“O texto de O Agente Secreto me deu prazeres e libertou de alguns sentimentos ruins”
As ideias que influenciaram o novo filme de Kleber Mendonça Filho/
Revista 'Piauí'
O texto a seguir, escrito por Kleber Mendonça Filho e intitulado A história na ordem errada, é o prefácio do livro O Agente Secreto: um roteiro de Kleber Mendonça Filho, que será publicado pela Amarcord, da editora Record, no fim deste mês.
O Agente Secreto foi o título de um filme que eu tentei escrever anos atrás, mas não consegui. Foi a primeira vez que isso aconteceu, uma boa ideia que não virou roteiro ou conto. Um texto interrompido. Eu espero voltar a essa ideia um dia, com outro nome. Terminei trabalhando num novo roteiro, ambientado no Recife de 1977, e aquele título original foi reaproveitado. As duas ideias tinham em comum a vontade de fazer um filme com Wagner Moura. Antes de escrever o filme que hoje existe, eu estava saindo de um outro projeto chamado The Crew (A tripulação), uma parceria com o produtor francês Saïd Ben Saïd (nosso coprodutor em Aquarius e Bacurau). O projeto original iniciara na década de 1970, com um roteiro escrito pelo britânico Mark Peploe e pelo italiano Michelangelo Antonioni, logo depois de colaborarem e O passageiro: profis são repórter (The Passenger, 1975).
Durante muitos anos, The Crew foi considerado um dos grandes roteiros nunca filmados. A história tensa de um motim num iate de luxo em alto-mar me foi confiada depois que Mark viu O som ao redor no Festival de Locarno, em 2012. Eu parti para escrever e realizar Aquarius (2016) e Bacurau (2019), coescrito e codirigido por Juliano Dornelles, enquanto discuti durante anos com Mark e Saïd a possibilidade de fazer The Crew. O roteiro foi vendido ao estúdio Miramax nos anos 1990, mas questões contratuais envolvendo direitos autorais acabaram gerando uma longa e complicada história burocrática – da qual, por gentileza, pouparei vocês.
Me dediquei a The Crew durante a primeira parte mais assustadora da pandemia de 2020, quando não existiam ainda vacinas e Bolsonaro adernava como presidente. No ritmo do isolamento com família, e durante sete meses, reescrevi, acrescentei cenas e revisei esse roteiro. É delicado alterar o texto dos outros. É como querer morar numa casa alugada e propor uma reforma, respeitando a planta original e a sua história (Peploe/Antonioni). De todo jeito, a ideia era fazer da casa o meu espaço, fazer de The Crew o meu filme. A conclusão é que o projeto não avançou por falta de viabilidade financeira. Também não era o tipo de filme que permitisse cortes no roteiro apenas para se encaixar em um orçamento arbitrário. Do meu envolvimento com o roteiro, ficaram algumas aulas em tensão narrativa de corte inglês. O texto me lembrava Harold Pinter, as situ ações tinham algo de Polanski, Joseph Losey e Patricia Highsmith. Ao fim e ao cabo, The Crew era de fato Peploe e Antonioni, uma peça de tom masculino vinda de um outro tempo. Ficou uma amizade entre Mark e eu. Neste ano de 2025, perdemos Mark, um homem fascinante.
Foi a decepção com The Crew que me deu ganas de escrever um roteiro meu, situado no Recife e no Brasil, em português, numa escala que me parecesse viável. Eu já sentia esse novo filme como um pensamento aconchegante, um ninho de ideias em que eu faria o que quisesse, do jeito que desejasse. A minha casa própria. Durante a continuação do isolamento na pandemia, e vendo diariamente o Brasil sob a versão mais bovina do bolsonarismo, O Agente Secreto começou a ficar de pé. Eu lembro que, a certa altura, esse texto foi se escrevendo só, fenômeno que – quando acontece – me dá uma sensação de alegria e muita malícia. É uma sensação mesmo de safadeza. Com anotações de ideias a serem desenvolvidas, mas sem nenhum planejamento para a evolução da história, eu suspeitava que a trama se encaminharia do Recife para o sertão. Finalmente, foi o próprio roteiro que me negou o prazer de uma reaproximação com a região do Seridó, onde rodamos Bacurau. Era uma memória muscular que se manifestava, mas o roteiro mostrou que não seria o caso.
