Dos crimes e discursos de ódio no contexto
eleitoral
A estigmatização, a desumanização e a
fabricação de inimigos e bodes expiatórios são técnicas discursivas conhecidas
dos regimes nazistas e fascistas, os quais assumiram o poder pelo voto.
Atribuir as causas de todas as mazelas a determinadas pessoas é muito mais
fácil do que chamar para si a responsabilidade e dedicar-se ao estudo das
causas de problemas complexos
Claudia Maria Dadico, Le Monde Diplomatic Brasil
A análise dos crimes e discursos de ódio no
contexto eleitoral requer, como pressuposto, um consenso mínimo acerca desses
conceitos e, mais especificamente, de que ódio se está a falar.
É frequente no debate jurídico o recurso a
explicações e análises do ódio levando em conta perspectivas individuais, como
algo que se aprende, como emoção, pulsão, sentimento ou um conjunto de paixões
negativas, motivadoras de atitudes de indivíduos ou de grupos de indivíduos.
Quando se consideram abordagens individuais, com as ferramentas do campo da
psicologia e da psicanálise, não são raras as interpretações que, a despeito de
reconhecer o ódio como inerente à natureza humana ou fruto das contingências e
acasos que marcam histórias de vida, qualificam suas manifestações
disfuncionais como anomalias ou patologias, o que, além de gerar efeitos
jurídicos no campo da responsabilidade, parte da ideia de que o ódio sem
controle pode ser atribuído a supostos “desvios” comportamentais ou traços
característicos de pessoas desajustadas ou antissociais.
Ao lado, e sem prejuízo dessas importantes
abordagens, também é possível refletir sobre o ódio com vistas ao diálogo com o
Direito, por meio de um foco mais ampliado, que busca compreendê-lo para além
das dinâmicas psíquicas individuais e grupais.
Nesse sentido são úteis as reflexões de Michel
Foucault ao afirmar que o Estado moderno e suas inerentes relações de poder
podem ser mais bem compreendidos tendo em vista o paradigma não da conciliação,
mas da guerra: o antagonismo, a hostilidade e a supremacia de determinado grupo
social sobre outros, com a consequente imposição de sua cultura, língua,
cosmovisão de mundo e padrões de “normalização”. De acordo com essa
compreensão, o filósofo afirma que não há Estado que não seja racista, na
medida em que as disputas de poder que nele se estabelecem sempre partirão da
ideia de defesa da sociedade contra os “anormais”, ou seja, todas as pessoas e
grupos que não se identificam com o padrão estabelecido pelo grupo hegemônico.
Nesse sentido, o ódio passa a ser um ingrediente
necessário na complexa mistura que caracteriza o Estado moderno e as relações
de poder que nele terão lugar.
Levando-se em conta que o Estado é concebido com
base no paradigma bélico, é forçoso considerar que estamos todos em guerra uns
com os outros; “uma frente de batalha perpassa a sociedade inteira, contínua e
permanentemente, e é essa frente de batalha que coloca cada um de nós num campo
ou no outro. Não há sujeito neutro. Somos forçosamente adversários de alguém”,
afirmou Foucault. Não há opção, portanto.
A guerra como chave para entender as relações de
poder e o ódio como elemento constitutivo do Estado moderno aponta para outras
consequências. Por um lado, a impossibilidade de um sujeito universal e neutro,
já que o estabelecimento de um “padrão normalizador” sempre vai assumir como
“neutros” os padrões ditados pelo grupo hegemônico. De outro lado, há
consequências na esfera da autoconstituição dos sujeitos; afinal, ninguém quer
se identificar como perdedor. O fomento do ódio dá ensejo ao apagamento da
consciência de si, de seu lugar na luta de classes. O ódio atua como auxiliar
na constituição de sujeitos que estão prontos para qualquer coisa.
Esses mecanismos são explicitados por Foucault por
meio da noção de racismo de Estado, que traduz a ideia de um racismo interno
que a sociedade passa a exercer sobre seus próprios integrantes, num esforço de
“purificação” permanente, como dimensão fundamental da normalização social e da
conformidade com os padrões ditados pelo grupo dominante.
Assim, com base na decisão soberana de “fazer
morrer” ou “deixar viver”, Foucault identifica uma tecnologia do poder que ele
denomina biopolítica. O poder que se exerce por meio de cálculos e decisões que
afetam a população, nesses aspectos biológicos massivos, é denominado biopoder.
