04 abril 2022

Escritor Lira Neto em Portugal

'Volta pra tua terra'

Daniela Pinheiro, UOL

 

É com um pé em Portugal e outro no Brasil, de olho nos patrícios e nos locais, que irei tocar essa coluna. Ela não terá só reportagens ou crônicas. Será mais que um relato frio e menos do que um tratado de geopolítica. Vai tratar dos temas sérios, dos irrelevantes, dos espantosos, dos frívolos e dos essenciais. Não nessa ordem, não na mesma extensão, mas com igual galhardia, graça e gana de aprender. Boa leitura.

"A elite brasileira acha lindo escola e saúde pública na Europa, mas apoia o bolsonarismo no Brasil"

Autor da magistral biografia de Getúlio Vargas, o jornalista e historiador cearense Lira Neto mora com a mulher e as filhas há três anos no Porto, onde faz doutorado. Pesquisa a legitimidade da escrita biográfica como documento histórico. No ano passado, publicou "Arrancados da Terra - Perseguidos pela Inquisição na Península Ibérica, refugiaram-se na Holanda, ocuparam o Brasil e fizeram Nova York", a saga de judeus, cristãos novos, que, como asilados, acabaram por moldar a sociedade brasileira e americana. Observador atento da vida cotidiana passada e presente, ele faz um interessante paralelo entre a herança colonialista e a xenofobia contra brasileiros e como o conceito do lusotropicalismo — desenvolvido pelo sociólogo Gilberto Freyre — ainda permeia os dois países de maneira equivocada. A conversa foi editada para melhor compreensão.

Por que saiu do Brasil?

Saí por dois motivos diferentes, mas complementares. Em primeiro lugar, desde o impeachment de Dilma Rousseff, o ambiente político no país se deteriorou e se tornou extremamente tóxico. A emergência dos discursos de ódio já dava pistas do que viria a seguir, com a vitória do bolsonarismo. Preferi não submeter minhas duas filhas mais novas a tal cenário. Quando saí, o desastre já me parecia inevitável. Também aproveitei para mergulhar nos arquivos portugueses que reforçaram a pesquisa para escrever meu último livro.

É possível manter distância das notícias que chegam sobre o Brasil?

Sou incorrigível: todo dia, ao café da manhã, ainda me engasgo com a torrada por insistir em ler as notícias do Brasil.

Viver em Portugal é melhor ou pior do que no Brasil?

Gosto de Portugal, onde tenho sido muito bem recebido, embora existam códigos de conduta e traços culturais que ainda me surpreendam. Há, por exemplo, uma aparente rispidez lusitana, que para nós, brasileiros, mais informais, pode soar como certa impaciência. A maior diferença entre viver no Brasil ou em Portugal está relacionada à tranquilidade de andar nas ruas a qualquer hora, sem olhar para trás e sem medo de ser assaltado na próxima esquina. Ter o MBWay instalado (equivalente ao PIX), sem o temor de lhe roubarem o celular. Mas também faz toda diferença usufruir dos benefícios do Estado de bem-estar social, ter as filhas estudando, em horário integral, em excelentes escolas públicas, não precisar pagar preços escorchantes por um plano de saúde e usar os serviços de saúde pública.

É muito diferente a experiência de ir a um restaurante, uma padaria, uma biblioteca?

Utilizo bastante os serviços das bibliotecas públicas aqui em Portugal. Têm acervos maravilhosos, edições raras, grandes coleções de periódicos. Os sebos — alfarrábios, como aqui se diz — também são maravilhosos. Mas sinto falta de melhores livrarias. As grandes redes, como em todo lugar do mundo, são todas parecidas e desinteressantes. Apostam no mais fácil, nos best-sellers, na literatura ligeira. As seções especializadas, como as de história, antropologia e política, que são as que mais me interessam, são deficitárias. Mas isso não é uma exclusividade portuguesa. No Brasil também é assim. Quando morava lá, já havia deixado de frequentar as megastores, tão gigantescas e insossas. Prefiro as pequenas livrarias de rua, onde o livreiro é uma espécie de curador e entende de livro. A propósito, a melhor livraria de Lisboa é brasileira.

E comer fora?

Aqui come-se bem, toma-se bom vinho, a preço justo. Qualquer tasquinha é uma descoberta gastronômica.

E a relação freguês-atendente?

Quanto ao serviço, há a proverbial impaciência dos garçons portugueses. Mas sei me dar bem com eles. Por exemplo, não entro no restaurante e vou logo sentando. Espero ser conduzido até a mesa. Um sorriso, uma boa-noite e um boa-tarde sinceros desarmam o mais turrão dos lusitanos. Nada muito diferente do Brasil. Peço sugestões do cardápio. Pergunto pelo vinho da casa. Mostro que respeito e valorizo o trabalho que eles fazem.

