Parem as máquinas
A grande imprensa e a erosão
da democracia brasileuira
Antonio Engelke, revista piauí
A grande imprensa está em crise. Há a crise do modelo de negócio, abalado
pela concorrência do mundo digital, e a crise de legitimidade, expressa no
crescente descrédito na atividade jornalística como um todo, na visão de
setores da sociedade e dos atores políticos. Os grandes jornais perderam uma
fatia substantiva da receita publicitária que lhes dava fôlego financeiro,
perderam o monopólio da significação dos eventos e perderam parcialmente a aura
de isenção e neutralidade que os encobria.
Tudo isso é jogo jogado. A questão é saber como o jornalismo reage. Nesse
sentido, a publicação do livro Tempestade Perfeita: Sete Visões da
Crise do Jornalismo Profissional (Intrínseca) é oportuna. Trata-se de
uma coletânea de ensaios organizada por Robert Feith, em que nomes importantes
do jornalismo no Brasil – Caio Túlio Costa, Cristina Tardáguila,[1] Luciana
Barreto, Helena Celestino, Marina Amaral,[2] Merval
Pereira e Pedro Bial – examinam a crise por diferentes perspectivas. O
resultado é ambivalente. Sai-se da leitura das contribuições das autoras com a
esperança renovada. Há inteligência no diagnóstico dos problemas e trabalho
duro na busca por soluções. Já os textos dos autores podem ser lidos quase como
confissões involuntárias da responsabilidade da própria imprensa no agravamento
da tempestade. É sobre eles que me debruçarei aqui.
Caio Túlio Costa, Merval Pereira e Pedro Bial apresentam uma compreensão
semelhante acerca do que é o jornalismo e da função que este cumpre. São
questões distintas. A primeira, “o que é o jornalismo”, está fundada num debate
da teoria do conhecimento. A segunda, “a função que o jornalismo cumpre”, é em
essência um debate político. Resumindo bastante, pode-se dizer que seus ensaios
convergem no fundamental, em ambas as questões. Para os autores, o jornalismo é
uma atividade cujo método permitiria levar a público o conhecimento dos pedaços
de realidade a que chamamos de fatos, de forma tão objetiva e isenta quanto
possível, o que é vital para a saúde das democracias. É, digamos assim, a visão
que o grupo dominante do jornalismo possui de si mesmo e do trabalho que faz.
Um bom exercício de interpretação é ler os textos observando aquilo que
eles não dizem, o que deixam de fora. Nesse caso, a ausência que salta aos
olhos são as noções de agendamento e enquadramento. Triviais nos estudos de
mídia, elas não aparecem nos ensaios de Caio Túlio Costa, Merval Pereira e
Pedro Bial. Costa menciona de passagem que o propósito do jornalismo é “coletar
e eleger o que é notícia”; Merval e Bial não fazem menção alguma a essas
questões.
Silêncios costumam ser eloquentes, e esse não é exceção. Discutir
agendamento e enquadramento implica reconhecer o fato de que jornalistas fazem
escolhas. A primeira escolha é sobre o que será noticiado. “Os jornais informam
aquilo que é de interesse público”, reza o mantra dos manuais das redações. No
entanto, a definição do que conta como interesse público é em si mesma uma
operação seletiva, determinada em larga medida pela própria imprensa. Além de
decidir o que será publicado, jornalistas escolhem também como a notícia será
enquadrada retoricamente. “Enquadrar” é ressaltar certos aspectos dos fatos em
detrimento de outros, de modo a fornecer os parâmetros básicos de sua
compreensão. Ao impor uma moldura à notícia, o discurso jornalístico já está
demarcando os contornos de seu sentido. Há nisso uma regularidade. Notícias
informam sobre os fatos relevantes do mundo e nos fornecem modelos de
apreciação desses fatos. Tais modelos transformam-se em convenções. Deixam de
ser objeto de discussão para se tornar premissas dos debates na esfera pública.
Silêncios também costumam ser convenientes. A grande imprensa só pode
conservar o semblante de imparcialidade se ocultar o fato de que manchetes e
reportagens resultam de escolhas bastante particulares. O curioso é que o
investimento nesse semblante faz cada vez menos sentido, dado que parte
crescente dos leitores e autoridades públicas agora reconhece sua
artificialidade. A reivindicação de imparcialidade teve suficiente aderência na
sociedade enquanto a imprensa possuía o monopólio sobre o significado dos
eventos. Uma vez que as pessoas começaram a conhecer, na internet, diferentes
sentidos para as notícias que os jornais reportavam, o caráter ideológico dessa
reivindicação veio à tona. A insistência dos jornalões na aura da
imparcialidade lembra a situação típica de desenho animado em que o Coiote, em
perseguição alucinada ao Papa-Léguas, continua correndo mesmo sem ter o chão
debaixo dos pés, como se isso pudesse adiar a queda no abismo (tomo a imagem de
empréstimo do filósofo Slavoj Žižek). Como ainda não se espatifaram no solo, os
jornais parecem dizer a si mesmos “Até aqui, tudo bem”.
