Centralização, autoritarismo e controle do orçamento
público
O Congresso Nacional, comandado por aliados do governo, utilizou-se da
pandemia para reduzir os espaços de participação social e debate público. O
objetivo é aprovar projetos a toque de caixa e, em paralelo, apropriar-se do
orçamento público – um processo de centralização e autoritarismo que afasta
ainda mais o Congresso de seu papel de casa do povo
Livi
Gerbase e Gabriela Nepomuceno, Le Monde Diplomatic
O governo Bolsonaro tem como característica
marcante o autoritarismo de gestão e a centralização do poder, o que
constantemente agride os princípios administrativos1 e
os direitos e fundamentos republicanos, tais como a participação social2 e
a transparência da administração pública. Tem-se, por conseguinte, um
permanente descumprimento intencional e descarado do Estado democrático de
direito, que perpetua desigualdades e privilégios.
No entanto, esse modus operandi de
condução da coisa pública extrapola o âmbito do Executivo e encontra largo
amparo no Poder Legislativo. O Congresso Nacional, comandado por aliados do
governo, utilizou-se da pandemia para reduzir os espaços de participação social
e debate público. O objetivo é aprovar projetos a toque de caixa –
principalmente aqueles mais passíveis de contestação pela oposição. Em
paralelo, o Parlamento também foi, desde 2015, se apropriando do orçamento
público, em um processo que, em ano de eleições, significa um jogo injusto e
desigual. Neste artigo, vamos desvendar esses processos de centralização e
autoritarismo que afastaram ainda mais o Congresso de seu papel de casa do
povo.
Mudanças no processo de aprovação de leis
O presidente da Câmara, Arthur Lira, e, em menor
grau e intensidade, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, têm conduzido os
processos legislativos com “mão de ferro”. As votações são encaminhadas a toque
de caixa, permitindo que aconteçam de forma remota mesmo após a flexibilização
do isolamento social e abrindo ensejo para deturpações dos regimentos internos
das Casas, que regulam o funcionamento dos processos legislativos.
Na Câmara dos Deputados, a atuação da oposição é
cerceada por meio de atos infralegais,3 que
limitam o debate democrático e adequado das matérias. A resolução
n. 21/2021 da Câmara, por exemplo, modificou o Regimento Interno para
dificultar obstruções e reordenar o uso da palavra – medidas que podem ser
entendidas como uma espécie de mordaça à oposição.
No Senado, o presidente Pacheco limita o tempo e os
espaços de debate nas comissões temáticas. É o que se sucede com projetos que
desestruturam a política socioambiental brasileira, que não têm passado pela
Comissão de Meio Ambiente, e cuja análise, muitas vezes, fica restrita à Comissão
de Agricultura, na qual a bancada ruralista é ampla maioria. Alguns dos
projetos mais polêmicos nem sequer passarão para debate em Plenário. Essa
lógica de funcionamento do Legislativo beneficia a maioria governista e os
grupos sociais nela representados, nomeadamente os ruralistas. Esse é o caso do
PL do Veneno, cuja tramitação se limitou à Comissão de Agricultura. O texto do
projeto aumenta o poder do Ministério da Agricultura para licenciar
agrotóxicos, sem anuência prévia do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama) ou da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa).
Mudanças procedimentais e normativas
A pandemia de Covid-19 exigiu a construção dos
sistemas remotos de votação do Congresso. Naquele momento, era necessário que o
Legislativo funcionasse, mesmo com as pessoas em isolamento. Não obstante,
passados os picos de contaminação pela doença, o sistema de votação remoto tem
sido, amiúde, utilizado para garantir céleres votações de propostas polêmicas,
muitas vezes sem que os deputados tomem conhecimento, com antecipação, do
relatório que será votado.
Foi o caso recente da votação a distância da
chamada PEC Kamikaze (EC n. 123/2022), feita sem a presença dos
parlamentares em Plenário graças à edição do Ato da Mesa n. 243/2022. Esse
ato permitiu que, durante os festejos juninos, os parlamentares fossem
dispensados de estar em Brasília para votar as matérias. A ausência física dos
parlamentares, muito providencial em ano eleitoral, facilita a contagem do
número de congressistas necessário à votação de matérias que exigem quórum
qualificado, caso das propostas de emenda à Constituição (PECs). Ademais, com
os representantes do povo em seus estados, ameniza-se a pressão da sociedade
organizada, abalando-se sua capacidade de incidir sobre as decisões políticas.
Leia também: Como o Orçamento Secreto
prejudicou diretamente 18 programas do MEC https://bit.ly/3zvl3CF
O exemplo mais notório de burla aos espaços de
participação e transparência é a criação recorrente dos chamados grupos de
trabalho (GTs), que em grande parte substituem o papel original das Comissões.
