Por
que recuperar o Conselho de Defesa Sul-Americano
Tensões
geopolíticas acirram a cobiça por riquezas naturais da América do Sul. Há meios
para reagir: políticas externas soberanas, agenda estratégica comum e indústria
integrada. Para tudo isso, restaurar a Unasul, hoje paralisada, é decisivo
Raphael Padula, Outras palavras
O quadro geopolítico do século XXI apresenta uma crescente disputa
interestatal pelo controle de territórios que desempenham papel estratégico
como fontes de abastecimento de recursos naturais, rotas comerciais ou
militares. A América do Sul possui regiões abundantes em recursos naturais com
altos valores econômico, ambiental e estratégicos nas suas bases continental –
como nas Bacias do Prata e Amazônica – e marítima – no Atlântico Sul, que se
encontra permeado por ilhas transoceânicas britânicas. A crescente projeção
econômica chinesa, envolvendo a busca por recursos e ativos estratégicos na
América do Sul, e a projeção do Brasil, num contexto de novas descobertas
energéticas, acelerou a competição na região, envolvendo respostas por parte
dos EUA, utilizando diferentes meios para alcançar fins estratégicos.
A segunda década do século XXI reafirmou global e regionalmente a
importância das guerras não convencionais (e híbridas). As tecnologias
militares de ponta se mostram fundamentais, sem deixar de lado a importância de
guerras assimétricas. Ainda, a importância do uso de instrumentos econômicos
para fins estratégicos, especialmente a prática de monitoramento e sanções
financeiras. Em todos esses aspectos os EUA apresentam poder superior
inequívoco.
Tais guerras ou disputas não se resumem a razões econômicas, pois
envolvem a balança de poder e a segurança dos Estados. A América do Sul está
localizada no hemisfério ocidental, uma área de interesse estratégico dos EUA
na qual a emergência de qualquer potência ou aliança entre países da região ou
com potências externas é encarada como uma ameaça à segurança dos EUA. Isso não
envolve meramente interesses econômicos, mas relações de poder e segurança, e
torna a região inevitavelmente alvo das ações estadunidenses, com possíveis
retaliações de rivais, portanto inevitavelmente inserida na disputa de poder
global. A área do “Grande Caribe”, também chamada de Mediterrâneo Americano no
pensamento estratégico estadunidense, engloba o norte da América do Sul e é
encarada como fundamental para a articulação militar e comercial entre o
Atlântico e o Pacífico. Ou seja, é uma área de grande sensibilidade estratégica
estadunidense.
Por essas razões estruturais e conjunturais, é importante que o Brasil
articule seus interesses com os países da América do Sul para manter sua
soberania, proteção e aproveitamento ambientalmente racional de recursos
naturais. Além disso, ao olhar para o Atlântico Sul, deve também articular os
países sul-americanos com os africanos. Sendo de interesse do Brasil de que a
América do Sul e o Atlântico Sul se mantenham livre da presença e interferência
de potências externas, suas disputas e armas nucleares. Ainda, no âmbito da
busca por um mundo multipolar, a projeção chinesa pode representar uma ameaça,
ou oportunidades de negociar em bloco de forma pragmática auferindo ganhos
econômicos, tecnológicos, militares e de segurança no sentido mais amplo.
Nos anos 1990, os governos brasileiros e sul-americanos seguiram a
agenda de segurança das “novas ameaças” difundida pelos EUA e pela Organização
dos Estados Americanos (OEA), com foco principal no narcotráfico e,
secundariamente nos direitos humanos, democracia e meio ambiente. Juntamente
com a visão neoliberal do “regionalismo aberto”, tal agenda aparece mesmo nos
documentos da Reunião de Presidentes da América do Sul (2000), que deu impulso
inicial à institucionalização multilateral da integração sul-americana. A
ausência de percepção de ameaças interestatais justificaria a limitação ao
combate interno do papel e equipamento de forças armadas, combinada à carência
de preocupações com autonomia produtiva e tecnológica em setores estratégicos,
reproduzindo a inferioridade militar dos países sul-americanos.
Leia
também: O papel do BRICS no equilíbrio mundial na concepção chinesa https://bit.ly/3LPEmLf
A partir de 2003, dentro do processo de avanço na institucionalização e
mudanças na agenda da integração sul-americana, em um contexto de crescente
ascensão de governos críticos aos EUA, registra-se crescente presença temática
da segurança. No entanto, sob uma visão de que a prioridade se voltaria a
ameaças externas à “soberania sobre recursos naturais”, que deveriam ser
aproveitados em benefício próprio, em um ambiente de crescente disputa
interestatal global. Isso se refletiu nos documentos dos Encontros de Chefes e
Chefas de Estado da América do Sul e nas instituições criadas (CASA e Unasul),
em parte como demandas de alguns países da região, mas, sobretudo, refletindo
as Política de Defesa Nacional (PDN 2005) e Estratégia Nacional de Defesa (END
2007) formuladas no governo Luís Inácio Lula da Silva.