Prevejo a objeção. Se renunciar à imparcialidade, como poderia o
jornalismo se diferenciar das narrativas fraudulentas e, assim, conservar sua
legitimidade? Essa é uma falsa dicotomia. Uma alternativa, por exemplo, é
aquela que parte do reconhecimento do aspecto literário do discurso
jornalístico. Não vai aqui nenhuma pretensão de originalidade. Já em 1925 o
sociólogo norte-americano Robert Park concebia a notícia como forma de literatura
popular. Desde então, diversos autores refletiram sobre a natureza textual do
jornalismo, sobretudo a partir da década de 1970. Dada a atual tempestade que
se abate sobre a grande imprensa, talvez tenha chegado a hora de radicalizar
essa perspectiva. Fazê-lo implica lidar com dois desafios: encontrar um
critério para decidir o que conta como bom jornalismo, critério esse que
ultrapasse a questão da correspondência entre o relato jornalístico e a
realidade factual, e a necessidade de escapar ao bicho-papão do relativismo.
Examinemos o primeiro desafio. As críticas de esquerda e de direita ao
jornalismo tradicional possuem a mesma forma, embora tenham conteúdos
distintos. A acusação é a de que a grande mídia distorce as notícias, de modo a
apresentar aos seus leitores não a realidade dos fatos, mas uma versão
ideologicamente motivada deles. Essa acusação está baseada em dois pressupostos
interligados: 1) se critico a mídia, acusando-a de ser parcial, é porque parto
do princípio de que é possível narrar os fatos de forma imparcial; 2) se parto
do princípio de que é possível narrar os fatos de forma imparcial é porque
assumo que a linguagem é capaz de representar a realidade ela mesma.
A filosofia da linguagem nos mostra que ambos os pressupostos são
problemáticos. Fatos ou acontecimentos não se solidificam por conta própria na
forma de sentenças descritivas. Não nos impõem nem um vocabulário nem uma
perspectiva específica por meio da qual deveríamos necessariamente
descrevê-los. Seus significados nunca estão completamente dados de antemão.
Nenhum acontecimento constitui por si só uma história acabada, apenas oferece
elementos a partir dos quais o compreenderemos. Portanto, o sentido de um
relato jornalístico não se desprende naturalmente dos fatos, como o vapor da
água: é acrescido pelo jornalista na medida em que transforma sua compreensão
do que se passou em artefatos verbais, isto é, em narrativas.
Vista dessa forma, a narrativa não é inimiga do jornalismo. É a matéria
de que ele é feito. Narrativas, afirma o historiador norte-americano Hayden
White, são criadas a partir das crônicas dos fatos por meio da urdidura de
enredo, em que “os acontecimentos são convertidos em estória pela supressão ou
subordinação de alguns deles e pelo realce de outros, por caracterização,
repetição do motivo, variação do tom e do ponto de vista, estratégias
descritivas alternativas e assim por diante”. Todas essas manobras de criação
de enredo, diz White, são comuns tanto a obras de ficção quanto a relatos que
se prendem à realidade, como os historiográficos (e jornalísticos). Dessa
perspectiva, não importa se o episódio narrado é real ou imaginado, porque os
procedimentos pelos quais o narrador lhe confere sentido são os mesmos, seja
esse narrador um escritor de romances, um historiador ou um jornalista.
Nada disso anula a distinção entre jornais e romances de ficção. Mas
deveria ser o suficiente para fazer os jornalistas reconhecerem que suas
narrativas não são um reflexo preciso da realidade: constroem a realidade
durante o processo de representá-la. É evidente que, num sentido simplório, o
verdadeiro continua sendo verdadeiro, e o falso, falso. Nenhum historiador dirá
que a Polônia invadiu a Alemanha, assim como nenhum jornalista (bem, quase
nenhum…) dirá que Jair Bolsonaro vem fortalecendo as instituições da democracia
brasileira. Não é a “mínima factualidade comum” que está em jogo aqui. Mesmo
porque, convenhamos, não faz sentido aplaudir o jornalismo por fazer o mínimo
que lhe é exigido. A questão é que há uma diferença entre dizer “a correção
factual importa” e “a correção factual é tudo o que importa”, e essa diferença
se torna mais visível se nos perguntarmos pelas realidades que as narrativas
jornalísticas ajudam a construir.
