14 outubro 2022

Relembrando: por que orçamento secreto?

Centralização, autoritarismo e controle do orçamento público

O Congresso Nacional, comandado por aliados do governo, utilizou-se da pandemia para reduzir os espaços de participação social e debate público. O objetivo é aprovar projetos a toque de caixa e, em paralelo, apropriar-se do orçamento público – um processo de centralização e autoritarismo que afasta ainda mais o Congresso de seu papel de casa do povo
Livi Gerbase e Gabriela Nepomuceno, Le Monde Diplomatic

 

O governo Bolsonaro tem como característica marcante o autoritarismo de gestão e a centralização do poder, o que constantemente agride os princípios administrativos1 e os direitos e fundamentos republicanos, tais como a participação social2 e a transparência da administração pública. Tem-se, por conseguinte, um permanente descumprimento intencional e descarado do Estado democrático de direito, que perpetua desigualdades e privilégios.

No entanto, esse modus operandi de condução da coisa pública extrapola o âmbito do Executivo e encontra largo amparo no Poder Legislativo. O Congresso Nacional, comandado por aliados do governo, utilizou-se da pandemia para reduzir os espaços de participação social e debate público. O objetivo é aprovar projetos a toque de caixa – principalmente aqueles mais passíveis de contestação pela oposição. Em paralelo, o Parlamento também foi, desde 2015, se apropriando do orçamento público, em um processo que, em ano de eleições, significa um jogo injusto e desigual. Neste artigo, vamos desvendar esses processos de centralização e autoritarismo que afastaram ainda mais o Congresso de seu papel de casa do povo.

Mudanças no processo de aprovação de leis

O presidente da Câmara, Arthur Lira, e, em menor grau e intensidade, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, têm conduzido os processos legislativos com “mão de ferro”. As votações são encaminhadas a toque de caixa, permitindo que aconteçam de forma remota mesmo após a flexibilização do isolamento social e abrindo ensejo para deturpações dos regimentos internos das Casas, que regulam o funcionamento dos processos legislativos.

Na Câmara dos Deputados, a atuação da oposição é cerceada por meio de atos infralegais,3 que limitam o debate democrático e adequado das matérias. A resolução n. 21/2021 da Câmara, por exemplo, modificou o Regimento Interno para dificultar obstruções e reordenar o uso da palavra – medidas que podem ser entendidas como uma espécie de mordaça à oposição.

No Senado, o presidente Pacheco limita o tempo e os espaços de debate nas comissões temáticas. É o que se sucede com projetos que desestruturam a política socioambiental brasileira, que não têm passado pela Comissão de Meio Ambiente, e cuja análise, muitas vezes, fica restrita à Comissão de Agricultura, na qual a bancada ruralista é ampla maioria. Alguns dos projetos mais polêmicos nem sequer passarão para debate em Plenário. Essa lógica de funcionamento do Legislativo beneficia a maioria governista e os grupos sociais nela representados, nomeadamente os ruralistas. Esse é o caso do PL do Veneno, cuja tramitação se limitou à Comissão de Agricultura. O texto do projeto aumenta o poder do Ministério da Agricultura para licenciar agrotóxicos, sem anuência prévia do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) ou da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Mudanças procedimentais e normativas

A pandemia de Covid-19 exigiu a construção dos sistemas remotos de votação do Congresso. Naquele momento, era necessário que o Legislativo funcionasse, mesmo com as pessoas em isolamento. Não obstante, passados os picos de contaminação pela doença, o sistema de votação remoto tem sido, amiúde, utilizado para garantir céleres votações de propostas polêmicas, muitas vezes sem que os deputados tomem conhecimento, com antecipação, do relatório que será votado.

Foi o caso recente da votação a distância da chamada PEC Kamikaze (EC n. 123/2022), feita sem a presença dos parlamentares em Plenário graças à edição do Ato da Mesa n. 243/2022. Esse ato permitiu que, durante os festejos juninos, os parlamentares fossem dispensados de estar em Brasília para votar as matérias. A ausência física dos parlamentares, muito providencial em ano eleitoral, facilita a contagem do número de congressistas necessário à votação de matérias que exigem quórum qualificado, caso das propostas de emenda à Constituição (PECs). Ademais, com os representantes do povo em seus estados, ameniza-se a pressão da sociedade organizada, abalando-se sua capacidade de incidir sobre as decisões políticas.