Já viveu ou testemunhou episódios de xenofobia contra brasileiros? Outro dia, estive num restaurante chique em Lisboa e um português gritou ao garçom brasileiro um "volta para a sua terra". Ninguém fez nada.

A xenofobia é uma realidade. Minha filha mais nova já ouviu um "volta pra tua terra" na escola. Uma de suas amigas de turma imita o sotaque português, para não ser reconhecida como brasileira, o que considero uma violência, e imposta pelos próprios pais, que temem discriminações. Mas, infelizmente, as maiores vítimas de preconceito são os que se encontram em situação de vulnerabilidade social e econômica, em empregos precários.

Em que contexto sua filha ouviu "volte para a sua terra"?

O garoto que falou alegou se tratar de uma "brincadeirinha sem maldade".

Não lhe baixou um Will Smith?

Não. O assunto foi discutido, de forma civilizada, na reunião de pais com a professora diretora de turma. A escola resolveu fazer um trabalho de conscientização entre os alunos.

O que é um "trabalho de conscientização entre alunos"?

Foi algo sobre qualquer tipo de discriminação. Na reunião, tratou-se de homofobia, transfobia, gordofobia. Na verdade, fiquei mais ofendido do que minha filha, que relevou o caso. Não fiquei com raiva do garoto, mas com os adultos que dizem a mesma coisa, inclusive no parlamento. Os maiores responsáveis por este tipo de episódio são os que naturalizam a xenofobia, o racismo e o preconceito. O líder do principal partido de extrema-direita aqui (André Ventura) é um habitual disseminador de ódio.

Quando se é vítima de xenofobia, não se tem um ímpeto de mandar ver um "sabe com quem está falando"?

Mas eu sou um brasileiro qualquer. A natureza de meu trabalho não me dá o direito de querer ser mais bem tratado do que o rapaz que entrega comida de bicicleta. Ambos merecemos o mesmo respeito.

Tenho a impressão de que se repete aqui com os imigrantes brasileiros as mesmas "castas" já definidas no Brasil: o povo do Leblon, que mora aqui em Campo de Ourique; o dos Jardins em Cascais; a periferia vai para a Amadora, e por aí vai.

A elite brasileira é, em geral, exclusivista, gosta de privilégios e, pior, de ostentá-los, de fechar-se na própria empáfia e na arrogância de novo rico. Gosta de festas privê, de viver em bairros onde pobre só entra como empregado subalterno. Acha lindo escola e saúde pública na Europa, elogia o estado de bem-estar social daqui, mas prega o liberalismo e apoia o bolsonarismo no Brasil. Acha fofo os europeus respeitarem a faixa de pedestre, mas comporta-se como selvagem no trânsito de qualquer cidade brasileira.

Afinal, existe antibrasileirismo em Portugal?

Não é simples. Percebo que há enorme fascínio pelos brasileiros, em especial na cultura, na literatura, na música. Aqui, por exemplo, um cantor brasileiro lança um novo álbum e é notícia. No entanto, é verdade, reportam-se muitos casos de xenofobia, principalmente contra imigrantes de classes mais baixas. Historicamente, há também isto: éramos uma colônia, que cresceu e se desenvolveu, ao passo que a metrópole declinava economicamente. O Brasil se tornou muito mais relevante no cenário mundial e isso pode ter gerado algum sentimento negativo. O que me impressiona mesmo é como, mesmo no ambiente acadêmico, a questão colonial ainda seja tabu. É difícil aqui fazer uma reflexão crítica sobre o colonialismo.

Por que isso acontece?

É questão que Portugal não resolveu, sobretudo em relação à África. O passado colonial é muito recente. Pessoas apenas um pouco mais velhas do que eu foram lutar na guerra de Angola, por exemplo. É ferida ainda não cicatrizada. Outro dia, na universidade, ouvi um professor defender que a colonização teria sido importante "por ter levado o Iluminismo ao Novo Mundo". Talvez não seja uma visão majoritária no país, mas é inadmissível que ainda persista, inclusive entre historiadores.

É possível fazer um paralelo com o que se passou com a conciliação pós-ditadura no Brasil — quando se jogou para debaixo do tapete toda a sujeira e não se tocou mais no assunto — com a questão da descolonização africana aqui?