É aqui que o debate sobre “o que é o jornalismo” encontra o debate
político acerca da função que cumpre. A definição de Thomas Jefferson do
jornalismo como “cão de guarda da sociedade” permanece referência inescapável.[3] Caio
Túlio Costa e Merval Pereira a evocam em seus ensaios; o argumento, como de
costume, é o de que o jornalismo e a democracia caminham juntos. Garantia de
liberdades civis, transparência de atos do poder público, formação de
preferências dos eleitores, tudo isso depende em alguma medida de uma imprensa
livre e plural. Tal argumento não seria lugar-comum se não fosse verdadeiro em
um sentido elementar. Difícil imaginar um jornalista que discorde, por exemplo,
da afirmação de Pedro Doria em artigo publicado no ano passado no jornal O
Globo segundo a qual “o jornalismo existe para servir a democracia.
Uma coisa está amarrada à outra. Não há jornalismo real fora da democracia,
assim como não há democracia sem jornalismo”.
Metáforas (“cão de guarda”) e platitudes genéricas (“servir a
democracia”) são sedutoras porque convidam à abstração. Mas é a partir de sua
inscrição na experiência mundana que devemos interrogá-las. Vejamos: um cão de
guarda possui um dono, a quem é fiel. Ora, o dono de um jornal são os seus
acionistas, não a sociedade. Um jornal pode defender a sociedade com unhas e
dentes – mas, se não obtiver lucro, fecha as portas. Não estou negando que o
jornalismo seja um anteparo relevante contra projetos autoritários, nem que
frequentemente cumpra a função de defender interesses públicos. Basta ver o
eficiente trabalho que a imprensa brasileira vem fazendo sobre a pandemia.
Estou sugerindo que a metáfora de Jefferson dá a entender que a principal
preocupação dos jornais é atender a interesses públicos, quando na verdade é
cuidar de sua própria saúde financeira. Interesses públicos e privados podem
eventualmente coincidir, claro. Mas têm naturezas distintas e conflitam entre
si com mais frequência do que os diretores de redação gostariam de admitir.
Do mesmo modo, devemos perguntar que democracia é essa que o jornalismo
alega defender. Como observou a cientista política norte-americana Wendy Brown,
a democracia é um princípio inacabado. Não especifica que poderes devem ser
compartilhados para que o governo do povo seja colocado em prática, não
estipula como esse governo deve ser organizado, tampouco define o arranjo
institucional por meio do qual tudo isso pode ser feito. A ideia de democracia
não traz consigo a régua de sua aplicação. Em termos retóricos, é bonito dizer
que a democracia e a imprensa são indissociáveis, ou que o jornalismo permanece
sendo “o espaço público para a formação de um consenso em torno do projeto
democrático” (Merval Pereira). Em termos práticos, isso não diz quase nada. Se
abandonarmos o conforto de abstrações até corretas, porém banais, e examinarmos
a que tipo específico de democracia o jornalismo brasileiro vem servindo,
teremos subsídios para um diagnóstico mais preciso. Há democracias e
democracias, afinal.
Compreender o tipo de democracia que a grande imprensa brasileira vem
ajudando a construir exige observar como alguns eventos políticos relevantes de
nossa história recente foram apresentados. Comecemos pelas manifestações de
junho de 2013. Não é meu objetivo avaliar o legado político de junho, mas
apenas analisar o enquadramento ofertado pelos grandes jornais. Grosso modo, os
protestos dividiram-se em dois grandes momentos, as manifestações iniciais
convocadas pelo Movimento Passe Livre (MPL) e, posteriormente, a explosão dos
protestos Brasil afora. No primeiro momento, a grande mídia rotulou as
manifestações como pura expressão de vandalismo de militantes radicais. Mais
tarde, percebendo a iminência da massificação dos protestos, os jornais
tentaram pautar–lhes a agenda, destacando a aprovação de leis mais rigorosas
contra a corrupção. Então já não eram mais vândalos que tomavam as ruas, mas
sim o “gigante” povo brasileiro que enfim acordara.
“O Movimento Passe Livre”, afirmava um editorial de O Estado de
S. Paulo na edição de 8 de junho de 2013, “[é] pura e
simplesmente contra qualquer tarifa, ou, se se preferir, a favor de uma tarifa
zero. Ele não se opõe ao aumento da tarifa de 3 para 3,20 reais, mas a ela
própria. Ou seja, não há acordo possível e, como seus militantes são radicais,
qualquer manifestação que promovam só pode acabar em violência. […] Agora
mesmo, o prefeito Fernando Haddad, em vez de condenar o vandalismo promovido
pelo Movimento Passe Livre, se apressou a informar que está aberto ao diálogo.
