11 outubro 2022

Retrocesso civilizatório

Dos crimes e discursos de ódio no contexto eleitoral

A estigmatização, a desumanização e a fabricação de inimigos e bodes expiatórios são técnicas discursivas conhecidas dos regimes nazistas e fascistas, os quais assumiram o poder pelo voto. Atribuir as causas de todas as mazelas a determinadas pessoas é muito mais fácil do que chamar para si a responsabilidade e dedicar-se ao estudo das causas de problemas complexos
Claudia Maria Dadico, Le Monde Diplomatic Brasil

 

A análise dos crimes e discursos de ódio no contexto eleitoral requer, como pressuposto, um consenso mínimo acerca desses conceitos e, mais especificamente, de que ódio se está a falar.

É frequente no debate jurídico o recurso a explicações e análises do ódio levando em conta perspectivas individuais, como algo que se aprende, como emoção, pulsão, sentimento ou um conjunto de paixões negativas, motivadoras de atitudes de indivíduos ou de grupos de indivíduos. Quando se consideram abordagens individuais, com as ferramentas do campo da psicologia e da psicanálise, não são raras as interpretações que, a despeito de reconhecer o ódio como inerente à natureza humana ou fruto das contingências e acasos que marcam histórias de vida, qualificam suas manifestações disfuncionais como anomalias ou patologias, o que, além de gerar efeitos jurídicos no campo da responsabilidade, parte da ideia de que o ódio sem controle pode ser atribuído a supostos “desvios” comportamentais ou traços característicos de pessoas desajustadas ou antissociais.

Ao lado, e sem prejuízo dessas importantes abordagens, também é possível refletir sobre o ódio com vistas ao diálogo com o Direito, por meio de um foco mais ampliado, que busca compreendê-lo para além das dinâmicas psíquicas individuais e grupais.

Nesse sentido são úteis as reflexões de Michel Foucault ao afirmar que o Estado moderno e suas inerentes relações de poder podem ser mais bem compreendidos tendo em vista o paradigma não da conciliação, mas da guerra: o antagonismo, a hostilidade e a supremacia de determinado grupo social sobre outros, com a consequente imposição de sua cultura, língua, cosmovisão de mundo e padrões de “normalização”. De acordo com essa compreensão, o filósofo afirma que não há Estado que não seja racista, na medida em que as disputas de poder que nele se estabelecem sempre partirão da ideia de defesa da sociedade contra os “anormais”, ou seja, todas as pessoas e grupos que não se identificam com o padrão estabelecido pelo grupo hegemônico.

Nesse sentido, o ódio passa a ser um ingrediente necessário na complexa mistura que caracteriza o Estado moderno e as relações de poder que nele terão lugar.

Levando-se em conta que o Estado é concebido com base no paradigma bélico, é forçoso considerar que estamos todos em guerra uns com os outros; “uma frente de batalha perpassa a sociedade inteira, contínua e permanentemente, e é essa frente de batalha que coloca cada um de nós num campo ou no outro. Não há sujeito neutro. Somos forçosamente adversários de alguém”, afirmou Foucault. Não há opção, portanto.

A guerra como chave para entender as relações de poder e o ódio como elemento constitutivo do Estado moderno aponta para outras consequências. Por um lado, a impossibilidade de um sujeito universal e neutro, já que o estabelecimento de um “padrão normalizador” sempre vai assumir como “neutros” os padrões ditados pelo grupo hegemônico. De outro lado, há consequências na esfera da autoconstituição dos sujeitos; afinal, ninguém quer se identificar como perdedor. O fomento do ódio dá ensejo ao apagamento da consciência de si, de seu lugar na luta de classes. O ódio atua como auxiliar na constituição de sujeitos que estão prontos para qualquer coisa.

Esses mecanismos são explicitados por Foucault por meio da noção de racismo de Estado, que traduz a ideia de um racismo interno que a sociedade passa a exercer sobre seus próprios integrantes, num esforço de “purificação” permanente, como dimensão fundamental da normalização social e da conformidade com os padrões ditados pelo grupo dominante.

