Investigações revelam conexões entre
atiradores desportivos e quadrilhas do 'novo cangaço'
Em
grandes assaltos, registros de Caçador, Atirador e Colecionador (CAC) junto ao
Exército são usados para fornecimento de armamento
Rafael Soares, O
Globo
Passava das 10h quando quatro criminosos disfarçados de
policiais civis saltaram de uma falsa viatura no estacionamento do supermercado
Nacional, em Guaíba, Região Metropolitana de Porto Alegre (RS). Era 29 de
dezembro do ano passado e, naquele momento, uma empresa de transporte de
valores abastecia os caixas eletrônicos do estabelecimento com uma quantia
milionária. Com fuzis e pistolas, os homens entraram no estabelecimento,
reuniram os vigilantes, os desarmaram e anunciaram o assalto. Mais de R$ 4
milhões foram roubados. Duas semanas depois, a polícia apreendeu uma das armas
usadas, abandonada pelo bando na fuga: um fuzil calibre 7,62 comprado
legalmente por um atirador desportivo.
A Polícia Civil do Rio Grande do Sul rastreou a origem do
armamento e descobriu que o homem foi cooptado pelos assaltantes para tirar o
certificado de registro de Caçador, Atirador e Colecionador (CAC) junto ao
Exército, comprar o fuzil e repassá-lo ao grupo. E o caso de Guaíba não é
isolado: investigações policiais de quatro estados mostram a atuação de CACs no
fornecimento de armas e munição para quadrilhas especializadas em roubos de
grandes quantias — como ataques a agências bancárias e transportadoras de
valores e assaltos com domínio de cidades de pequeno e médio portes, modalidade
conhecida como “Novo Cangaço”.
O fuzil usado pelos criminosos no roubo à transportadora em Guaíba foi
comprado pelo CAC por R$ 14 mil numa loja de armas, autorizada pelo Exército a
vender o produto, em agosto de 2021. O dinheiro pertencia a uma facção
criminosa, associada à quadrilha de assaltantes. Oito meses antes do crime, o
homem — morador da cidade de Getúlio Vargas, no interior gaúcho — foi aliciado
por um integrante da facção para virar CAC e fazer a compra. Como não tinha
antecedentes criminais, ele conseguiu o certificado de registro. Pelo serviço,
ganhou R$ 2 mil da quadrilha.
— O fuzil foi pego por ele na loja e, no mesmo dia, foi repassado aos
criminosos. Detectamos que ele também comprou outras três pistolas para a mesma
quadrilha, com o registro de atirador — diz o delegado João Paulo de Abreu, da
1ª Delegacia de Repressão a Roubos (1ª DR), responsável pela investigação do
crime.
Veja: Quem semeia o caos colhe o quê? https://bit.ly/3zPlBnw
O CAC foi preso em fevereiro deste ano, mas atualmente
responde em liberdade. Todos os demais assaltantes foram identificados e
presos. No mesmo dia do roubo, a maior parte do dinheiro foi recuperada dentro
de uma van abandonada pelos criminosos com problemas mecânicos. Do total
roubado, somente R$ 82 mil reais não foram encontrados.
O número de
armas e munição nas mãos dos CACs explodiu no Brasil nos últimos quatro anos, em decorrência de
uma série de decretos do presidente Jair Bolsonaro que ampliou os direitos da
categoria. O número de integrantes da categoria cresceu de 117 mil em 2018 para
mais de 673 mil até junho de 2022, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança
Pública. Por decreto, o presidente aumentou o limite de armas e munição a
integrantes da categoria. Atualmente, atiradores podem ter até 60 armas e
comprar 180 mil por ano; antes o limite máximo era de 16 armas e 40 mil
cartuchos. Por isso, o arsenal nas mãos da categoria passou de 350 mil armas em
2018 para mais de 1 milhão.
Para o policial federal Roberto Uchôa, que estuda políticas de controle
de armas e é pesquisador associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública
(FBSP), a série de decretos do governo sobre armas beneficiou o crime
organizado.
— Na festa das armas, o crime organizado é um dos convidados principais.