Vai discutir com esse bando de vândalos a tarifa zero?” No mesmo diapasão, um
editorial da Folha de S.Paulo, publicado cinco dias depois, dizia o
seguinte: “São jovens predispostos à violência por uma ideologia
pseudorrevolucionária, que buscam tirar proveito da compreensível irritação
geral com o preço pago para viajar em ônibus e trens superlotados. Pior que
isso, só o declarado objetivo central do grupelho: transporte público de graça.
O irrealismo da bandeira já trai a intenção oculta de vandalizar equipamentos
públicos e o que se toma por símbolos do poder capitalista.”
É claro que há sempre algum espaço para o contraditório nos grandes
jornais, seja em reportagens ou artigos de opinião. Mas editoriais são
particularmente importantes para o observador do trabalho jornalístico porque
explicitam o enquadramento narrativo que manchetes de primeira página se
esforçarão em fazer parecer descritivas. Basta notar como ambos, editoriais e
manchetes de capas, costumam coincidir. O que a leitura dos editoriais acerca
da tarifa zero revela é o pavor daquilo que ela implicaria, caso fosse
discutida: o transporte público como direito à cidade. Do ponto de vista dos
jornalões, é como se o sistema de concessões a empresas privadas fosse a
condição natural do transporte público, seu ponto de partida necessário. Se não
havia diálogo possível com integrantes do MPL, era porque eles colocavam em
questão os pressupostos que regulam o direito à cidade, que o establishment
gostaria de manter fora de discussão. Os jornais não estavam criticando a
tarifa zero. Estavam negando inteligibilidade à ideia do transporte público
gratuito e incitando o poder público a sequer conversar com aqueles que o
reivindicavam. Eis algo que deixaria um liberal como John Stuart Mill de cabelo
em pé. “Todo silenciamento de discussão”, escreveu Mill, “é uma pretensão de
infalibilidade.”
Dizer que a grande mídia agiu para silenciar a discussão acerca da
tarifa zero não implica negar a realidade da violência nos protestos. É
evidente que houve quebra-quebra, que o termo “vandalismo” se ajusta à
descrição de vidraças depredadas e que nada justifica as agressões a
jornalistas. Mas não se trata da adequação do uso de uma palavra, e sim da
decisão de fazer da violência o fio condutor da narrativa sobre junho de 2013.
O modo mais fácil de esvaziar o caráter político de manifestações é dizendo-as
explosões irracionais de vandalismo. Os jornais precisaram apenas repetir ad
nauseam as imagens de vidraças quebradas para transformar uma parte (a
violência) numa suposta verdade sobre o todo (a questão política em jogo). Essa
“verdade” foi então mobilizada para exigir repressão, mesmo que isso
significasse o atropelo de garantias constitucionais.
Os atropelos não tardaram. Detenções arbitrárias, flagrantes forjados,
policiais à paisana iniciando pancadarias, carros descaracterizados da polícia
efetuando disparos a esmo. Todas essas ações precisavam ser traduzidas numa
linguagem assimilável pelo leitor médio dos jornais. Para legitimar as práticas
autoritárias empregadas na repressão, mas conservar algum semblante de
legalidade, a grande mídia ancorou o seu discurso na metáfora da guerra (vide,
por exemplo, chamadas de capa como esta: A Batalha da Alerj,
de O Globo, em 18 de junho de 2013). O truque é antigo. Quem estuda
segurança pública no Brasil sabe que a metáfora da guerra foi e continua sendo
o principal artifício discursivo de normalização da brutalidade policial nas
periferias. Não é difícil compreender o motivo. A metáfora da guerra, dizia o
escritor carioca Victor Heringer, nos leva a pensar por exclusão. O pensamento
que gravita em torno da ideia de guerra suscita o maniqueísmo moral mais
simplório. Amigo ou inimigo, matar ou morrer. Não há meio-termo, não há
possibilidade de mediações. A guerra esvazia o direito, abrindo caminho para
que se fabrique o consentimento em relação a todo tipo de abuso por parte do
Estado.
