O sonho de uma internet pública não acabou
Avançam,
em várias partes do mundo, medidas para limitar o poder das Big Techs.
Mas livro recém-lançado sustenta: é possível ir além e retomar a ideia de uma
rede voltada ao Comum, livre dos oligopólios e administrada pelas comunidades
Ben Tarnoff, em entrevista a Gilad Edelman para
a Wired | Tradução: Maurício Ayer - Outras palavras
No momento da publicação desta
entrevista, estão para ser votados no
Senado dos EUA alguns projetos de lei antitruste com foco nas plataformas que
dominam a internet. A União Europeia está finalizando sua própria série de
novas regulações. Além
disso, vários estados norte-americanos estão aprovando leis – umas melhores,
outras piores – que buscam estabelecer limites para uma indústria de tecnologia
amplamente vista como fora de controle.
Para
Ben Tarnoff, essas propostas são terrivelmente inadequadas. Em seu próximo livro, Internet
for the People (Internet para as pessoas), ele defende que os
problemas da internet estão fundamentalmente ligados ao lucro; e que só uma
virada para a propriedade pública poderá resolvê-los.
“Os
reformadores da internet têm boas ideias, mas nunca chegam à raiz do problema”,
escreve ele. “A raiz é simples: a distorção essencial da internet é seporque é
um negócio.”
Tarnoff
vê como boas promessas os exemplos bem-sucedidos de redes de banda larga de
propriedade cooperativa e municipal espalhados pelo mundo. Mas o que
significaria colocar a própria Web – os sites e aplicativos que usamos todos os
dias – sob propriedade pública? Tarnoff conversou com a Wired para expor sua visão de
uma internet socialista e como alcançá-la.
Esta entrevista foi condensada e levemente editada.
O argumento central do seu livro é que precisamos
“desprivatizar” a internet. Subentende-se que ela já foi pública.
Ben Tarnoff – Os protocolos de internet, que são as
regras que permitem que as redes da internet se comuniquem entre si, foram
inventados na década de 1970 por pesquisadores da DARPA. Em seguida, o
Pentágono usou esses protocolos para interconectar várias redes, a partir da
década de 1980. Essa rede de redes passou então ao controle federal civil, sob
a coordenação da National Science Foundation.
O
ano crucial é 1995, quando a National Science Foundation concluiu a espinha
dorsal da internet, uma artéria central até então chamada NSFNET, e o setor privado
assumiu. É aí que começa o processo de privatização: no chamado “porão” da
internet, com a estrutura de transmissão.
Há muitos lugares ao redor do mundo que têm internet muito mais
rápida e mais barata do que nos EUA, e é fornecida pelo setor privado. O
problema é a privatização ou a desregulamentação? A internet não foi apenas
entregue ao setor privado nos EUA, foi entregue em condições muito favoráveis
para as empresas.
Você
levanta uma questão interessante: o objetivo é simplesmente melhorar a velocidade
por um custo menor? Ou há algo mais? Pesquisas mostram que, se você trouxesse
concorrência para o mercado altamente concentrado de serviços de internet nos
Estados Unidos, certamente melhoraria as velocidades e reduziria o custo. Esse
é um objetivo muito importante. Mas não é suficiente, por duas razões. Uma
delas é que a concorrência tende a funcionar melhor para as pessoas pelas quais
vale a pena competir, ou seja, a concorrência é melhor para reduzir os preços
dos pacotes de banda larga mais sofisticados. Onde a concorrência não é tão
eficaz é para levar conectividade a pessoas que realmente não podem pagar, ou
que vivem em comunidades, principalmente comunidades rurais, nas quais não é
lucrativo investir.
Aprofundando
a explicação, em um sistema privado, as pessoas não têm a oportunidade de
participar das decisões sobre como sua infraestrutura é implantada,
desenvolvida, gerenciada e assim por diante. Por isso tenho muita fé nas redes
comunitárias, porque como alternativas de propriedade pública e cooperativa
elas têm a oportunidade de codificar e credenciar práticas que realmente dão
aos usuários a possibilidade de opinar sobre como o serviço funciona.
Parece que você acredita que essas medidas antitruste e de
concorrência são necessárias, mas não suficientes.
