tipo alternativo.

Muitos anos se passaram, não lembrava mais desse momento que a foto salvou. Na semana passada, a jornalista Gisela Didier, contemporânea, me enviou pelo WhatsApp: “Conheci este jovem repórter”. Para minha surpresa, é uma das que ilustram o calendário que o Instituto Dom Hélder Câmara (Idec) lançou este ano, para ajudar nas despesas da instituição.

Não vou mentir. Por mais que estejamos antenados com os processos políticos e sociais de que participamos, nem sempre temos a agudeza de compreender que vivemos a História do nosso tempo. De que, naquele instante, somos também testemunhas. Eu sabia da importância daquele homem, todo jornalista sabia. Do privilégio de estar ao seu lado. Também entendia o significado daquele fato. Mas, coberturas jornalísticas importantes são cotidianas para um repórter.

Dom Hélder tinha uma simplicidade desconcertante. Simplicidade que, para mim, é o retrato das pessoas raras.  Se um repórter ligasse para sua casa, adivinha quem atenderia o telefone? Se a gente fosse até lá, arriscar uma entrevista, ele mesmo viria abrir a porta. Mandava entrar. Era assim.

Relato essas coisas só para constatar que lidamos muito mal com os nossos processos históricos. Somos especialistas em banalizar a vida. Quantos acontecimentos importantes apagamos?

Salve o compositor Gonzaguinha: “Eu preciso é ter consciência do que eu represento neste exato momento”. Sem essa consciência, não mandaremos recados para o futuro, não deixaremos vestígios, nem seremos capazes de reconhecer os santos com quem convivemos.

*Cícero Belmar  é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras. 

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