Nesse ponto, é necessário dar um passo atrás e recolocar o problema do
enquadramento midiático das manifestações em um arco mais amplo. Um vocabulário
militarizado é um dos pressupostos de uma polícia militarizada, algo que
atravessa a sociedade brasileira desde sempre. Não estamos há tempos lutando
contra o “exército do tráfico”? Se a metáfora da guerra pode ser acionada como
ícone de junho de 2013, e se sequer foi percebida como metáfora, é porque
encontrou um terreno discursivo no qual os excessos de repressão a um sujeito
tido como violento, ameaçador a uma suposta ordem, já estão naturalizados.[4]
É extenso o histórico de narrativas que afirmam o menor valor simbólico
de certos lugares na sociedade brasileira, sobretudo o lugar dos pobres e
pretos. A Rocinha É Nossa, anunciava em letras garrafais a capa
de O Globo no dia seguinte à instalação da Unidade de Polícia
Pacificadora (UPP) na comunidade. Implícita na manchete está a ideia de que a
Rocinha até então era “deles”, dos traficantes, em função do seu domínio
armado. Essa ideia é, ao mesmo tempo, verdadeira e falsa. Verdadeira por
motivos óbvios, falsa porque a Rocinha pertence a todos os cidadãos que nela
residem, não apenas ao grupo armado que explora o comércio de drogas no local.
Poderíamos então perguntar se não seria possível noticiar a instalação da UPP
sem apagar a posse comunitária da Rocinha por seus mais de 150 mil moradores,
sem fazer de suas existências cotidianas mero apêndice de uma história
encabeçada por uma centena de fuzis. Talvez esse apagamento nos ajude a
entender o ato falho de uma chamada no site do mesmo jornal, em 20 de maio de
2016: Tiroteio na Rocinha Assusta Alunos da PUC.
Tornar aceitável a arbitrariedade do poder público durante junho de 2013
implicou também blindar quem a autorizava; no caso do Rio de Janeiro, o então
governador Sérgio Cabral. Acossado durante meses pelos protestos e com a
aprovação popular em parcos 12%, o governador contava com o maior jornal
carioca para lhe garantir algum respaldo perante a opinião pública. Eis uma
chamada no site de O Globo, em 1º de agosto de 2013: Oposição
Cria Grupo para Infernizar a Vida de Cabral na Alerj. Dado que
transformar a vida de um governante num inferno não é exatamente um modo
republicano de fazer política, resta claro que a narrativa do jornal retira a
legitimidade da oposição no Legislativo fluminense, à época liderada pelo
Psol. O Globo não diz com todas as letras, mas coloca a bola
na marca do pênalti para que o leitor conclua: “A oposição joga sujo.” Se, no
Twitter, Allan dos Santos utilizasse a mesma expressão para se referir à
oposição feita a Bolsonaro no Congresso, não faltariam vozes respeitadas do
jornalismo para acusar o blogueiro de rebaixar a legitimidade do dissenso na
política, sem o qual democracia liberal alguma fica de pé.
Ablindagem da imprensa foi fundamental também às aspirações políticas da
Operação Lava Jato. A sistemática violação de preceitos constitucionais por
parte de atores do Judiciário não mereceu mais do que uma ou outra notinha
apontando “excessos”. É bem verdade que colunas como as de Celso Rocha de
Barros, Conrado Hübner Mendes e Bernardo Mello Franco, por exemplo, denunciavam
o lawfare “lavajatista”. Mas textos opinativos podem muito
pouco, se comparados à força das narrativas marteladas diariamente nas capas
dos jornais. As vozes solitárias dos colunistas acabaram soterradas em meio à
grandiosa cruzada messiânica contra a corrupção.
A cruzada prosseguiu acumulando violações. Prisões preventivas que se
arrastaram por anos. Vazamento seletivo de informações sigilosas. Escritórios
de advogados grampeados, comprometendo o princípio da ampla defesa. Condução
coercitiva desnecessária do ponto de vista jurídico, mas útil para transformar
simbolicamente o réu em bandido. Divulgação de um grampo feito ilegalmente de
uma conversa entre Lula e Dilma, visando impedir a nomeação do ex-presidente a
um ministério. Liberação para o público, às vésperas da eleição de 2018, da
delação de Antonio Palocci. Tudo isso foi tratado pelos jornais como deslize
menor, remediável mediante pedido de escusas. O que importava, a grande
história então contada, era a de que estava em curso uma revolução nas relações
entre os poderes da República. Contra o patrimonialismo corrupto de políticos
erguiam-se as mãos limpas de juízes e procuradores, que enfim nos livrariam de
todo o mal.
Por “todo o mal” leia-se não apenas o Partido dos Trabalhadores, mas as
bases do sistema político brasileiro. Revoluções nunca são empreitadas
modestas, o que deveria ter sido um motivo a mais para que a grande imprensa
mantivesse algum distanciamento crítico em relação à “revolução judiciarista”
(na expressão do cientista político Christian Lynch) deflagrada pela Lava Jato.
Se os significados de eventos que alteram os rumos da história só nos são
plenamente acessíveis em retrospecto, então toda análise de conjuntura será,
por definição, envolta em incerteza. Logo, a dúvida é tanto mais necessária
quanto mais tensionada for a conjuntura em questão.