Sim,
é isso o que eu acho. A tradição antimonopólio é, na verdade, bastante rica e
diversificada. Considero as medidas antimonopólio bastante úteis para reduzir o
poder dessas empresas, para diminuir sua pegada. E há muitas medidas específicas,
como exigir interoperabilidade entre redes sociais e desmembrar as grandes
empresas, que vejo como medidas intermediárias bastante úteis para se chegar a
uma internet desprivatizada. Mas há um desacordo mais profundo que tenho com o
pessoal da luta antimonopólio sobre a origem dos problemas básicos da internet
e de qual é o horizonte final.
É difícil argumentar contra a ideia de um controle democrático
sobre as redes que as pessoas usam e confiam, mas sou cético em relação a como
isso realmente aconteceria na prática. Acho que a maioria das pessoas só quer
que o serviço seja rápido e por um preço acessível. E há um argumento bastante
forte de que a maneira mais direta de as pessoas realizarem esse desejo é
podendo escolher entre as opções disponíveis em um mercado.
Veja: A gente se junta no
WhatsApp e depois nas ruas https://bit.ly/3LcXQYD
Acho
que parte do que você está perguntando é: quais são as decisões que valem a
pena de ser tomadas de uma forma mais democrática e deliberativa? Há uma série
de problemas que surgem relacionados a onde e como se implantar a
infraestrutura. Quando você está construindo a rede de banda larga na chegada
aos usuários, por exemplo, ou mesmo o que é chamado de rede de banda larga mais
estrutural, há muitas opções. Quais bairros serão atendidos? Quais tecnologias
você vai usar? Você vai tentar incorporar uma rede inteligente, que pode
melhorar a eficiência energética? Estas são questões que preocupam os membros
da comunidade local, e estes são os tipos de questões que surgem, por exemplo,
no cooperativas
rurais em
Dakota do Norte que tiveram muito sucesso na construção de suas redes de banda
larga.
A conversa fica ainda mais interessante e complicada quando
passamos para a camada dos aplicativos da internet, como Facebook ou Google.
Você está falando literalmente em proibir aplicativos com fins lucrativos na
Web ou existe alguma outra maneira de eliminá-los oferecendo alternativas sem
fins lucrativos?
Não
vejo a abolição imediata do lucro na internet como uma proposta particularmente
realista. Tenho outras propostas sobre como podemos alimentar alternativas
desprivatizadas e começar a desenvolver um setor desprivatizado.
Lendo seu livro, em muitos momentos eu pensei: “O que ele mostra
é que precisamos melhorar a regulação”.
Concordo
que a regulamentação dessas empresas é essencial. Meu ponto é que, no final das
contas, se queremos construir uma internet melhor, acho que precisamos
transformar a forma como ela é gerida e organizada. Na minha opinião, deixar a
internet nas mãos de empresas privadas, e deixar que ela seja organizada em
torno do princípio da maximização do lucro, significa que há muito pouco que as
políticas públicas possam fazer.
Mudar
o modelo de propriedade não é apenas algo a ser feito por si só. É realmente um
meio para um fim, e este fim é uma internet na qual as pessoas tenham a
oportunidade de participar das decisões que mais as afetam.
A maioria das pessoas não quer votar em propostas a respeito do
desenvolvimento do protocolo que estão usando. Elas só querem que funcione. Eu
sei que isso soa muito cínico. Mas como você vende a alguém uma web
desprivatizada? Como o mundo dessas pessoas ficaria melhor?
Aqui,
volto-me para experimentos na chamada comunidade Web descentralizada – em
particular, projetos de mídia social descentralizados como Mastodon. Ele já existe há algum
tempo. É um projeto de código aberto que permite que as pessoas criem suas
próprias instâncias de mídia social e as conectem como federações. É
interessante e promissor porque permite formar comunidades de mídia social nas
quais decisões críticas de governança, como moderação de conteúdo, possam ser
tomadas de forma democrática e nas quais uma cooperativa de usuários possa se
reunir para determinar como sua comunidade de mídia social deve ser
administrada.
Concordo que o exemplo do Mastodon é interessante, mas como você
disse, já existe há algum tempo e não há muita demanda por ele. Acho que ter
pluralismo e federação e controle distribuído em nível comunitário faz todo o
sentido do mundo. E, no entanto, não é nessa direção que as pessoas gravitam.