O texto de O Agente Secreto me deu outros prazeres e me libertou de alguns sentimentos ruins. Por exemplo: eu pensava ingenuamente que esse filme novo estrelado por Wagner Moura teria um disfarce natural de Brasil ao situar a história cinquenta anos atrás, sob o manto do “filme de época”. Seria distante do país contemporâneo. Por que eu queria esse disfarce? Eu me sentia ressabiado dos ataques políticos pessoais que sofri de tanta gente reaça nos lançamentos brasileiros de Aquarius e de Bacurau. Não ajudou muito o fato de que cada filme teve uma sintonia espantosa com o clima do Brasil, cada um do seu jeito. Nos lançamentos, me vi na mídia respondendo a perguntas sobre o que eu achava que estava acontecendo no país. Depois da première mundial de Aquarius no Festival de Cannes, eu chamei golpe de golpe. Não muito tempo depois, chamávamos fascista de fascista. Na mídia-veneno brasileira, contrariar uma versão oficial é receita certa para ser chamado de “polêmico”. Um dia, quero ser xingado de sensato. Nas redes sociais e na grande imprensa apareceu uma praga de ódio contra a figura do artista, fruto de um coquetel tóxico de mídia com mentiras criadas em laboratório. A mais preguiçosa de todas gira em torno do boitatá que assombra a direita de madrugada, que é a Lei Rouanet.
Era uma primavera reacionária com tons fascistas acontecendo na frente de todos, e interagir com gente estranha deixa o sujeito mais sóbrio. Essa interação quebra suposições ingênuas sobre o mundo e as narrativas. A ingenuidade, admito, era toda minha. Descobri nesse período de Aquarius & Bacurau que, por exemplo, não devemos temer o maniqueísmo ao criarmos, num roteiro, um “vilão”. Vilões existem na vida real, têm mão pesada, fazem live streams, caçam clicks e agem em bandos. Nunca começo com a intenção de “escrever um vilão”; o que realmente define esses personagens, tanto para os leitores do roteiro quanto para os espectadores do filme, são suas ações. Que quantidade insana de crápulas e filhos da puta da vida real ocupam pequenas e grandes pos ições de poder! Muitos dos perfis públicos que os representam nas redes digitais mostram em imagem e palavra um temor a Deus, um amor à família e uma honra à pátria. Muitos negam isso em crimes registrados por câmeras de segurança ou por eles mesmos. São conservadores, incels ou niilistas que nem conhecem o termo. Foi um laboratório fascinante de baixo astral poder escrever O Agente Secreto numa época em que tantos criminosos se orgulham de serem criminosos. De gente com tempo livre o suficiente para inventar acusações e fazer ligações. Alguns trabalhavam em jornais e blogs, borrando ou escondendo informações para um mal maior. Isso deve explicar o papel que a imprensa tem em O Agente Secreto.
Ainda sobre vilões, esses personagens que eu adorei construir, vale comentar que chegaram naturalmente. Repito, não os via como vilões, mas como agentes do caos. Euclides, Augusto, Arlindo, Sérgio, Ghirotti e Bobbi, ou ainda os dois policiais da Polícia Rodoviária Federal… Grandes atores brasileiros interpretam esses homens, Robério Diógenes, Roney Villela, Ítalo Martins, Igor Araújo e Gabriel Leone: Albert Tenório e Márcio de Paula. Eles sabiam de coração que seus personagens são parte da realidade no país. Para alguns, nos ensaios, lembrei do ditado “nenhuma boa ação ficará sem punição”.
Wagner, também como artista brasileiro, atraiu um outro enxame de reaças com Marighella, filme que escreveu, produziu e dirigiu. Marighella foi calado durante quase três anos como produto cultural brasileiro sob o clima geral da Era Bolsonaro. O filme teve première mundial no Festival de Berlim em fevereiro de 2019 (um mês depois de o então presidente tomar posse) e só chegou aos cinemas comerciais do Brasil em novembro de 2021. Conversei muitas vezes com Wagner sobre Marighella e sobre essa macharada tão pilantra. Me pergunto o quanto dessas conversas não acrescentaram energia à minha escrita de O Agente Secreto e à relação de Wagner com o roteiro. Nós terminávamos rindo, pois eram muitas as almas sebosas. Dois amigos tentando trabalhar e entender a malandragem de vilões brasileiros verdadeiros. A verdade é que o distanciamento do presente que eu esperava sentir no ar histórico de O Agente Secreto nunca existiu. Meus poucos leitores iniciais não viram disfarce algum no roteiro. Wagner também não. De fato, a lógica histórica do Brasil permanece intacta em vários níveis da nossa vida nacional, e não são cinquenta anos que vão nos distanciar de um país tão íntimo de nós mesmos.
