Educação: um balanço da trágica gestão bolsonarista
Cortes brutais no
orçamento. Falta de diálogo com governos locais. Dança de cadeiras no MEC.
Ataque às universidades. Escândalos de corrupção. Novo governo terá grande
desafio: o desmonte da Ciência e gigantesca evasão escolar no pós-covid
Ana Paula Lisboa DW Brasil/Outras palavras
Marcada por escândalos e uma série de trocas
de ministros, a gestão da educação no governo do presidente Jair Bolsonaro
trouxe retrocessos principalmente por inação e falta de coordenação, o que se
tornou mais desastroso durante a pandemia, apontam especialistas e
representantes do movimento estudantil ouvidos pela DW Brasil. A ideologia,
avaliam, ficou mais no discurso do que na ação.
“Em nível federal, foram quatro anos
de uma gestão trágica, e isso sem contar as denúncias de corrupção”, afirma
Gabriel Corrêa, gerente de Políticas Educacionais da organização da sociedade
civil Todos pela Educação.
O Ministério da Educação sob
Bolsonaro é acusado de ter como marca registrada a falta de diálogo com
estudantes, sociedade civil e governos locais. “Desde o primeiro dia, temos
tentado apresentar demandas estudantis, mas não há abertura. O mandato de
Bolsonaro inteiro foi com a gente fazendo manifestação em frente ao MEC, e o
MEC não dando nenhuma resposta”, diz Bruna Brelaz, aluna da Faculdade
Autônoma de Direito (Fadisp) e presidente da União Nacional dos Estudantes
(UNE).
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usurpar festa da Independência com interesse eleitoreiro e exaltação
personalista https://bit.ly/3Bnumpg
Protestos também foram organizados
durante outros governos. A diferença, aponta ela, é que, em outras gestões, “os
ministros, mesmo com divergências, tinham o respeito de receber os estudantes”.
“Bolsonaro não vê a educação como
elemento central para o desenvolvimento da nação. Todas as gestões de ministros
da Educação comandadas por ele foram de corte de verbas e ataque a
universidades. São gestões corruptas que desviam recursos para viabilizar uma
reeleição”, denuncia Brelaz. “Nós consideramos que o Bolsonaro é o inimigo
nº 1 da educação e dos estudantes.”
A falta de diálogo, ressaltam a UNE e o Todos pela Educação, também era a tônica na relação com secretários de educação, algo que trouxe prejuízos maiores durante a pandemia de covid-19.
“Nesse contexto [da pandemia], a gente viu um MEC arrumando conflito com estados e municípios, completamente omisso em suas atribuições de coordenar a resposta à pandemia”, critica Corrêa, que é economista e mestre em educação pela Universidade de São Paulo (USP).
“Num país como o Brasil, grande e desigual, a atuação federal é muito importante para reduzir assimetrias. Sem essa coordenação e diálogo, cada estado e município faz de um jeito, uns abrem escola mais cedo, outros não”, afirma. Além de prejudicar a aprendizagem, o longo fechamento de escolas preocupa especialistas por agravar problemas como a evasão.
Guerra cultural
Na avaliação de Corrêa, sob Bolsonaro a educação foi instrumentalizada para manter a fidelidade de eleitores com motivações ideológicas. “A estratégia de promover uma falsa e pretensiosa guerra cultural vem pela necessidade de inflamar uma base de apoiadores mais convictos e mostrar que Bolsonaro está fazendo o que prometeu”, comenta.
“Afinal, o presidente ganhou a eleição dizendo que o problema era o Paulo Freire, o ‘kit gay‘… Falar contra universidades, dizer que as escolas estão sexualizando as crianças, por exemplo, é estratégia para agradar essa base”, analisa. “E quando você coloca, no MEC, gestores para fazerem isso, serão pessoas que não sabem operar a máquina pública e nada sai do lugar.”
Focado em combater “problemas irreais” a partir de determinadas convicções, o MEC acabou não dialogando com estados e municípios nem fazendo “nada de concreto”, mesmo no que tinha a ver com a pauta ideológica, o que pode ter barrado mudanças significativas em programas consolidados, considera Corrêa.
“O governo é tão incompetente que não conseguiu mexer nem nas políticas que queria mexer. No Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), o presidente estava preocupado com algumas poucas questões que falavam de fato histórico do qual ele discorda e há denúncias de que houve censura em alguns itens, mas isso não afetou a qualidade do exame”, comenta.
Dança das cadeiras
As constantes trocas de ministros — quatro ocuparam o cargo desde 2019 (Ricardo Vélez Rodríguez, Abraham Weintraub, Milton Ribeiro e Victor Godoy) e um só não tomou posse porque mentiu no currículo (Carlos Decotelli) — e secretários no MEC tiveram como resultado uma gestão fragmentada. “Não tem visão e continuidade”, observa Corrêa.
Professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), Remi Castioni concorda que “o MEC se perdeu em algumas agendas” e, em meio a constantes trocas, não tinha a estabilidade necessária para lidar com os desafios da área. Ele considera que houve certa melhora mais recentemente, após a saída de Abraham Weintraub, quando acredita que “houve diminuição da agenda de costumes” na educação.
