Filmes são filhos
Na
Cinemateca, é como se estivessem em um hospital sem médicos
Alain
Fresnot
Diretor, produtor e ex-presidente da Associação
Paulista de Cineastas e do Conselho Superior do Audiovisual; dirigiu filmes
como 'Desmundo', 'Ed Mort' e 'Família Vende Tudo'
Folha de S. Paulo
Para nós,
cineastas, filmes são como filhos. Na minha geração é raro ter sete ou mais. A interrupção da produção
no governo Collor suspendeu por quase dez anos as carreiras, a minha
e a de meus colegas. A produção só retomou no governo Itamar Franco. Agora,
parou de novo.
Sem falar do
capital internacional, que hoje segue produzindo no país por meio de nossas
grandes empresas, os produtores nacionais estamos paralisados desde a posse
deste governo dito “patriota”.
À exceção dos
poucos cineastas brasileiros que conseguiram se internacionalizar, como Hector
Babenco, Walter Salles, Fernando Meirelles e José Padilha, os que não o fizeram
—e cito como homenagem dois recém-falecidos, Maurice Capovilla e Suzana Amaral— sobrou
trabalhar num “ambiente” jurídico-institucional cambiante, sem política de
Estado e sem projeto de desenvolvimento audiovisual de longo prazo.
No
decorrer de minha vida profissional trabalhei sob o regramento institucional do
Instituto Nacional de Cinema (INC), posteriormente da Embrafilme (cujos
arquivos acabam de ser destruídos no incêndio da Cinemateca) e, agora, da
Ancine. Entre cada um desses arranjos institucionais, tivemos um bom tempo
gasto no trabalho político junto às autoridades para reordenar o quadro
jurídico e recriar condições de produção viáveis num mercado controlado pelo
produto estrangeiro.
Ao longo de
todos esses anos, em dois momentos chegamos perto de uma real abertura para
nossos filmes no mercado. Paradoxalmente, foram politicamente bem distintos:
com os militares na ditadura, em que criamos a Embrafilme e chegamos a 33% de
“market share”, graças ao nacionalismo dos militares, e agora, mais
recentemente, com o PT no poder, momento em que o audiovisual já tinha
incorporado as novas janelas e tecnologias, com a legislação de cotas nas TVs
por assinatura.
Agora estamos
no pior dos mundos: um projeto do governo que é o de paralisação e
desnacionalização total da atividade e iniciativas em direção ao retorno da
censura por acumulo de medidas de vieses ideológico, clerical e/ou monarquista.
Felizmente, como diz o ditado, “não há mal que sempre dure, nem bem que
nunca se acabe”. Mas o abandono da Cinemateca Brasileira por
este governo preocupa. Nossos filhos estão lá! Entre eles, os meus “Lua Cheia”,
“Ed Mort”, “Desmundo”, “Raul - O Início, o Fim e o Meio”, “Castelo Rá-Tim-Bum”
e “Família Vende Tudo”, além do mais novinho: “Uma Noite Não É Nada”.
Há que se viabilizar o retorno imediato dos funcionários especializados
à instituição e revisar o edital de convocação que prevê a gestão de uma
Organização Social (OS), além de o governo federal entender que cultura e
memória não são de esquerda ou de direita, mas de todos.
Imagine seus filhos, sabendo-os frágeis como são as matrizes de
celuloide, num hospital sem médicos, enfermeiros ou cuidadores, sem poder até
mesmo arrancá-los de lá. É como nos sentimos neste momento em que a Cinemateca
ardeu. E não foi por falta de aviso...
.
Veja: Uma tremenda
demonstração de fraqueza https://bit.ly/3lRLcVT
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