Foi escrevendo o roteiro que eu percebi como o conservadorismo do Brasil no século XXI era uma versão nostalgia-cor-de-rosa da ditadura civil-militar do século XX. Não só a ditadura retardou o desenvolvimento da sociedade brasileira em pelo menos trinta anos, como deixou milhões de brasileiros confusos sobre o que significa viver num país moral e democrático. Com o agravamento da crise moral em 2018, marcado pela eleição de Jair Bolsonaro, o Brasil também retirou do almoxarifado ideias que haviam sido apresentadas durante os quarenta anos de redemocratização que antecederam esse retrocesso. É como se a geração da “meia/melhor idade” quisesse reviver a sua juventude dos anos 1960 e 1970. Eu via isso e imaginava um shopping center moderno, as lojas falidas e a fonte de água ainda ligada. Na praça de alimentação, um estranho baile de debutantes, a música de Ray Conniff e da Jovem Guarda tocando numa caixa bluetooth com luzes irritantes. Kombis, Jipes e Rurais do exército estacionados na entrada. Os figurantes com cabelo de laquê e brilhantina fantasiados com roupas cheirando a naftalina.
Era esse o clima do país pós-golpe da era Temer/Bolsonaro. Frases e palavras – peças históricas orais do país – voltaram de um jeito que eu nem sabia que seriam ainda pronunciáveis: “Pau de arara”, “ditabranda”, “subversivo”, “torturador” e talvez a mais insólita, considerando a história e o estado do mundo: “comunista.” A xenofobia interna do Brasil, na relação “Norte-Sul” e “Nordeste-Sudeste”, nunca saiu de moda, é fato, mas parecia ter melhorado de alguma forma, pelo menos como discurso na mídia. Talvez eu não tenha nem mais certeza disso, mas fiz uma anotação durante a reeleição de Dilma Rousseff, em 2012. “Nas redes sociais, o Nordeste já é o responsável pela reeleição de Dilma e a permanência do PT no poder. Pelo que estou vendo, isso não seria uma coisa boa, acho que não aceitam que o PT de Lula continue liderando o Brasil com voto democrático desde 2002. Uma região inteira acusada de não saber votar. Seríamos responsáveis por toda a pobreza e desinformação da nação, a desgraça do Brasil, acho que é essa a acusação. Folklore.” Anotei.
Essas ideias todas foram azedando e apodrecendo ao longo de anos, e em praça pública. O país estava com uma catinga horrorosa e tudo era incentivado e divulgado sem pensamento crítico na grande mídia. Era pirraça. Eu não queria escrever um filme podre e pustulento, muito embora só agora eu entenda – ao escrever estas linhas – a verdadeira origem da sequência de abertura no posto de gasolina. Foi a primeira sequência que escrevi para O Agente Secreto.
A parte mais produtiva da escrita de O Agente Secreto aconteceu, ironicamente, longe do Recife, em Bordeaux, na França. Na fase final da pandemia e do governo Bolsonaro, nossa família morou durante um ano na cidade de Emilie, minha esposa. Foi um processo de despedida do pai de Emilie, Robert. Em Bordeaux, eu tive a sorte de utilizar uma salinha no topo da torre do que um dia foi a Igreja de Saint-Siméon, atualmente o Cinema Utopia, com cinco salas. O Utopia já havia exibido meus filmes e agora eu estava lá escrevendo um novo. A Igreja de Saint-Siméon havia sido desativada durante a Revolução Francesa. Virou depósito de sal e pólvora, depois foi uma escola naval, uma garagem, um estacionamento e, desde 1999, o Cinema Utopia. Muitos fantasmas transitavam por ali, até onde sei, todos e todas boa gente.
Essa minha escrita aqui agora não tem linearidade, mas me dou conta de estar narrando toda essa história numa ordem emocional errada. Esse panorama de um Brasil contemporâneo e como vivi esse momento pode ser interessante para entender O Agente Secreto, mas eu não teria escrito o filme se não existisse no início de tudo uma base emotiva encontrada nas histórias pessoais. É o terreno sobre o qual construí a casa e, francamente, vejo ali um enorme buraco de tatu no chão. Uma fenda para um poço de memória que continua numa caverna profunda.