Nos dois casos, optou-se por lidar com os traumas históricos não pela via da memória, mas do esquecimento. Fazer de conta que o passado não existiu, zerar a conta e seguir em frente. No caso de Portugal, o conceito do lusotropicalismo, criado por Gilberto Freyre (sociólogo, autor, entre outros, de "Casa Grande e Senzala"), ajudou a aplacar os sentimentos de culpa e encarar a colonização como algo não necessariamente tão violento. Isso me parece estar na raiz do não enfrentamento da realidade.

Como?

Pela falsa ideia de uma colonização "adocicada". A ode à mãe preta, à ama de leite, é um exemplo. Romantiza-se a violência embutida no fato de mulheres negras terem deixado de amamentar os próprios filhos para fornecer o peito aos filhos do senhor — como se o ato fosse grande demonstração de afeto mútuo. Herdamos tal normalização quando dizemos que a empregada da casa, que mora no quarto dos fundos, é tratada como "alguém da família".

Na pesquisa para seu livro "Arrancados da Terra", o que descobriu sobre a ligação entre o Nordeste e Portugal?

Que o Nordeste brasileiro tem lastro de tradição histórica muito enraizado aos cristãos novos, aos judeus que ficaram no Brasil. Quando os portugueses recuperaram as chamadas capitanias do açúcar da mão dos holandeses, muitos judeus partiram — não queriam ficar novamente sob a jurisdição do Santo Ofício, da Inquisição. Aqueles que não tinham condição de ir embora, embrenharam-se sertão adentro, num jogo de ocultação, despistamento, simulacro para esconder sua crença.

É quando inventam a alheira, muito comum aqui, um embutido de aves, com cara de linguiça, criado pelos cristãos-novos para fingir que não mantinham mais o hábito judaico de evitar a carne de porco.

Sim. E muitos outros hábitos. Como não podiam mais ter sinagogas, misturaram-se com o catolicismo caboclo sertanejo — o que produziu usos e costumes profundos no Ceará, por exemplo, onde eu nasci. No interior, por exemplo, quando morre alguém é comum que se jogue fora toda a água da casa, que é guardada num pote. E a água é o bem mais precioso para quem vive no semiárido. Se você pergunta para um sertanejo por que ele faz aquilo, ele diz que não sabe. Mas isso é um ritual judaico, que prega que aquela água tem que ir embora para que os demônios, as entidades, não a bebam e permaneçam na casa.

O que mais?

Minha mãe dizia que varrer o lixo para fora da porta da rua dava azar. Mas é nitidamente um resquício da existência do mezuzá no portal da casa do judeu, que não pode ser profanado. Varrer o lixo para fora da casa é corromper a casa. Também a maneira como se matava galinha em casa, com um só golpe, sem crueldade, deixando todo o sangue escorrer e depois cobri-lo com terra. É um nítido ritual kosher. Enfim, ter me descoberto cristão-novo me levou a outros caminhos e tenho a intenção de escrever sobre a história dessa grande matriarca judia cristã nova que é Branca Dias.

Quem é ela?

É a grande matriarca, a grande Eva cristã nova, a grande Eva do judaísmo, principalmente no sertão brasileiro, cujo nome é usado como ponto de partida na árvore genealógica que liga o nordeste a Portugal. Ela é a referência para vários pedidos de cidadania baseados na lei dos descendentes de judeus sefarditas em Portugal.

A lei que dá cidadania portuguesa aos descendentes de judeus sefarditas é polêmica. Foi assim que o oligarca russo Roman Abramovich se tornou cidadão português e, por consequência, europeu, o que trouxe à tona um esquema de quase venda de cidadanias.

A priori, sou absolutamente favorável a toda legislação que trabalhe na perspectiva da reparação histórica. O que a comunidade sefardita conseguiu devia ser buscado também pelas populações afrodescendentes, que foram até há pouco tempo, vítimas desse processo. Sobretudo, na descolonização. Mas, sim, toda legislação abre brechas para oportunistas. E isso está errado.

Como acontece entre Rio e São Paulo, há uma rusga velada entre Lisboa e Porto sob os mesmos clichês: no Porto é onde se trabalha, em Lisboa é onde se diverte. Percebe isso?

Sim, há uma rusga entre "tripeiros" e "alfacinhas", ou seja, entre portuenses e lisboetas. Esse tipo de disputa simbólica é comum em qualquer cenário no qual duas localidades disputem entre si a hegemonia econômica ou cultural. É assim entre São Paulo e Rio, Recife e Salvador, Porto e Lisboa. Mas tais embates partem sempre de estereótipos que um lado impinge ao outro na tentativa de lustrar a autoimagem e desqualificar o pretenso rival. Não levo isso a sério.

Ponho na conta do meramente anedótico.