Assim, com base na decisão soberana de “fazer morrer” ou “deixar viver”, Foucault identifica uma tecnologia do poder que ele denomina biopolítica. O poder que se exerce por meio de cálculos e decisões que afetam a população, nesses aspectos biológicos massivos, é denominado biopoder.

Para Foucault, a emergência do biopoder inseriu o racismo e o ódio nos mecanismos do Estado com funções bem determinadas: subdividir, fragmentar e classificar grupos humanos ordenando-os de forma assimétrica em suas relações uns com os outros; transformar a ancestral relação guerreira entre grupos em relações erigidas em padrões de supremacia do tipo biológico. Nessa função, o racismo e o ódio transformam a morte do outro não simplesmente em fator de segurança pessoal, tal como na guerra, mas em fator de melhoria da vida em geral. Para Foucault, a raça, o racismo e, por extensão, o ódio são “a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização”.

Ao reconhecer o caráter fundamental e constitutivo do ódio, tal como se exerce desde então, Foucault afirma a impossibilidade do “funcionamento moderno do Estado que, em certo momento, em certo limite e em certas condições, não passe pelo racismo” e pelo ódio aos “anormais”.

As concepções de Foucault foram incorporadas por Achille Mbembe, que, com base nos conceitos de biopolítica e biopoder, os situou na perspectiva das relações internacionais do mundo globalizado, ao elaborar o conceito de necropolítica. Assim, ele demonstra que em determinados locais do planeta, notadamente no Sul global, a incitação ao ódio, à violência e à morte inscreve-se como instrumento inerente à política cotidiana, na qual se desenvolve um estado de guerra permanente, herdado de séculos de escravidão negra e dizimação das populações indígenas.

O neoliberalismo, como “nova razão de mundo”, atualiza e incrementa esse estado de guerra permanente, em que o ódio se insere como elemento constitutivo. Nesse sentido, já se afirmou que “capitalismo e neoliberalismo carregam guerras em si, assim como as nuvens contêm as tempestades”.

Eric Alliez e Maurizio Lazzarato destacam que a lógica das guerras de raças, de classes, de sexos e de subjetividades preside o funcionamento normal do capitalismo e do neoliberalismo, como princípio que lhes é inerente. Os autores sustentam que a guerra, além de manter-se ao longo dos séculos como elemento intrínseco ao modo de funcionamento dos Estados, em tempos de financeirização e maior desterritorialização do capital, sob ordem neoliberal, converte-se em princípio que preside os capitalismos contemporâneos em seus múltiplos arranjos e a própria ordem internacional.

As análises de Foucault, Mbembe, Alliez e Lazzarato convergem no sentido de demonstrar que ódio e coesão social convivem, sem excluir-se mutuamente, mesmo em sociedades liberais e democráticas, trazendo à consciência o fato de que o ódio não pode ser compreendido tão somente como sentimento, emoção ou patologia individual ou grupal, ou como produto de mentes e afetos perturbados.

Mais que uma variável, com peso idêntico a outras variáveis na identificação daquilo que constitui ou não um discurso, um crime, um jogo, um algoritmo de ódio, a compreensão do caráter constitutivo e estrutural do ódio nos Estados modernos e nos territórios colonizados é “a variável-mestra”, por assim dizer, o cenário, o campo onde todas as outras variáveis vão se posicionar. Assim, ela vai determinar suas dinâmicas, numa perspectiva do uso das hierarquias de poder e do uso da violência como forma de subordinação, exclusão de grupos e manutenção de estruturas.

Crimes, discursos, grupos, algoritmos de ódio, desinformação e fake news ganham contornos ainda mais dramáticos em contextos eleitorais. A compreensão do ódio em sua dimensão constitutiva e estrutural das relações de poder no Estado moderno afasta, de pronto, explicações que o atrelam a episódicas e aleatórias “polarizações”.

Nas democracias liberais, as eleições são o momento em que projetos de poder são expostos ao debate público e colocados à prova. É o momento em que as demandas por mudanças afloram, ao mesmo tempo que manifestações de ódio podem atuar como instrumento a serviço daquilo que não deve ser alterado, na perspectiva dos grupos detentores do poder.