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“Embora o ministro que assumiu, o Milton Ribeiro, tenha sido pego em conversas nada republicanas envolvendo tráfico de influências na destinação de emendas parlamentares, um conjunto de técnicos assumiu funções nas secretarias de educação básica e ensino superior”, comenta o economista e pesquisador de políticas públicas e gestão da educação, fazendo referência ao escândalo que ficou conhecido como “farra dos pastores“.
Maiores avanços foram desconectados do MEC
De acordo com Corrêa, com implementações positivas isoladas, a omissão e a má gestão do MEC deixaram uma lacuna na área, o que forçou a atuação mais firme de outras entidades, “na tentativa de suprir essa falta de coordenação e evitar ainda mais retrocessos”.
Ele e Castioni citam, entre as instituições que tiveram atuação de destaque no período, o Congresso Nacional, o Conselho Nacional de Educação (CNE), o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), movimentos sindicais, além de organizações da sociedade civil e do terceiro setor, como o próprio Todos pela Educação.
Castioni e Corrêa enxergam o novo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) como um dos principais avanços da educação nacional dos últimos tempos. E o protagonismo inédito do Congresso brasileiro, com a Frente Parlamentar Mista da Educação, foi fundamental para, a contragosto do governo federal, regular o fundo, com a Lei nº 14.113/2020, que o tornou permanente.
Castioni observa que o CNE também teve protagonismo como nunca antes “ao liderar um processo de retomada das escolas, uma vez que o próprio MEC se omitiu”.
Nos últimos anos, o CNE também aprovou normas importantes, a exemplo das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica (resolução nº 2/2019) e a Matriz Nacional Comum de Competências do Diretor Escolar (que ainda precisa ser homologada pelo MEC).
Ensino superior de lado
Castioni enxerga mais progressos e articulações na educação básica do que na superior. A primeira passará a ter mais recursos por meio do novo Fundeb, mas não existe equivalente para a segunda, que, além de ter tido cortes orçamentários, vê-se limitada pela Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016, do teto de gastos.
A presidente da UNE aponta como maiores falhas da gestão Bolsonaro no âmbito das universidades federais “o corte de mais de R$ 400 milhões de verbas discricionárias” e “colocar em xeque a democracia e a autonomia universitária”, ao nomear cerca de 20 reitores que não venceram as eleições internas nas instituições.
“E isso tudo está interligado com o viés ideológico do governo, que já começou dizendo que na universidade só tinha balbúrdia, e o próprio Bolsonaro desrespeitando o movimento estudantil, dizendo que os CAs [Centros Acadêmicos] eram ‘ninho de rato'”, relembra.
Brelaz e Castioni salientam que os cortes orçamentários também impactam as bolsas-permanência para alunos de baixa renda, fundamentais para garantir a permanência deles no ensino superior público.
Brelaz critica também ações implementadas no Programa Universidade para Todos (Prouni) e no Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) sem diálogo com o movimento estudantil. No primeiro, ela condena a inclusão de estudantes da rede particular sem bolsa por “afastar o aluno de escola pública para colocar na fila outros que teriam mais condições de pagar”.
No Fies, a possibilidade de renegociação de dívidas aberta para cerca de 1 milhão de inadimplentes seria um avanço parcial. “Não houve perdão, mas renegociação. Queríamos que esses estudantes fossem perdoados”, diz a presidente da UNE.
Desafios para o próximo governo
Independentemente do resultado das eleições, quem assumir a pasta da Educação em 2023 enfrentará vários desafios. O governo atual deixa o MEC e suas autarquias enfraquecidos.
A melhoria da aprendizagem é outro obstáculo. Brelaz defende que a próxima gestão priorize, como projeto de curto prazo, um plano para recuperação emergencial da educação por causa da pandemia.
“Temos acompanhado o preocupante aumento da evasão dos estudantes do ensino fundamental, principalmente nos anos finais, e médio”, constata.
Castioni indica que há “um conjunto de definições muito importantes e que precisam ser implementadas” no próximo governo. Entre elas, ele cita a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o Novo Ensino Médio — aplicado em 26 unidades da Federação e a ser implementado na Bahia em 2023 — e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica.
Contatado pela DW Brasil, o MEC não se manifestou até o fechamento desta reportagem.
Relembre quem foram os ministros da Educação sob Bolsonaro
- Ricardo Vélez Rodríguez, de janeiro a
abril de 2019. Movido por interesses ideológicos, queria patrulhar o
conteúdo do Enem e mudar a forma como a ditadura era ensinada.
- Abraham
Weintraub, de abril de 2019 a junho de 2020. Seguidor de Olavo de Carvalho, criava conflitos com
diversos setores, fazia discursos contra universidades, o Congresso
Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF), e acabou sendo alvo de inquérito do STF.
- Carlos
Decotelli, junho de 2020. Nem chegou a tomar posse depois de ter sido pego mentindo no currículo sobre formação
e atuação em faculdades do Brasil, da Argentina e da Alemanha.
- Milton Ribeiro,
de junho de 2020 a março de 2022. Pastor presbiteriano que foi pego dando
preferência no repasse de recursos para prefeitos que negociassem com
pastores da Assembleia de Deus. Chegou a ser preso pela PF e responderá por
corrupção.
- Victor Godoy, desde abril de 2022. Era o nº 2 durante a gestão de Milton Ribeiro e assumiu para substituí-lo.
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