Brasil profundo
Márcio Pochmann
Visto de cima, o
Brasil segue dominado por suas aparências, como se fosse uma espuma boiando na
superfície. O Brasil profundo se mantém pouco conhecido, com sua essência
incapaz de ser completamente decifrada.
Esse ponto de
partida é a chave que permite abrir um novo horizonte de saída para uma
sociedade apartada desde o seu nascimento enquanto nação, há dois séculos. Ao
inserir-se no mundo da Era Industrial como um país consumidor de produtos
manufaturados, passou mais de cem anos dependendo das importações de bens e
serviços industriais. E, por não dispor de moeda de pagamento para importar,
tornou-se prisioneiro do modelo econômico primário-exportador. Isto repartiu a
população em dois grupos. Um menor, que constitui o andar de cima da sociedade,
ligado às atividades da produção e exportação dos bens primários. O país da
sobremesa, conforme Oswald de Andrade revelou no seu manifesto de 1937: “País
de sobremesa. Exportamos bananas, castanhas-do-pará, cacau, café, coco e fumo.
País laranja! (…). Os nossos economistas, os nossos políticos, os nossos
estadistas deviam refletir sobre este resultado sintético da história pátria.
Somos um país de sobremesa. Com açúcar, café e fumo só podemos figurar no fim
dos menus imperialistas. Claro que sobremesa nunca foi essencial”.
A outra parte da
população, a maior, teve que se acomodar no apertado andar de baixo, distante
do acesso à educação, saúde, cultura e transporte decente. Esta parte da
sociedade foi exposta às profundezas da reprodução da vida pelo trabalho em atividades
de subsistência humana, que passou a ter acesso ao consumo de bens e serviços
da Era Industrial somente a partir da Revolução de 1930, que ousou substituir o
modelo econômico primário-exportador pelo de substituição de importações.
A valorização da
produção nacional abriu espaços para incluir a população do andar de baixo em
postos de trabalho com identidade reconhecida por uma carteira de acesso a
direitos sociais e trabalhistas – férias, descanso semanal, salário mínimo e
outros até então desconhecidos.
Nos dias de
hoje, em pleno avanço na Era Digital, o fosso que separa o andar de cima do de
baixo aumentou significativamente. Para a maioria da população, já não há mais
a perspectiva de trabalho com identidade e pertencimento superior. Resta apenas
a subsistência no interior do antigo e cada vez mais apertado andar de baixo da
sociedade.
Na escuridão do
desconhecido, o Brasil profundo tem cada vez mais pessoas que têm apenas velas
para iluminar os caminhos, e seguem as vias do fanatismo religioso.
Ocupando este
mesmo espaço reduzido à essencialidade da vida humana, também está o banditismo
social, com as promessas de abertura de túneis de ligação direta com alguns dos
cofres que guardam riqueza acumulada pelo andar de cima.
Essa divisão
poderia ser rompida pelas novas oportunidades que a Era Digital oferece. Mas
isto requer ultrapassar a condição de país consumidor/importador de bens e
serviços digitais condicionado ao modelo econômico primário-exportador.
Mas, a
manutenção do modelo atual apenas aprofunda a separação da sociedade em
orgânica, vinculada à produção e exportação, e a inorgânica, submetida a
qualquer atividade de subsistência, seja legal ou não.
A retomada da
complexidade econômica, com a internalização da produção e consumo da Era
Digital, poderia trazer à tona o Brasil profundo, pois é a única saída capaz de
oferecer uma efetiva perspectiva de vida soberana à nação.
Para isso é
preciso inverter o plano das imagens. Um olhar a partir de baixo do Brasil
profundo.
Márcio Pochmann é
diretor do Instituto Lula. Publicado no portal Terapia Política
.
Veja: O nó da terceira via
https://bit.ly/35Q9UAn
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