Hoje, com a flexibilização das regras promovida pelo governo, existem diversas
maneiras de armas compradas legalmente irem parar nas mãos de criminosos. As
quadrilhas podem cooptar alguém sem antecedentes para se registrar como CAC e
comprar armas, usar laranjas, usar brechas no controle para que seus próprios
integrantes virem CACs e, por fim, ainda podem atacar transportadoras e lojas
de armas. No mercado ilegal, um fuzil custa R$ 50 mil, ficou muito mais fácil
buscar essa mesma arma três vezes mais barata no mercado interno, legal —
explica Uchôa.
Outro crime que contou com a participação de
um CAC foi o mega-assalto de Araçatuba, no interior de São Paulo, em agosto do
ano passado. Na ocasião, um grupo de 30 criminosos atacou três agências
bancárias e fizeram moradores e motoristas reféns. Segundo a investigação da
Polícia Federal, o atirador certificado pelo Exército Emerson de Oliveira Silva
“prestou apoio” à quadrilha: nos dias que antecederam o roubo, ele é acusado de
abrigar parte da quadrilha e, após o crime, de vender um dos carros usados
pelos assaltantes. Em fevereiro deste ano, Silva foi preso em flagrante após
agentes federais encontrarem, em dois imóveis seus, um revólver calibre 38 e
munição de calibres 5,56 e .50 — este último tipo é de uso proibido, capaz de perfurar
a blindagem de um carro forte e foi empregada no assalto. Em agosto, o CAC foi
condenado a cinco anos de prisão pela posse do armamento ilegal.
Munição ‘palmeirense’
Em SP, há um outro caso de CAC envolvido com quadrilhas de
assaltos a bancos. Em dezembro de 2016, a Polícia Civil do estado deflagrou a
Operação Galileia, contra uma quadrilha que fornecia armas e munição para
roubos de cargas, bancos e transportadoras. Um dos principais alvos foi o
colecionador e atirador Arnaldo Miranda dos Santos, que mantinha em sua casa
uma fábrica clandestina de cartuchos, mesmo não tendo autorização do Exército
para vender munição. Escutas feitas com autorização da Justiça flagraram Santos
solicitando a um de seus fornecedores — um PM lotado no centro de armamento e
munição da corporação — munição “verde” e “palmeirense”.
Em depoimento à Justiça, o delegado Edson Carlos Tavares, responsável
pela investigação, afirmou que a “munição de ponta verde, segundo a
especificação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), é aquela
identificada como de furar blindagem”. Segundo o delegado, os cartuchos seriam
usados “para ataque a carros fortes, a base de valores”. Em dezembro de 2020,
Santos foi condenado a nove anos de prisão pelos crimes de associação criminosa
e comércio ilegal de armas e munição.
A conexão entre CACs e quadrilhas especializadas em grandes roubos
também foi comprovada em dois estados do Nordeste. Em Jaboatão dos Guararapes,
Pernambuco, o colecionador André Filipe Cardoso Lemos Santiago foi preso em
flagrante quando negociava uma bazuca com uma quadrilha que usaria o armamento
para explodir um banco, em agosto de 2018. O comprador do armamento, que também
foi preso, era Charles Francisco Dantas Júnior, condenado a sete anos de prisão
pelo roubo de R$ 35 mil de um capitão da PM que havia acabado de sacar a
quantia, dois anos antes.
Já em Natal, em meio a uma investigação para combater uma quadrilha
roubo a bancos e carros-fortes, a Divisão Especializada em Investigação e
Combate ao Crime Organizado (Deicor) prendeu em flagrante o atirador Makson
Felipe de Menezes Pereira, o “Playboy das Armas”. O CAC foi abordado por
policiais em maio de 2021, no momento em que iria vender um fuzil 7,62 a um dos
maiores traficantes de armas do Nordeste, Esterivar Ferreira de Lima, conhecido
como Senhor das Armas. A arma estava dentro do carro blindado de Makson e foi
apreendida. Segundo a investigação da Deicor, Lima é fornecedor de quadrilhas
do “Novo Cangaço”.
Veja: Bolsonaro age como derrotado https://bit.ly/3wzziDL
Nenhum comentário:
Postar um comentário