Os GTs confinaram as decisões sobre as proposições a espaços desconhecidos do
público, adotando regras de funcionamento que não se amparam no regimento
interno da Câmara. Com isso, os prazos para apresentação das emendas e
relatórios ou a realização de audiências públicas ficam dependentes de acordos
momentâneos. Temas bastante sensíveis e com grande impacto na vida das pessoas
e no meio ambiente foram destinados aos GTs, como a revisão do PL
n. 191/2020, que permite o garimpo e a realização de grandes empreendimentos
em terras indígenas, sem a devida consulta aos povos originários, e a revisão
do Código de Mineração.
A disputa pelo orçamento
Para além das mudanças dos regimentos internos, a
disputa pelo orçamento público tem se traduzido em aumento do poder do
Congresso na alocação orçamentária nos últimos anos. Esse aumento também
representa uma perda significativa da transparência do processo de construção e
monitoramento do orçamento, comprometendo o controle social e fomentando o
desequilíbrio do jogo político e eleitoral, em prol das elites que comandam o
Centrão.
Importante relembrar qual é, em teoria, o papel das
emendas parlamentares no orçamento público. Este é anualmente elaborado pelo
Executivo e enviado para o Legislativo. O papel do Legislativo é fomentar a
discussão na sociedade, por meio de audiências públicas, realizar ajustes e, ao
fim, aprovar o orçamento. Após a votação pelo Legislativo e a sanção do
Executivo, cabe ao último executar o orçamento até os limites aprovados pelo
Congresso.
As emendas são reservas orçamentárias específicas
para o Legislativo. Temos hoje no Brasil quatro tipos de emenda parlamentar:
individuais (disponíveis para deputados e senadores), de bancada (estaduais ou
regionais), de comissão (técnicas e relacionadas a áreas) e do relator-geral.
Todo ano, o relator-geral do orçamento, indicado pelos presidentes do
Congresso, recebe e organiza as propostas de emendas parlamentares, que
posteriormente são votadas junto com o restante do orçamento para o ano
seguinte.
Por um lado, a relação entre os parlamentares e
seus eleitores é importante para a democracia, dado que os primeiros recebem
constantemente demandas dos segundos em seus estados e municípios, como
construção de escolas, postos de saúde, barragens etc. Se não houvesse as
emendas, seria muito mais difícil para os parlamentares responder aos anseios
de seus representados. Por outro lado, as emendas não se relacionam com os
planejamentos setoriais das políticas públicas e não atendem a critérios
técnicos para a seleção e alocação dos recursos da União. Portanto, é positivo
que existam emendas, mas elas devem ser limitadas, transparentes e distribuídas
equitativamente entre os parlamentares.
Após a aprovação da Lei Orçamentária Anual, as
emendas devem ser executadas. Esse sempre foi um objeto de disputa entre o
Executivo e o Legislativo, pois, até recentemente, o governo federal não era
obrigado a gastar os recursos autorizados pelo Congresso e poderia
contingenciá-los – o que, em um cenário de crise fiscal, passou a ocorrer
frequentemente. Para aumentar seu poder em relação ao Planalto, o Congresso
aprovou uma série de alterações nas leis orçamentárias entre 2015 e 2022. Vamos
destacar três dessas alterações: o orçamento impositivo, as Emendas PIX e o
Orçamento Secreto.
O primeiro movimento foi garantir que as emendas
individuais e de bancada fossem de execução obrigatória. A impositividade,
aprovada em 2015 para as emendas individuais e em 2019 para as de bancada,
retirou do Executivo uma ferramenta importante da negociação com o Legislativo.
De 2016 para 2021, o gasto com emendas individuais e de bancada aumentaram
238%, passando de R$ 6,6 bilhões para R$ 15,8 bilhões.4 Para
a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2023, o Congresso se articulou para
aprovar a impositividade das emendas de relator-geral, mas voltou atrás após
pressão da oposição.5
A Emenda Constitucional n. 105, votada em
2019, permitiu, para metade do valor das emendas individuais, a transferência
direta, com uso livre, de verbas a estados e municípios, o que ficou conhecido
como “Emendas PIX”. Essa alteração agilizou o processo burocrático, mas
diminuiu a transparência e possibilitou, por exemplo, o gasto com a contratação
de shows sertanejos com cachês milionários em municípios brasileiros.