Para Foucault, a emergência do biopoder inseriu o
racismo e o ódio nos mecanismos do Estado com funções bem determinadas:
subdividir, fragmentar e classificar grupos humanos ordenando-os de forma
assimétrica em suas relações uns com os outros; transformar a ancestral relação
guerreira entre grupos em relações erigidas em padrões de supremacia do tipo
biológico. Nessa função, o racismo e o ódio transformam a morte do outro não
simplesmente em fator de segurança pessoal, tal como na guerra, mas em fator de
melhoria da vida em geral. Para Foucault, a raça, o racismo e, por extensão, o
ódio são “a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de
normalização”.
Ao reconhecer o caráter fundamental e constitutivo
do ódio, tal como se exerce desde então, Foucault afirma a impossibilidade do
“funcionamento moderno do Estado que, em certo momento, em certo limite e em
certas condições, não passe pelo racismo” e pelo ódio aos “anormais”.
As concepções de Foucault foram incorporadas por Achille
Mbembe, que, com base nos conceitos de biopolítica e biopoder, os situou na
perspectiva das relações internacionais do mundo globalizado, ao elaborar o
conceito de necropolítica. Assim, ele demonstra que em determinados locais do
planeta, notadamente no Sul global, a incitação ao ódio, à violência e à morte
inscreve-se como instrumento inerente à política cotidiana, na qual se
desenvolve um estado de guerra permanente, herdado de séculos de escravidão
negra e dizimação das populações indígenas.
O neoliberalismo, como “nova razão de mundo”, atualiza e
incrementa esse estado de guerra permanente, em que o ódio se insere como
elemento constitutivo. Nesse sentido, já se afirmou que “capitalismo e
neoliberalismo carregam guerras em si, assim como as nuvens contêm as
tempestades”.
Eric Alliez e Maurizio Lazzarato destacam que a lógica
das guerras de raças, de classes, de sexos e de subjetividades preside o
funcionamento normal do capitalismo e do neoliberalismo, como princípio que
lhes é inerente. Os autores sustentam que a guerra, além de manter-se ao longo
dos séculos como elemento intrínseco ao modo de funcionamento dos Estados, em
tempos de financeirização e maior desterritorialização do capital, sob ordem
neoliberal, converte-se em princípio que preside os capitalismos contemporâneos
em seus múltiplos arranjos e a própria ordem internacional.
As análises de Foucault, Mbembe, Alliez e Lazzarato
convergem no sentido de demonstrar que ódio e coesão social convivem, sem
excluir-se mutuamente, mesmo em sociedades liberais e democráticas, trazendo à
consciência o fato de que o ódio não pode ser compreendido tão somente como
sentimento, emoção ou patologia individual ou grupal, ou como produto de mentes
e afetos perturbados.
Mais que uma variável, com peso idêntico a outras
variáveis na identificação daquilo que constitui ou não um discurso, um crime,
um jogo, um algoritmo de ódio, a compreensão do caráter constitutivo e
estrutural do ódio nos Estados modernos e nos territórios colonizados é “a
variável-mestra”, por assim dizer, o cenário, o campo onde todas as outras
variáveis vão se posicionar. Assim, ela vai determinar suas dinâmicas, numa
perspectiva do uso das hierarquias de poder e do uso da violência como forma de
subordinação, exclusão de grupos e manutenção de estruturas.
Crimes, discursos, grupos, algoritmos de ódio,
desinformação e fake news ganham contornos ainda mais
dramáticos em contextos eleitorais. A compreensão do ódio em sua dimensão
constitutiva e estrutural das relações de poder no Estado moderno afasta, de pronto,
explicações que o atrelam a episódicas e aleatórias “polarizações”.
Nas democracias liberais, as eleições são o momento em
que projetos de poder são expostos ao debate público e colocados à prova. É o
momento em que as demandas por mudanças afloram, ao mesmo tempo que
manifestações de ódio podem atuar como instrumento a serviço daquilo que não
deve ser alterado, na perspectiva dos grupos detentores do poder.