Como ponto de partida, O Agente Secreto não teria nunca nenhuma relação com uma “história real”. Eu sempre quis reconstruir uma atmosfera histórica que fosse verídica, mas cuja trama fosse ficcional e fantasiosa. A lógica, o sabor e o cheiro do Brasil – num momento histórico brasileiro – seriam verdadeiros. O Recife como espaço de vida e de fantasia, o cenário. E eu teria que aceitar outra vez conviver diariamente com fantasmas. Eu havia passado os anos anteriores à pandemia manuseando papéis, fotografias, negativos, fitas de áudio e vídeo. Comprei equipamentos de digitalização, scanners de fotografia. Fazem parte do meu escritório e estão a não mais do que um braço esticado de distância de onde sento. Eu não queria enviar arquivo tão pessoal para longe, não queria que me devo lvessem um “material digitalizado” friamente. Minha vontade era mexer nas minhas imagens e entrar no material do filme que viria a ser Retratos fantasmas. Não existiria, portanto, O Agente Secreto sem Retratos fantasmas.
As coisas ficam ainda mais complexas quando me dou conta de que aquele manuseio de documentos me lembrava o trabalho de Joselice Jucá, minha mãe, historiadora. Ela defendeu durante toda a sua carreira como professora, acadêmica e pesquisadora a técnica da história oral. Defendeu também a pesquisa e a análise de documentos. Adoro esse trecho de uma entrevista com Joselice Jucá no Diário de Pernambuco, em 21 de dezembro de 1980. O título da entrevista é Memória regional será reconstruída. É a minha mãe.
Diário de Pernambuco: Somos nós, os nordestinos, desmemoriados?
Josélia Jucá: Lamentavelmente, somos, brasileiros em geral, desmotivados em relação às nossas fontes históricas. Memória existe, o que não é marcante é o interesse científico, a valorização da pesquisa documental, e isso é tanto mais grave quando constatamos a dicotomia entre o estudante de ciências sociais – particularmente o estudante de história – e o estímulo ao acesso à pesquisa documental. Por formação ou desinformação… Até mesmo o cientista social não parece muito ligado às fontes históricas. É interessante, por outro lado, constatar o sentido de preservação da memória regional entre as pessoas mais idosas que facilmente se dispõem a doar seus acervos objetivando preservar a memória nacional.
Diário de Pernambuco: O que significa para você a história? Como explica o valor dos documentos velhos?
Josélia Jucá: E se eu começasse falando dos historiadores? É que não se pode deixar de registrar, em tom de lamento, certo tipo de história que tem sido feita no país, onde os historiadores mais parecem espécie de porta-vozes da história oficial, ou como variante, se colocam na difícil posição de ora alimentar o mito, ora derrubá-lo. Entendo a história, contudo, dentro de outra colocação, coincidentemente esta com os objetivos propostos pelo Cehibra (Centro de História Brasileira), cuja linha ideológica propõe pesquisar sobre os acontecimentos ligados também à gente, ao povo, à massa tantas vezes anônima e que de igual modo pode contribuir de maneira significativa para o entendimento histórico global, através das correlações históricas inter-regionais e até mesmo internacionais. Quanto à indagação sobre o que chamou de “documentos velhos”, considerando-os como arquivos históricos, vejo-os impregnados de vida ao veicularem para o presente o conhecimento do passado. Os arquivos têm alma, por assim dizer, são organismos vivos porque são parte dos seus donos. Seus segredos, confidências, interesses, anseios, sua produção intelectual, enfim, a alma do homem está toda ela entranhada e facilmente retratada nos seus escritos arquivados. Através deles – em papéis velhos – descobrimos o homem e sua época como um todo: as filigranas de sua personalidade são desvendadas como que sob o efeito de lentes de aumento; o juízo que ele fez de si próprio, a maneira como foi visto por seus contemporâneos e a interpretação a ser dada pelos pesquisadores do futuro são análises propiciadas pelo estudo de arqu ivos particulares. Enfim, é a sua memória, “aquilo que serve de lembrança”.
Eu só vim conhecer essa entrevista de Joselice no Diário de Pernambuco por causa de uma homenagem à minha mãe como historiadora neste mês de agosto, e passados trinta anos da sua morte. Eu estava já concluindo esta minha introdução quando ouvi a entrevista, lida em voz alta pela historiadora Cibele Barbosa, que hoje ocupa posição semelhante à de Joselice na Fundação Joaquim Nabuco. As palavras de Joselice explicam muita coisa. Cibele nasceu em 1980. Com o passar dos anos, eu já havia conquistado uma compreensão mais profunda do trabalho de Joselice em vida, muito tempo depois da sua morte, em 1995. Nesses trinta anos, as ramificações que isso tem em mim são impossíveis de entender totalmente. Durante mais de um ano escrevendo o roteiro, a personagem Flávia – a jovem estudante e pesquisadora estagiária do futuro int erpretada por Laura Lufési – chamava-se “Joselice”. Com o lançamento de Retratos fantasmas – e com a presença marcante de Joselice naquele filme –, alterei o nome. Eu já me vi tentando entender questões de perda, luto e memória. Não é exatamente um sentimento inédito, e ver ideias que atravessam filmes tão diferentes entre si, ao longo de tantos anos, de forma tão recorrente, é algo que me impressiona. De toda forma, é um dos elementos que tenho para oferecer de forma honesta.