Mas não havia espaço para dúvidas. Sergio Moro foi alçado à condição de
herói nacional, e os jornalões exalavam convicções ancoradas numa narrativa
construída com base em vazamentos seletivos fornecidos pela força-tarefa que o
então juiz comandava em parceria com o procurador Deltan Dallagnol (sobre este
ponto, ver o ensaio de Marina Amaral em Tempestade Perfeita).
Talvez essas convicções se baseassem na aposta de que o ineditismo dos fatos
criados pela Lava Jato inauguraria um novo Brasil. Contudo, a aparição de um
fato novo não é necessariamente indício do surgimento de uma nova realidade. A
novidade pode estar a serviço da tradição, como costuma acontecer no Brasil.
Nada mais tradicionalmente brasileiro do que elites recorrendo a expedientes
antidemocráticos quando acreditam que seus interesses não estão sendo
atendidos. Nada mais tradicionalmente brasileiro do que a torção a que a letra
da lei é submetida por aqueles que têm o dever de resguardá-la.
Nesse sentido, é sintomática a distinção entre magistrados (e
jornalistas) “garantistas” e “lavajatistas”. Do ponto de vista da teoria
liberal, a Justiça se legitima pela neutralidade de seus procedimentos, não
pelos resultados que produz. Aqui a inversão: “garantistas” são enquadrados
como ideólogos interessados apenas nos resultados, isto é, em proteger seus
cupinchas, enquanto “lavajatistas” são apresentados como técnicos imparciais,
guardiões dos procedimentos constitucionais. Há “garantistas” hipócritas de
ocasião? Certamente. Mas o zelo pelo devido processo legal, seja lá quais forem
suas motivações, não costuma colocar a democracia em risco. Já o vale-tudo
constitucional, a versão tupiniquim do constitutional hardball de
que falam os cientistas políticos norte-americanos Steven Levitsky e Daniel
Ziblatt, promovido por lavajatistas, abraça o utilitarismo para triturar a
lisura de procedimentos, desgastar a majestade das leis e provar mais uma vez
que, no Brasil, o direito é servo do poder.
Essa servidão custa caro à democracia brasileira, haja vista o estrago
causado pela banalização do instrumento do impeachment. Mas, se o preço a pagar
for a aprovação do mercado, a grande imprensa considera-o uma pechincha. Se o
mercado prometer Bolsa subindo e dólar caindo, não faltará criatividade aos
jornais para construir narrativas visando fazer dessa promessa uma profecia que
se autorrealiza. E assim Jair Bolsonaro, extremista com um histórico público de
desprezo pela democracia, foi apresentado pelos jornais brasileiros durante a
campanha de 2018 como um candidato “radical” de falas “polêmicas”, enquanto a
revista The Economist, entre outras publicações liberais mundo
afora, chamava a coisa pelo seu devido nome. Assim também o governo Bolsonaro é
descrito como composto por dois grandes grupos, além dos militares: a ala
ideológica, os “olavistas” espalhados em ministérios diversos, e a ala técnica,
presidida por Paulo Guedes, o ministro da Economia. O estabelecimento dessa
dualidade por si só enquadra Guedes – que, entre outras coisas, esculhamba o
IBGE, acredita que a Covid foi criada em laboratórios chineses e emite
declarações demófobas com a naturalidade de quem joga conversa fora num bar –
como não ideológico.
Já se disse que a astúcia do conservadorismo é apresentar-se como senso
comum. O mesmo poderia ser dito das manobras ideológicas que revestem os
interesses de mercado com o manto protetor da assepsia “técnica”. Tome-se, por
exemplo, a reforma da Previdência. Aqui, mais uma vez, recorro ao ótimo texto
de Marina Amaral. Uma pesquisa do Coletivo Intervozes sobre a cobertura da
reforma nos jornais Folha de S.Paulo, O Globo e O
Estado de S. Paulo revelou que todos esses veículos apresentaram a
reforma como obrigatória e prioritária. Das pessoas entrevistadas pelos jornais
para falar da reforma proposta por Guedes, 72% eram a favor dela, e apenas 19%
contra – entre elas as que criticavam, sobretudo, o fato de os militares terem
sido poupados na mudança. A isso, no Brasil, dá-se o nome de jornalismo
profissional.
Como vimos, o jornalismo profissional asfixiou o debate sobre o
transporte público gratuito e exigiu o arbítrio estatal na repressão aos que o
reivindicavam. Naturalizou a brutalidade do modelo de segurança pública
brasileiro, contribuindo para a manutenção da nossa hierarquia social racista e
classista. Abraçou o vale-tudo constitucional, legitimou um messianismo togado
que corrompeu procedimentos legais e comprometeu a lisura da última eleição,
abrindo caminho para a vitória de um projeto antidemocrático de poder. Agora, o
jornalismo profissional faz o jogo de morde e assopra com o presidente que
ajudou a eleger. Morde seus arroubos autoritários, assopra sua política
econômica, dizendo-a técnica, não ideológica.