Leia também: Fake news sobre urnas,
pesquisas e TSE dominam retórica da mentira https://bit.ly/3BQHoup
Como afirmam os autores do relatório Violência política e eleitoral no
Brasil, elaborado pela Justiça Global
e pela Terra de Direitos: “As eleições funcionam como elemento dinamizador das
disputas, potencializando a violência. A violência eleitoral é consequentemente
influenciada pelas relações de poder e pelos mecanismos formais e informais de
gestão, fiscalização e controle eleitoral nos territórios”.
A compreensão dos crimes e discursos de ódio como
mecanismos de reforço de hierarquias sociais também explica por que tais
discursos eleitorais rendem votos. Ou seja, há um ambiente já desenhado, pronto
e estabelecido para que as identidades não hegemônicas e grupos
vulnerabilizados sejam alvo de exclusão, silenciamento, violência,
discriminação e, em casos extremos, de extermínio puro e simples.
O já citado relatório da Terra de Direitos e da Justiça
Global é elucidativo quando afirma que “o custo democrático da violência
política é muito alto. A exclusão violenta de outros corpos e perspectivas do
ambiente político reforça estereótipos prejudiciais e processos de
estigmatização que silenciam e inviabilizam a participação e o exercício de
direitos políticos por parte de grupos historicamente discriminados. A
violência como força, dominação e controle robustece barreiras estruturais que
excluem os grupos ‘menos fortes’ da política. A violência eleitoral é utilizada
para garantir o controle de um grupo hegemônico sobre o sistema político – no
caso brasileiro, homens, brancos, cristãos, de classe alta, que se identificam
como heterossexuais. O controle do poder por atores masculinos que pertencem ao
grupo cultural, étnico, religioso e econômico dominante implica que a violência
seja peça fundamental para garantir que o poder político não seja exercido por
grupos e indivíduos não hegemônicos (mulheres, pessoas de identidade LGBTQIA+,
indígenas, afrodescendentes, quilombolas, povos tradicionais, trabalhadoras/es,
especialmente os mais pobres, etc.)”.
É sempre importante destacar que a estigmatização, a
desumanização e a fabricação de inimigos e bodes expiatórios são técnicas
discursivas conhecidas dos regimes nazistas e fascistas, os quais assumiram o
poder pelo voto. Atribuir as causas de todas as mazelas a determinadas pessoas
é muito mais fácil do que chamar para si a responsabilidade, dedicar-se ao
estudo das causas dos problemas complexos que atingem o país e elaborar
programas de governo propositivos e factíveis.
De outro lado, a falta de responsabilização dos
produtores de discurso de ódio contribui para o reforço da mensagem de que há
uma “premiação aos mais fortes”, fundada em visões equivocadas do direito à
liberdade de expressão para justificar atos violentos, quando não criminosos.
É preciso, portanto, entender que a mobilização do ódio,
por meio de discursos de desumanização e difamação a grupos, de incitação à
violência e mesmo de atos de violência física e psicológica infligidos a
pessoas em razão de suas formas de existir e de se colocar no mundo, não
caracteriza tão somente ofensa a honras, imagens e reputações, o que já se
revelaria grave e mereceria repulsa social. Os crimes e discursos eleitorais de
ódio revelam-se também como estratégia de fragilização da própria democracia,
na medida em que buscam silenciar e retirar do debate público grupos
vulnerabilizados e não hegemônicos, tornando-a menos diversa, mais empobrecida,
deficitária do ponto de vista representativo e carente de legitimidade.
Silvio Almeida recorda que a democracia não é nem nunca
foi um valor universal. Pierre Dardot e Christian Laval, a seu turno, advertem
que o avanço do projeto neoliberal implica um crescente processo de
“desdemocratização” para que as pautas impopulares necessárias para o
aprofundamento de desigualdades sejam colocadas em prática.
Nessa medida, o enfrentamento do ódio e da violência no
contexto eleitoral por meio de um agir contra-hegemônico e emancipador de
pessoas e grupos vulnerabilizados é requisito não apenas para o fortalecimento
da democracia em seu aspecto substancial, mas também para sua própria
sobrevivência.
*Claudia Maria Dadico é
doutora em Ciências Criminais, juíza federal e conselheira da Associação Juízes
para a Democracia (AJD).
Veja: Um
apego compulsivo a conflitos incontornáveis https://bit.ly/3E1XhhF
Nenhum comentário:
Postar um comentário