200 anos depois
Cícero Belmar*
O óleo sobre tela retrata dezenas de
cavaleiros e soldados, uns diante dos outros, soberbos, cena gloriosa e
espetacular. Estão num descampado e, no meio deles, em primeiro plano, o mais
garboso manifesta-se como líder, erguendo sua espada. Todos vestem uniformes de
gala, e tiram o chapéu de estilo tricórnio, cumprimentando aquele que está ao
centro. Parece com O Grito do Ipiranga, que retrata o momento de nossa
independência. Mas é Batalha de Friedland, do francês
Ernest Meissonier. Pintado em de 1875, serviu de referência para o brasileiro
Pedro Américo criar o quadro que representa o brado forte retumbante de nossa
identidade política.
Os dois quadros são semelhantes.
Quando o vi, por foto, levei um susto porque parece, mas não é. Fiquei me
perguntando: onde foi parar a casinha de sapê, branca, que havia às margens do
rio? O pai dos burros da era tecnológica, o Google, esclarecia que a foto que
estava diante de mim, no computador, era de outra obra. Para um leigo da minha
qualidade, que não se liga em detalhes, a ausência da casinha é uma das
diferenças de uma obra para a outra. Fui ler para aprender: Pedro Américo, que
estudou arte na França, tinha a pintura europeia como referência e se inspirou
naquela, a da batalha napoleônica, para fazer o nosso quadro com a cena que
tanto nos orgulha.
Leia também: Bolsonaro e o baile
da Ilha Fiscal https://bit.ly/3eqD64I
Chegamos até aqui, às vésperas de
festejarmos o bicentenário da Independência, acreditando que tudo se passou
conforme mostra o quadro que hoje é considerada uma obra do neoclassicismo
brasileiro. O Grito do Ipiranga, que os entendidos em iconografia classificam
como o nosso patrimônio biográfico visual, levou três anos para ficar pronto,
concluído em 1888. Conta-se que antes de pintar a obra por encomenda, Pedro
Américo fez ampla e cuidadosa pesquisa sobre o movimento de independência e os
trajes de época. E também se inspirou no colega francês, resultando numa tela a
óleo de grandes proporções (415 x 760 cm), em exposição Museu do Ipiranga, São
Paulo.
De toda forma, é bom acreditar que a
cena do grito foi aquela retratada pelo nosso artista plástico. É heróica,
patriótica, mostra o imperador Pedro I com um gesto imponente. Pedro Américo
caprichou nas tintas para nos oferecer uma representação gloriosa do nosso
passado. D. Pedro I proclamou o grito de independência, no dia 7 de setembro de
1822 e hoje festejamos o evento pensando no cenário do outro Pedro, o Américo.
Aquele, portanto, não foi o momento do grito. E sim a maneira como o artista
simbolizou o grito que não ouviu, numa cena que não viu. Mas, a imagem que
precisava ficar era justamente aquela, teatral, a do quadro.
Há livros pedagógicos relatando que o
imperador gritou, naquele instante: “As forças portuguesas querem mesmo
escravizar o Brasil. De agora em diante, a nossa divisa será independência ou
morte”. Eu sempre achei curioso que, nos campos do Ipiranga, alguém estivesse
munido de pena, tinta e papel, para anotar na hora a frase tão arrumadinha.
Está provado, mais uma vez, que a arte interfere na vida. O normal é a gente
achar que só ocorre o contrário, de a vida inspirar a arte. Alguém já disse,
como muita propriedade, que a arte também contribui para formatar as nossas
convicções, as nossas filosofias, nosso modo de ver e ler o mundo.
Livros pedagógicos asseguram ainda
que o grito do Ipiranga foi quem nos separou de Portugal. Outros afirmam, com
mais propriedade, que foi o termo formal assinado por Dona Leopoldina, essa
grande mulher, no dia dois de setembro. Há divergências porque é aquela
história, muitas vezes os gritos são proclamados em momento de desespero, de
raiva, de dor, de protesto, de diarreia. Dizem as más línguas que essa última
opção seria o real motivo do brado do nosso monarca, às margens do rio
histórico. Mas esse povo fala demais. Qualquer que seja a opção correta o certo
é que depois de amanhã festejaremos os 200 anos do grito de Vossa Majestade.
*Escritor e jornalista. Membro da Academia Pernambucana de Letras
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