Leia também: Como o Orçamento Secreto prejudicou diretamente 18 programas do MEC https://bit.ly/3zvl3CF

O exemplo mais notório de burla aos espaços de participação e transparência é a criação recorrente dos chamados grupos de trabalho (GTs), que em grande parte substituem o papel original das Comissões. Os GTs confinaram as decisões sobre as proposições a espaços desconhecidos do público, adotando regras de funcionamento que não se amparam no regimento interno da Câmara. Com isso, os prazos para apresentação das emendas e relatórios ou a realização de audiências públicas ficam dependentes de acordos momentâneos. Temas bastante sensíveis e com grande impacto na vida das pessoas e no meio ambiente foram destinados aos GTs, como a revisão do PL n. 191/2020, que permite o garimpo e a realização de grandes empreendimentos em terras indígenas, sem a devida consulta aos povos originários, e a revisão do Código de Mineração.

A disputa pelo orçamento

Para além das mudanças dos regimentos internos, a disputa pelo orçamento público tem se traduzido em aumento do poder do Congresso na alocação orçamentária nos últimos anos. Esse aumento também representa uma perda significativa da transparência do processo de construção e monitoramento do orçamento, comprometendo o controle social e fomentando o desequilíbrio do jogo político e eleitoral, em prol das elites que comandam o Centrão.

Importante relembrar qual é, em teoria, o papel das emendas parlamentares no orçamento público. Este é anualmente elaborado pelo Executivo e enviado para o Legislativo. O papel do Legislativo é fomentar a discussão na sociedade, por meio de audiências públicas, realizar ajustes e, ao fim, aprovar o orçamento. Após a votação pelo Legislativo e a sanção do Executivo, cabe ao último executar o orçamento até os limites aprovados pelo Congresso.

As emendas são reservas orçamentárias específicas para o Legislativo. Temos hoje no Brasil quatro tipos de emenda parlamentar: individuais (disponíveis para deputados e senadores), de bancada (estaduais ou regionais), de comissão (técnicas e relacionadas a áreas) e do relator-geral. Todo ano, o relator-geral do orçamento, indicado pelos presidentes do Congresso, recebe e organiza as propostas de emendas parlamentares, que posteriormente são votadas junto com o restante do orçamento para o ano seguinte.

Por um lado, a relação entre os parlamentares e seus eleitores é importante para a democracia, dado que os primeiros recebem constantemente demandas dos segundos em seus estados e municípios, como construção de escolas, postos de saúde, barragens etc. Se não houvesse as emendas, seria muito mais difícil para os parlamentares responder aos anseios de seus representados. Por outro lado, as emendas não se relacionam com os planejamentos setoriais das políticas públicas e não atendem a critérios técnicos para a seleção e alocação dos recursos da União. Portanto, é positivo que existam emendas, mas elas devem ser limitadas, transparentes e distribuídas equitativamente entre os parlamentares.

Após a aprovação da Lei Orçamentária Anual, as emendas devem ser executadas. Esse sempre foi um objeto de disputa entre o Executivo e o Legislativo, pois, até recentemente, o governo federal não era obrigado a gastar os recursos autorizados pelo Congresso e poderia contingenciá-los – o que, em um cenário de crise fiscal, passou a ocorrer frequentemente. Para aumentar seu poder em relação ao Planalto, o Congresso aprovou uma série de alterações nas leis orçamentárias entre 2015 e 2022. Vamos destacar três dessas alterações: o orçamento impositivo, as Emendas PIX e o Orçamento Secreto.

O primeiro movimento foi garantir que as emendas individuais e de bancada fossem de execução obrigatória. A impositividade, aprovada em 2015 para as emendas individuais e em 2019 para as de bancada, retirou do Executivo uma ferramenta importante da negociação com o Legislativo. De 2016 para 2021, o gasto com emendas individuais e de bancada aumentaram 238%, passando de R$ 6,6 bilhões para R$ 15,8 bilhões.4 Para a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2023, o Congresso se articulou para aprovar a impositividade das emendas de relator-geral, mas voltou atrás após pressão da oposição.5

A Emenda Constitucional n. 105, votada em 2019, permitiu, para metade do valor das emendas individuais, a transferência direta, com uso livre, de verbas a estados e municípios, o que ficou conhecido como “Emendas PIX”. Essa alteração agilizou o processo burocrático, mas diminuiu a transparência e possibilitou, por exemplo, o gasto com a contratação de shows sertanejos com cachês milionários em municípios brasileiros.