Em 2020, foi criado o que ficou conhecido como
Orçamento Secreto. Até então, as emendas do relator-geral tinham como objetivo
avaliar as emendas parlamentares e realizar pequenos ajustes. A partir da LDO
de 2020, foi permitida a criação de novos gastos orçamentários por intermédio
dessas emendas, classificadas com o Identificador de Resultado Primário 9
(RP-9). Já em 2020, os valores de execução de recursos de emendas do
relator-geral foram apenas R$ 1,1 bilhão abaixo das emendas individuais, que
correspondem ao gasto somado de 513 deputados e 81 senadores. Nestes últimos
três anos, as RP-9 são a principal razão do aumento do gasto do Executivo com
emendas, que passaram de R$ 7 bilhões em 2017 para R$ 27 bilhões em 2021.6 Nesse
último ano, 42% das despesas foram com emendas de relator.
Preocupa, ainda, a distribuição das RP-9. Enquanto
as emendas individuais e de bancada seguem critérios equitativos de alocação, o
mesmo não ocorre com as emendas de relator. Quem tem acesso a essas emendas são
parlamentares do Centrão aliados do relator-geral, que indicam quais municípios
receberão os recursos, em valores muito acima daqueles a que eles teriam
direito via emendas individuais. Ademais, como não há impositividade de gasto,
a execução das emendas resulta do acordo político com o governo Bolsonaro, o
que tem sido utilizado para garantir apoio parlamentar.
O Congresso alega que adotou medidas para limitar
as RP-9, que a partir de 2022 não podem ultrapassar a soma das emendas
individuais e de bancada, o que significa, para este ano, R$ 16,2 bilhões7 –
valor ainda muito alto se pensarmos que está concentrado nas mãos de um
parlamentar. Também afirma que atuou pela transparência das RP-9, mediante o
envio de ofícios dos parlamentares indicando os beneficiários e o destino das
emendas (de acordo com decisão do STF) e por meio da adoção do Sistema de
Indicação Orçamentária (SIO), que possui dados a partir de 2022. Em relação aos
ofícios, eles são incompletos e não padronizados, com muitos faltando as
principais informações. No caso do SIO, ele é aberto para solicitações de
emendas até da sociedade; entretanto, não indica quais emendas serão de fato
selecionadas pelo relator-geral para execução. Portanto, o orçamento permanece
secreto, sem estabelecimento de critérios e comandado pelo relator-geral.
Leia também: Projeto sorrateiro do governo federal ameaça o SUS https://bit.ly/3DM5A3B
O orçamento secreto, apesar de criticado pela
mídia, pelas organizações da sociedade civil e pelos órgãos de controle, segue
firme e forte. Em 2022 já foram gastos, de janeiro a julho, R$ 6,7 bilhões com
emendas do relator-geral.8 Apesar
de ainda haver grandes barreiras à transparência, alguns dos ofícios publicados
no site da Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO)
trazem informações importantes: por exemplo, Hugo Leal, relator-geral do
Orçamento de 2022, reportou indicação ao ministro da Saúde de R$ 1,6 bilhão em
emendas classificadas como RP-9, beneficiando 91 deputados e seis senadores.9
Por fim, vale ressaltar que as decisões sobre a
alocação das receitas da União não contam com a participação da sociedade civil
organizada. A CMO não realizou, nos últimos anos, audiências públicas com
participação popular para debater temas de interesse público. A votação de
créditos orçamentários e o tema das emendas de relator dominaram o debate
político na Comissão; entretanto, trata-se de assunto fechado para a população.
*Livi Gerbase e Gabriela
Nepomuceno são assessoras políticas do Instituto de
Estudos Socioeconômicos (Inesc).
1 Legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade, eficiência, entre outros.
2 Decreto n. 9.759/2019. O chamado
“Decretaço” extinguiu os conselhos criados por decreto e modificou a composição
de outros tantos criados por lei.
3 Resolução n. 14/2020; Ato da Mesa n.
123/2020; Ato da Comissão Diretora n. 7/2020; Resolução n. 21/2021.
4 Valores extraídos do Siga Brasil (21 jun.
2022) e corrigidos pela inflação de maio de 2022.
5 Agência Senado,
“Pacheco não descarta emendas de relator impositivas no futuro”, 12
jul. 2022.
6 Valores extraídos do Siga Brasil (21 jun.
2022) e corrigidos pela inflação de maio de 2022.
7 Resolução n. 2, de 2021-CN.
8 Valores correntes extraídos do Siga
Brasil (26 jul. 2022).
9 OFINDRP9 n. 43/2022, de 30 de junho de
2022 – “Indicação de Beneficiários de programações RP9”.
[Ilustração: Aroeira]
Leia
também: Razão e emoção no segundo turno https://bit.ly/3rNUTq9
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