O morde e assopra não é exclusivo da imprensa. A nata do PIB brasileiro
assistiu calada o governo Bolsonaro ensaiar um golpe de Estado, atentar contra
a independência das instituições, deslegitimar o processo eleitoral, negar a
gravidade da pandemia, espalhar desinformação e cloroquina, criticar medidas de
distanciamento e sabotar a compra de vacinas. Foi apenas no final de março de
2021 – depois de mais de 280 mil mortos, da posse do quarto ministro da Saúde e
do dólar batendo 5,60 reais – que a nata do PIB brasileiro se pronunciou
publicamente em carta assinada por cerca de 1,5 mil banqueiros, empresários e
economistas.[5] Mordeu
o negacionismo do governo, sem citar nominalmente Bolsonaro, e assoprou a pasta
comandada por Paulo Guedes.
O problema dos liberais que chefiam as redações não é o negacionismo,
mas a negação da ideia de res publica, a negação da igualdade
fundamental, a negação de princípios deontológicos de justiça, a negação de
legitimidade a qualquer aspiração que contrarie os interesses do mercado. A
posição política que ocupam hoje guarda poucas semelhanças com a tradição da
qual se dizem herdeiros. É o mercado, não a democracia liberal, a bússola das
redações dos grandes jornais. Mas o mercado que norteia as manchetes não é o da
teoria clássica, a estrutura de interações econômicas regida pela lei da oferta
e da demanda. O mercado que pauta as redações é a articulação de certos interesses
econômicos em nível nacional e global, que age segundo sua conveniência. É
aquele que volta e meia aparece exprimindo suas posições de classe, por exemplo
quando avalia cenários (Mercado Vê Dólar a 3,50 reais com Eleição de Jair
Bolsonaro, no Correio Braziliense, em 17 de outubro de 2018) ou
faz apostas com a conjuntura (Risco-país Sinaliza que Mercado Mantém Aposta em
Impeachment, em O Globo, em 14 de março de 2016). Esse mercado, que
nada mais é do que o agregado de interesses de um grupo de pessoas com fortunas
enterradas em paraísos fiscais, é visto como a entidade que possui a
prerrogativa de estabelecer as fronteiras do possível em matéria de política.
Os jornalões contribuem para naturalizar o mercado como índice de normalidade
do mundo contemporâneo, e ainda se jactam de prestar um grande favor à
democracia.
Podemos agora retomar o fio da meada. No início deste ensaio, sugeri que
a “mínima factualidade comum” não é um bom critério para distinguir o
jornalismo. Sendo uma atividade narrativa, o jornalismo deve ser avaliado pelos
tipos de histórias que coloca no mundo, e pelos mundos que essas histórias
ajudam a construir. Afirmei também que podemos fazer isso sem cair no
relativismo. Sem renunciar ao ideal regulativo da objetividade factual, pode-se
comparar enquadramentos e narrativas, refletir sobre as histórias que contam e
as perspectivas que oferecem.
Exemplos não faltam. Era possível reportar a violência nas manifestações
em 2013 e reconhecer a legitimidade das reivindicações pelo Passe Livre. Era
possível (e continua sendo) noticiar questões de segurança pública sem
naturalizar a brutalidade no trato aos mais vulneráveis. Era possível denunciar
a corrupção dos governos petistas e, ao mesmo tempo, o vale-tudo constitucional
mobilizado a pretexto de combatê-la. Era possível criticar os descalabros
contábeis do governo Dilma sem vender a ideia de que o impeachment era apenas
um procedimento técnico, apolítico. Era possível nomear o então candidato Jair
Bolsonaro como extremista e antidemocrático, sem faltar com a verdade. Alguém
poderia retrucar dizendo que escrevo com o benefício do olhar em retrospecto, o
que é verdade. Mas não há de ser coincidência o fato de que as escolhas de
enquadramento aqui criticadas tenham um sentido comum que as une.