Em 2020, foi criado o que ficou conhecido como Orçamento Secreto. Até então, as emendas do relator-geral tinham como objetivo avaliar as emendas parlamentares e realizar pequenos ajustes. A partir da LDO de 2020, foi permitida a criação de novos gastos orçamentários por intermédio dessas emendas, classificadas com o Identificador de Resultado Primário 9 (RP-9). Já em 2020, os valores de execução de recursos de emendas do relator-geral foram apenas R$ 1,1 bilhão abaixo das emendas individuais, que correspondem ao gasto somado de 513 deputados e 81 senadores. Nestes últimos três anos, as RP-9 são a principal razão do aumento do gasto do Executivo com emendas, que passaram de R$ 7 bilhões em 2017 para R$ 27 bilhões em 2021.6 Nesse último ano, 42% das despesas foram com emendas de relator.

Preocupa, ainda, a distribuição das RP-9. Enquanto as emendas individuais e de bancada seguem critérios equitativos de alocação, o mesmo não ocorre com as emendas de relator. Quem tem acesso a essas emendas são parlamentares do Centrão aliados do relator-geral, que indicam quais municípios receberão os recursos, em valores muito acima daqueles a que eles teriam direito via emendas individuais. Ademais, como não há impositividade de gasto, a execução das emendas resulta do acordo político com o governo Bolsonaro, o que tem sido utilizado para garantir apoio parlamentar.

O Congresso alega que adotou medidas para limitar as RP-9, que a partir de 2022 não podem ultrapassar a soma das emendas individuais e de bancada, o que significa, para este ano, R$ 16,2 bilhões7 – valor ainda muito alto se pensarmos que está concentrado nas mãos de um parlamentar. Também afirma que atuou pela transparência das RP-9, mediante o envio de ofícios dos parlamentares indicando os beneficiários e o destino das emendas (de acordo com decisão do STF) e por meio da adoção do Sistema de Indicação Orçamentária (SIO), que possui dados a partir de 2022. Em relação aos ofícios, eles são incompletos e não padronizados, com muitos faltando as principais informações. No caso do SIO, ele é aberto para solicitações de emendas até da sociedade; entretanto, não indica quais emendas serão de fato selecionadas pelo relator-geral para execução. Portanto, o orçamento permanece secreto, sem estabelecimento de critérios e comandado pelo relator-geral.

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O orçamento secreto, apesar de criticado pela mídia, pelas organizações da sociedade civil e pelos órgãos de controle, segue firme e forte. Em 2022 já foram gastos, de janeiro a julho, R$ 6,7 bilhões com emendas do relator-geral.8 Apesar de ainda haver grandes barreiras à transparência, alguns dos ofícios publicados no site da Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO) trazem informações importantes: por exemplo, Hugo Leal, relator-geral do Orçamento de 2022, reportou indicação ao ministro da Saúde de R$ 1,6 bilhão em emendas classificadas como RP-9, beneficiando 91 deputados e seis senadores.9

Por fim, vale ressaltar que as decisões sobre a alocação das receitas da União não contam com a participação da sociedade civil organizada. A CMO não realizou, nos últimos anos, audiências públicas com participação popular para debater temas de interesse público. A votação de créditos orçamentários e o tema das emendas de relator dominaram o debate político na Comissão; entretanto, trata-se de assunto fechado para a população.

*Livi Gerbase e Gabriela Nepomuceno são assessoras políticas do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

 

1 Legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, entre outros.

2 Decreto n. 9.759/2019. O chamado “Decretaço” extinguiu os conselhos criados por decreto e modificou a composição de outros tantos criados por lei.

3 Resolução n. 14/2020; Ato da Mesa n. 123/2020; Ato da Comissão Diretora n. 7/2020; Resolução n. 21/2021.

4 Valores extraídos do Siga Brasil (21 jun. 2022) e corrigidos pela inflação de maio de 2022.

Agência Senado, “Pacheco não descarta emendas de relator impositivas no futuro”, 12 jul. 2022.

6 Valores extraídos do Siga Brasil (21 jun. 2022) e corrigidos pela inflação de maio de 2022.

7 Resolução n. 2, de 2021-CN.

8 Valores correntes extraídos do Siga Brasil (26 jul. 2022).

9 OFINDRP9 n. 43/2022, de 30 de junho de 2022 – “Indicação de Beneficiários de programações RP9”.

[Ilustração: Aroeira]

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