Destaco uma sensação que me fortaleceu nesses filmes ao me sentir espelhado no trabalho constante e obsessivo que meu amigo e cineasta Leonardo Lacca fez com seu pai/avô no seu belo filme Seu Cavalcanti. Traços de vida e de morte motivando o cinema como uma busca incessante. Não deve ser coincidência que Lacca é um colaborador constante desde O som ao redor, atuando como consigliere, diretor assistente. Um dos momentos mais fortes dos anos de trabalho dedicados a Retratos fantasmas foi a redescoberta das horas de gravações em vídeo VHS que eu fiz com Alexandre Moura, o Seu Alexandre, operador de projeção do Cinema Art-Palácio na Rua da Palma, Centro do Recife. Esse material foi registrado por mim entre 1989 e 1992 no próprio Art-Palácio.
Joselice defendia essa justa compreensão da história pelos trabalhadores e o que têm a dizer. Em um registro tradicional sobre uma sala de cinema, por exemplo, o proprietário, o gerente seriam personagens principais, não o projecionista, isolado lá no alto da cabine. Ocorre que eu instintivamente registrei horas de conversas e interações com Seu Alexandre, uma pessoa de fascínio sem fim e um grande ser humano. Passei meses com Seu Alexandre durante a pesquisa e montagem de Retratos fantasmas, vendo e ouvindo ele falar, conversando comigo, eu me vendo trinta anos mais jovem e 20-23 anos depois da morte dele.
Depois que O Agente Secreto começou a ser visto publicamente, a pergunta sobre o personagem de Seu Alexandre (interpretado por Carlos Francisco) ser uma “homenagem” a Alexandre de Retratos fantasmas é recorrente. E é engraçada a forma como referem-se a “Seu Alexandre de Retratos Fantasmas”, como se o filme – um ensaio, um documentário – fizesse dele um personagem da ficção. Eu nunca pensei nos termos de uma “homenagem” e volto à ideia de que o roteiro se escreveu sozinho. No texto, surgiu “Seu Alexandre”, personagem da ficção que escrevi impulsionado pela saudade de um amigo, a lembrança de uma grande pessoa. E uma pessoa de cinema, da vida e num cinema. Na verdade, tudo ficou ainda mais complexo sobre “Seu Alexandre”: Carlos Francisco, Rita Azevedo (figurinista) e Marisa Amenta (caracteri zação), talvez impactados pelo “Seu Alexandre de Retratos fantasmas”, deram ao “Seu Alexandre” da ficção em O Agente Secreto um verniz realista, dos gestos às roupas, aos óculos e ao rosto. Ironicamente, Carlos, Rita e Marisa nunca discutiram isso comigo, fizeram por intuição, desejo ou respeito. Talvez tocado com a imagem de Carlos pronto, vestido e penteado como Seu Alexandre, deixei de estar. O trabalho de (re)construção de lembranças feito em Retratos fantasmas me mostrou em termos práticos que temos memórias que também pertencem aos que nos acompanham desde cedo. Quando Seu Alexandre me falava dos anos 1940 e 1950, eu conseguia ver e andar nesse tempo. Mesmo tendo nascido em 1968, o que lembro dos anos 1960 é real, lembranças implantadas pelos meus pais. Meus tios José Jr. e Ronaldo (do lado da minha mãe) e tia Marluce do lado do meu pai. Todos professores, meus dois pais e os três tios e tia. Falavam naturalmente, descreviam em detalhes o que viveram antes de eu nascer. Meu tio José Jr., exímio contador de histórias, em especial, me falou muito sobre a lógica do Brasil ao narrar incidentes do passado que poderiam ter acontecido hoje. Vejo tudo como implantes de memória, como em Philip K. Dick.
Um dia, nos preparativos para filmar O Agente Secreto, eu fui parar no departamento de figurinos, na base de produção. Na parede da sala de Rita, um vasto quadro com duas centenas de fotografias. Não eram recortes de revistas de moda da época, mas fotos de famílias. Pais, mães, tios, tias, primos e primas, festas de aniversário, carnaval, escola, universidade, lojas e ruas. Um álbum vasto sobre a vida no Recife dos anos 1970. Rita não era nascida nessa época, mas ela pegou as lembranças emprestadas para depois devolver.
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