Esse sentido comum é a negação de princípios liberais e a afirmação de
um modelo ralo de democracia. A negação do pluralismo é a afirmação de um tipo
de democracia que proíbe questionar a hegemonia do privado sobre o público. A
negação da política é a afirmação da democracia entendida como mera gestão da
economia segundo interesses de mercado, o que transforma a vontade popular numa
mera inconveniência a ser contornada. A negação da justiça é a afirmação de uma
democracia onde o estado de direito é “flexibilizado” para que eleições sejam
corrompidas ao sabor do arbítrio de ocasião. Levando em consideração os rumos
da política no Brasil, a história que vem sendo contada pela grande imprensa
não parece edificante. Nossos liberais, entretanto, continuam a enxergá-la com
bons olhos. Com a ironia usual, o jornalista Reinaldo Azevedo observou
recentemente que o ex-juiz e agora candidato presidencial Sergio Moro “tem mais
colunistas do que eleitores”.
Quando confrontados com críticas feitas a partir de questões de enquadramento,
como essa que desenvolvo aqui, donos de jornais e diretores de redações
costumam lavar as mãos apelando à mínima factualidade comum: “Não fazemos mais
do que reportar os fatos.” Por um lado, esse apelo exprime a enorme força
inercial do status quo. Assim como transatlânticos não fazem curvas
fechadas em alto-mar, a grande imprensa custa a manobrar diante do movimento do
mundo tal como ela o concebe. Críticos de esquerda costumam desconsiderar esse
ponto, imputando sempre intenções perversas às coberturas jornalísticas que
lhes desagradam.
No entanto, o apelo a esse objetivismo rasteiro funciona também como um
álibi, consciente ou não, para as escolhas que os jornalistas são obrigados a
fazer diariamente. É óbvio que a mentira deslavada não é a matéria-prima da
atividade jornalística profissional. Mas as chefias das redações se apegam a
essa obviedade como se isso as isentasse de qualquer responsabilidade pelos
mundos que as histórias que publicam ajudam a construir. Como se heróis não
precisassem de narrativas redentoras de luta contra vilões para se afirmarem.
Como se mitos não precisassem de suportes discursivos para realizarem o seu
trabalho de convencimento. Como se não bastasse omitir determinadas partes para
produzir um mosaico enganoso do todo (uma antiga publicidade da Folha
de S.Paulo alertava que “é possível contar um monte de mentiras
dizendo só a verdade”). Como se a opinião publicada frequentemente não se
transformasse em opinião pública, e as histórias criadas a partir dos fatos reportados
não tivessem influência alguma na formação da atmosfera política do país.
A previsão é que a tempestade se agrave nesse ano eleitoral. Exatamente
por isso, a importância do jornalismo é agora maior do que antes. Aos
observadores, cabe lembrar que não faz sentido exigir imparcialidade dos
jornais. O melhor que podemos fazer é analisar as parcialidades das histórias
que contam e refletir sobre os efeitos que suscitam. Ter inclinações
socialistas não é um requisito para esse exercício. Liberais podem perfeitamente
fazê-lo. Que tão poucos se mostrem dispostos a isso é mais um indício da
encrenca em que nos encontramos.[6]
[1] Fundadora e diretora da Agência Lupa, uma
plataforma de checagem. A Editora Alvinegra, que publica a piauí,
colaborou com a criação da Lupa em 2015 e, desde 2021, passou a deter
participação acionária na plataforma. (N.R.)
[2] Cristina Tardáguila escreve sobre os desafios
da checagem. Luciana Barreto analisa o problema do racismo dentro do
jornalismo. Helena Celestino aborda o movimento LGBTQIA+ e direitos humanos,
racismo e cobertura de segurança pública, jornalismo periférico e parcerias
com startups de informação, e os ataques do presidente
Bolsonaro ao trabalho da imprensa. O texto de Marina Amaral, também de grande
fôlego, abarca diversas questões: a história da Agência Pública, da qual é
fundadora, a perseguição sofrida por Julian Assange, a enorme concentração da
mídia no Brasil, a crise da confiança na imprensa, o jornalismo investigativo,
a questão de gênero nas redações, entre outras.
[3] Mas é curioso como quase não se comenta que
Jefferson, em gesto que se tornaria clássico na política moderna, mudou de
opinião depois de eleito: “Não se pode acreditar em nada que agora é visto nos
jornais. A própria verdade torna-se suspeita ao ser exibida nesse veículo
contaminado.”
[4] Agradeço ao crítico de arte Sérgio Bruno
Martins por haver me chamado a atenção para este ponto.
[5] Entre as pessoas que assinaram a carta,
algumas poucas não se encaixam no perfil que critico aqui.
[6] Agradeço aos alunos da disciplina de teoria
do conhecimento pelos debates sobre o tema, e aos amigos José Eisenberg e Paulo
Jorge da Silva Ribeiro pelas críticas feitas aos rascunhos deste ensaio.
É doutor em ciências sociais, professor de sociologia e
pesquisador
Veja: O nó da terceira via
https://bit.ly/35Q9UAn
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