UM BOM LEGADO BOLSONARISTA

Na quinta-feira, 31 de março, completaram-se 58 anos do golpe militar que resultou em 21 anos de ditadura no Brasil. O único dos grandes jornais a estampar a efeméride na primeira página foi a Folha de S.Paulo. Em três linhas, dizia: "Golpe de 64 foi 'marco histórico' da política brasileira, dizem as Forças Armadas".

Comenta Glenda Mezarobba, cientista política e conselheira do Instituto Vladimir Herzog: "O esforço de esquecimento cuidadosamente construído pela ditadura tem sido desmontado pelo atual presidente. Nesse sentido, parece-me que há, de fato, um 'marco histórico'. O ocupante do Palácio do Planalto faz o que nenhum ditador ousou fazer publicamente no poder: louvar a violência e homenagear torturadores. É desconcertante, mas ao reconhecer a existência de perpetradores, ele acaba por prestar um serviço à democracia. A exposição dos enclaves autoritários remanescentes já pode ser considerada, sem dúvida, um dos legados do atual desgoverno".

GUARDEM ESSE NOME: TARAS BILOUS

Uma das figuras mais interessantes no debate sobre posição de boa parte da esquerda ante a invasão russa é o ucraniano Taras Bilous, historiador, ativista da organização SotsRukh e editor da revista Commons, para onde escreve sobre temas de guerra e nacionalismo. Ele tem chamado atenção para o que batizou de "anti-imperialismo de idiotas" de certa esquerda ocidental, que insiste em culpar a OTAN ou os Estados Unidos pelo que seria apenas uma "reação" de Vladimir Putin a uma suposta quebra de acordo da Ucrânia. No início da guerra, Bilous se juntou a um grupo de anarquistas e, desde então, tem recebido treinamento militar diariamente "para estar pronto para lutar quando for preciso", como me disse em uma conversa por e-mail na tarde de quarta-feira, dia 31. Um apanhado condensado da conversa:

Qual é o impasse da guerra hoje? O Kremlin planejava tomar a Ucrânia e estabelecer um regime de ocupação, mas o exército russo não foi capaz de fazer isso. O próprio fato de que eles esperam dominar Kyiv facilmente mostra que eles têm uma compreensão muito pobre da realidade ucraniana. Agora o Kremlin está procurando uma saída para a situação atual — como acabar com esta guerra para que ela não seja uma derrota clara. E nós queremos vencer e podemos fazê-lo se houver mais apoio internacional. Eu não acredito em acordos. Ambos os lados estão agora negociando para ganhar tempo. A Ucrânia também está tentando usá-los para negociar a evacuação dos civis. As ações da Rússia em Kherson e em outras cidades ocupadas no sul da Ucrânia mostram que eles não têm planos de partir. É também óbvio que eles ainda estão tentando capturar todo o território de Donbas. Zelensky não concordará com as exigências da Rússia, porque a sociedade ucraniana não o aceitará. E se o Kremlin concordar com as propostas da Ucrânia, isso significará de fato a derrota da Rússia.

O que acha que vai acontecer? Não sei. A Rússia não pode vencer. Se Putin for derrotado, é o fim dele. Veremos como ele vai tentar sair desta situação.

As sanções internacionais estão funcionando? Não são suficientes. As sanções precisam ser reforçadas, especialmente contra os oligarcas russos. O economista francês Thomas Piketty teve algumas sugestões interessantes, como a ideia de a União Europeia criar uma força-tarefa para descobrir o patrimônio dos oligarcas russos. Também é necessário limitar o máximo possível a compra de petróleo e gás daquele país.

O que poderia estar sendo feito pela comunidade internacional? Aumentar o fornecimento de armas para a Ucrânia, incluindo sistemas de defesa aérea e aeronaves.

Qual é seu maior medo em relação a esta guerra? Armas nucleares.

BACALHAU MAIS SALGADO

A invasão russa na Ucrânia já se faz sentir na mesa dos portugueses e a população está apavorada com os preços dos alimentos e dos combustíveis. A inflação bateu 5,3% em março, o maior valor desde 1994. No Brasil, hoje seria motivo de comemoração. Nos últimos dez anos, a média foi 6%. Caiu em 2017 (2,95%), subiu para 4,52% em 2020 e desde o ano passado está na casa dos dois dígitos.

I PAGLIACCI

De Ricardo Araújo Pereira, o maior humorista de Portugal, em entrevista ao jornal Público, sobre a piada de Chris Rock e a reação de Will Smith na cerimônia de entrega do Oscar: "O estalo (tapa) de Will Smith foi o momento perfeito para perceber a diferença entre comédia e agressão".

Veja: A mentira o desgasta e enfraquece; mas o mantém conectado à sua base https://t.co/Dp8f13AzZ4

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