É
aqui que precisamos falar sobre investimento público. O Mastodon é um projeto
de código aberto. Projetos de código aberto sempre enfrentam desafios em
conseguir pessoas suficientes para contribuir e garantir que sejam mantidos
adequadamente. Também é relativamente caro executar sua própria instância do
Mastodon porque é muito intensivo computacionalmente. E então há uma série de
perguntas, por exemplo: “o UX é bom o suficiente para atrair as pessoas do
Facebook?” O Facebook tem muito mais dinheiro para usar nesse tipo de coisa.
Não podemos dar escala a essas alternativas sem investimento público – e, devo
dizer, sem movimentos sociais, porque o outro ponto do meu livro é que, se
queremos transformar a internet, precisamos criar um movimento social capaz de
exigir essa transformação.
Há um pouco do problema do ovo e da galinha aqui. Parece
difícil, ao ponto da desesperança, tentar galvanizar um movimento social para
conseguir algo que você não pode efetivamente descrever, porque não existe.
Você
usa a expressão “do-ovo-e-da-galinha”, de que gosto, mas talvez eu prefira a
expressão dialética neste caso. Ser capaz de apontar para experimentos
pequenos, mas promissores, como o Mastodon ou como serviços de carona
cujos proprietários são os trabalhadores. Eles dão às pessoas a sensação de que
outra internet é possível e, por sua vez, amplia sua imaginação de como a
internet pode ser. Esses podem ser pontos de partida importantes para o tipo de
conversa que leva à organização dos movimentos sociais. Precisamos que essas
alternativas existam ainda em miniatura no momento, mas também precisamos de
movimentos sociais que possam ampliar e fortalecer essas alternativas para
inspirar mais pessoas.
Parte
do problema aqui é que ainda estamos trabalhando dentro de um paradigma
inimigo. Meu horizonte final não é um Twitter cooperativo. Isso, para mim, é
uma restrição da nossa imaginação em termos do que é possível. Faz sentido que
seja por aí que comecemos porque temos que começar de algum lugar. Mas, em
última análise, o que me anima é a possibilidade de reunir massas de pessoas,
conectando-as com os recursos técnicos de que precisam para construir os
espaços e estruturas online que podem servir às suas vidas cotidianas.
Falando em recursos técnicos: para dar um exemplo concreto, eu
poderia imaginar algo como o Marketplace do Facebook numa versão em nível local
como uma cooperativa ou serviço municipal. Mas as pessoas que têm o treinamento
técnico para fazer isso estão enriquecendo trabalhando para a Meta. Então, tudo
bem reunir minha comunidade, mas alguém nela é expert em codificação?
Você
está apontando para um problema real, que é a existência de severas restrições
materiais para grupos de pessoas que desejam construir alternativas para as
plataformas. É aqui que eu acho que as políticas públicas desempenham um papel
muito importante. No livro, falo de uma experiência que o Partido Trabalhista
realizou em Londres na década de 1980, quando criaram esses espaços chamados de
redes de tecnologia. Eram edifícios nos quais as pessoas podiam entrar e se
conectar com máquinas, um pouco como espaços hacker ou espaços maker. Hoje, eles podem se
conectar com especialistas e formas de especialização, e podem construir
tecnologias que tornam suas vidas melhores. Muitas tecnologias de eficiência
energética saíram desses centros e os projetos para o que eles construíram
foram para esse banco de dados compartilhado que qualquer outra pessoa poderia
acessar. Isso, na minha opinião, é um modelo interessante de como podemos usar
políticas públicas para conectar pessoas não técnicas com recursos técnicos
para que possam realmente construir os tipos de ferramentas online que
tornariam suas vidas melhores.
Apenas para estabelecer uma questão de base: Você acha que nada deve
ser lucrativo? Seu argumento é que a internet não deve ter fins lucrativos,
assim como nenhuma outra outra coisa? Ou você acha que há algo específico da
internet?
A
primeira opção. Este livro tem como escopo a internet, mas para responder à sua
pergunta, eu sou um socialista. Eu quero ver uma sociedade pós-capitalista. Há
dinâmicas na internet que requerem atenção especial, mas eu a vejo como parte
de uma economia política mais ampla que precisa ser transformada.
Veja;
Pedir o voto é um ato de cidadania https://bit.ly/3QUTNTT
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