11 setembro 2022

Independência na tela

200 anos depois

Cícero Belmar*

 

O óleo sobre tela retrata dezenas de cavaleiros e soldados, uns diante dos outros, soberbos, cena gloriosa e espetacular. Estão num descampado e, no meio deles, em primeiro plano, o mais garboso manifesta-se como líder, erguendo sua espada. Todos vestem uniformes de gala, e tiram o chapéu de estilo tricórnio, cumprimentando aquele que está ao centro. Parece com O Grito do Ipiranga, que retrata o momento de nossa independência. Mas é Batalha de Friedland, do francês Ernest Meissonier. Pintado em de 1875, serviu de referência para o brasileiro Pedro Américo criar o quadro que representa o brado forte retumbante de nossa identidade política.

Os dois quadros são semelhantes. Quando o vi, por foto, levei um susto porque parece, mas não é. Fiquei me perguntando: onde foi parar a casinha de sapê, branca, que havia às margens do rio? O pai dos burros da era tecnológica, o Google, esclarecia que a foto que estava diante de mim, no computador, era de outra obra. Para um leigo da minha qualidade, que não se liga em detalhes, a ausência da casinha é uma das diferenças de uma obra para a outra. Fui ler para aprender: Pedro Américo, que estudou arte na França, tinha a pintura europeia como referência e se inspirou naquela, a da batalha napoleônica, para fazer o nosso quadro com a cena que tanto nos orgulha.

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Chegamos até aqui, às vésperas de festejarmos o bicentenário da Independência, acreditando que tudo se passou conforme mostra o quadro que hoje é considerada uma obra do neoclassicismo brasileiro. O Grito do Ipiranga, que os entendidos em iconografia classificam como o nosso patrimônio biográfico visual, levou três anos para ficar pronto, concluído em 1888. Conta-se que antes de pintar a obra por encomenda, Pedro Américo fez ampla e cuidadosa pesquisa sobre o movimento de independência e os trajes de época. E também se inspirou no colega francês, resultando numa tela a óleo de grandes proporções (415 x 760 cm), em exposição Museu do Ipiranga, São Paulo.

De toda forma, é bom acreditar que a cena do grito foi aquela retratada pelo nosso artista plástico. É heróica, patriótica, mostra o imperador Pedro I com um gesto imponente. Pedro Américo caprichou nas tintas para nos oferecer uma representação gloriosa do nosso passado. D. Pedro I proclamou o grito de independência, no dia 7 de setembro de 1822 e hoje festejamos o evento pensando no cenário do outro Pedro, o Américo. Aquele, portanto, não foi o momento do grito. E sim a maneira como o artista simbolizou o grito que não ouviu, numa cena que não viu. Mas, a imagem que precisava ficar era justamente aquela, teatral, a do quadro.

Há livros pedagógicos relatando que o imperador gritou, naquele instante: “As forças portuguesas querem mesmo escravizar o Brasil. De agora em diante, a nossa divisa será independência ou morte”. Eu sempre achei curioso que, nos campos do Ipiranga, alguém estivesse munido de pena, tinta e papel, para anotar na hora a frase tão arrumadinha. Está provado, mais uma vez, que a arte interfere na vida. O normal é a gente achar que só ocorre o contrário, de a vida inspirar a arte. Alguém já disse, como muita propriedade, que a arte também contribui para formatar as nossas convicções, as nossas filosofias, nosso modo de ver e ler o mundo.

Livros pedagógicos asseguram ainda que o grito do Ipiranga foi quem nos separou de Portugal. Outros afirmam, com mais propriedade, que foi o termo formal assinado por Dona Leopoldina, essa grande mulher, no dia dois de setembro. Há divergências porque é aquela história, muitas vezes os gritos são proclamados em momento de desespero, de raiva, de dor, de protesto, de diarreia. Dizem as más línguas que essa última opção seria o real motivo do brado do nosso monarca, às margens do rio histórico. Mas esse povo fala demais. Qualquer que seja a opção correta o certo é que depois de amanhã festejaremos os 200 anos do grito de Vossa Majestade.

*Escritor e jornalista. Membro da Academia Pernambucana de Letras

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