Leia também: Fake news sobre urnas, pesquisas e TSE dominam retórica da mentira https://bit.ly/3BQHoup

Como afirmam os autores do relatório Violência política e eleitoral no Brasil, elaborado pela Justiça Global e pela Terra de Direitos: “As eleições funcionam como elemento dinamizador das disputas, potencializando a violência. A violência eleitoral é consequentemente influenciada pelas relações de poder e pelos mecanismos formais e informais de gestão, fiscalização e controle eleitoral nos territórios”.

A compreensão dos crimes e discursos de ódio como mecanismos de reforço de hierarquias sociais também explica por que tais discursos eleitorais rendem votos. Ou seja, há um ambiente já desenhado, pronto e estabelecido para que as identidades não hegemônicas e grupos vulnerabilizados sejam alvo de exclusão, silenciamento, violência, discriminação e, em casos extremos, de extermínio puro e simples.

O já citado relatório da Terra de Direitos e da Justiça Global é elucidativo quando afirma que “o custo democrático da violência política é muito alto. A exclusão violenta de outros corpos e perspectivas do ambiente político reforça estereótipos prejudiciais e processos de estigmatização que silenciam e inviabilizam a participação e o exercício de direitos políticos por parte de grupos historicamente discriminados. A violência como força, dominação e controle robustece barreiras estruturais que excluem os grupos ‘menos fortes’ da política. A violência eleitoral é utilizada para garantir o controle de um grupo hegemônico sobre o sistema político – no caso brasileiro, homens, brancos, cristãos, de classe alta, que se identificam como heterossexuais. O controle do poder por atores masculinos que pertencem ao grupo cultural, étnico, religioso e econômico dominante implica que a violência seja peça fundamental para garantir que o poder político não seja exercido por grupos e indivíduos não hegemônicos (mulheres, pessoas de identidade LGBTQIA+, indígenas, afrodescendentes, quilombolas, povos tradicionais, trabalhadoras/es, especialmente os mais pobres, etc.)”.

É sempre importante destacar que a estigmatização, a desumanização e a fabricação de inimigos e bodes expiatórios são técnicas discursivas conhecidas dos regimes nazistas e fascistas, os quais assumiram o poder pelo voto. Atribuir as causas de todas as mazelas a determinadas pessoas é muito mais fácil do que chamar para si a responsabilidade, dedicar-se ao estudo das causas dos problemas complexos que atingem o país e elaborar programas de governo propositivos e factíveis.

De outro lado, a falta de responsabilização dos produtores de discurso de ódio contribui para o reforço da mensagem de que há uma “premiação aos mais fortes”, fundada em visões equivocadas do direito à liberdade de expressão para justificar atos violentos, quando não criminosos.

É preciso, portanto, entender que a mobilização do ódio, por meio de discursos de desumanização e difamação a grupos, de incitação à violência e mesmo de atos de violência física e psicológica infligidos a pessoas em razão de suas formas de existir e de se colocar no mundo, não caracteriza tão somente ofensa a honras, imagens e reputações, o que já se revelaria grave e mereceria repulsa social. Os crimes e discursos eleitorais de ódio revelam-se também como estratégia de fragilização da própria democracia, na medida em que buscam silenciar e retirar do debate público grupos vulnerabilizados e não hegemônicos, tornando-a menos diversa, mais empobrecida, deficitária do ponto de vista representativo e carente de legitimidade.

Silvio Almeida recorda que a democracia não é nem nunca foi um valor universal. Pierre Dardot e Christian Laval, a seu turno, advertem que o avanço do projeto neoliberal implica um crescente processo de “desdemocratização” para que as pautas impopulares necessárias para o aprofundamento de desigualdades sejam colocadas em prática.

Nessa medida, o enfrentamento do ódio e da violência no contexto eleitoral por meio de um agir contra-hegemônico e emancipador de pessoas e grupos vulnerabilizados é requisito não apenas para o fortalecimento da democracia em seu aspecto substancial, mas também para sua própria sobrevivência.

 

*Claudia Maria Dadico é doutora em Ciências Criminais, juíza federal e conselheira da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

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