As PDN e END apontaram que o Brasil passa a encarar em primeiro plano as
ameaças à soberania sobre recursos naturais advindas das disputas interestatais
que poderiam impactar nos seus território e “entorno estratégico” – área
envolvendo a América do Sul e o Atlântico Sul (estendendo-se para a África e a
Antártica), nas quais o Brasil, de forma cooperativa, pode promover segurança e
desenvolvimento. Ainda, na América do Sul, o Brasil deveria irradiar sua
percepção sobre ameaças e a construção de uma Base Industrial de Defesa
autônoma para formar uma capacidade dissuasória diante de potenciais ameaças
externas.
Em 2008, a criação do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) da Unasul
foi uma iniciativa brasileira diante do contexto descrito acima e, ao mesmo
tempo, uma resposta moderada às recorrentes demandas do presidente venezuelano
Hugo Chávez pela criação de uma força militar sul-americana em oposição à OTAN,
frente às ameaças estadunidenses e sua real presença na Colômbia.
O CDS teve como objetivos uma maior colaboração e multilateralização de
temas de segurança, condizentes com as características dos países e da região
sul-americana, e que contribuam para fortalecer a unidade da América Latina e
do Caribe, além de criar maior transparência e confiança mútua em relação aos
temas militares, longe da presença e de forma autônoma a potências externas.
Seu Estatuto aponta o objetivo dos países membros de criar uma
zona de paz e cooperação regional, livre de armas e potências nucleares,
apoiada na Carta da ONU, na OEA e no Tratado Constitutivo da Unasul, com
respeito à soberania, autodeterminação e integridade territorial dos Estados,
construindo uma identidade sul-americana em defesa. Nesse sentido, ainda em
2009, foi criado o Centro de Estudos que evoluiu para a proposta de criação da
Escola Sul-Americana de Defesa em 2014. Ao mesmo tempo, o narcotráfico deveria
ser tratado de forma separada, encarado como um tema social e de saúde, e um
tema criminal e policial de fronteira que demandaria cooperação entre os países
da região sem interferência externa, além de ser um problema mundial no qual os
países consumidores deveriam assumir suas responsabilidades em seus
territórios.
Enquanto o governo Lula avançou em iniciativas que buscaram o
reaparelhamento e autonomia da indústria de defesa brasileira, no âmbito do CDS
surgiram o fomento a iniciativas para formar uma indústria regional autônoma
voltadas à dissuasão de ameaças externas. No entanto, a grande maioria sem
resultados concretos, diante da complexidade política e do curto tempo de vida
do Conselho.
Assim, configurou-se uma disputa pela agenda regional de segurança em
termos de quais ameaças devem ser encaradas como prioridades a serem
dissuadidas e combatidas nos países e na região, onde a agenda das “novas
ameaças” seguia sendo disseminada pela OEA, EUA e seus aliados na região
(Colômbia e Peru), mesmo no CDS. A pluralidade de visões entre governos da
região e a busca pela racionalização do tratamento do tema do narcotráfico,
acabou refletindo na criação de outros dois conselhos específicos, ambos
apoiados pelo Brasil: o Conselho Sul-Americano sobre o Problema Mundial das
Drogas (CSPMD), em 2010, buscando trata-lo como um problema mundial e do ponto
de vista da saúde; e o Conselho Sul-Americano em matéria de Segurança Cidadã,
Justiça e Coordenação de Ações contra a Delinquência Organizada Transnacional,
em 2012, onde seria abordado como um tema criminal transfronteiriço e de
segurança dos indivíduos.
Após o golpe contra a Presidenta Dilma Rousseff em 2016, a legitimidade
do governo Temer não foi bem recebida no âmbito da Unasul e pelos governos
sul-americanos em geral, com exceção de aliados dos EUA. Essa foi uma das
razões para impasses na escolha do sucessor do Diretor Geral E. Samper e à
gradativa paralisia da Unasul. Registra-se a partir daí a ausência do
protagonismo regional brasileiro no âmbito de uma política externa voltada para
proximidade com os EUA e seus aliados, cujas iniciativas o Brasil passaria a
seguir. Aderiu assim à criação do Grupo de Lima (2017) para tratar da crise na
Venezuela (antes mediada pela Unasul), uma iniciativa do Peru com influência e
participação ativa dos EUA. Tal quadro levou ainda a um maior protagonismo
hemisférico da OEA, sob liderança estadunidense. As mudanças de governo nos
países da região levaram a um quadro de paralisia da Unasul. Em seguida, o
Brasil aderiu ao Fórum PROSUL – idealizado pelo Presidente Piñera do Chile, que
não reuniria todos os países da região e buscaria substituir a Unasul, sob o
falso argumento de que a instituição seria mais leve, flexível e livre de
ideologias. Assim, o arranjo plural da Unasul, seus conselhos e diálogos, foram
deixados de lado, incluindo o CDS e qualquer discussão estratégica sobre
segurança regional autônoma.
As ausências de uma agenda estratégica regional, de um mecanismo de
diálogo para dirimir crises e conflitos, e do protagonismo brasileiro (e de
suas empresas estatais), abriram espaço para que a América do Sul se tornasse
alvo da projeção da disputa de poder global de potências externas. As sanções e
a influência dos EUA no tratamento da crise venezuelana foi seguida de maior
presença e apoio militar e econômico de China e Rússia. Da mesma forma,
refletiu no golpe na Bolívia em 2019 sob protagonismo da OEA, e para a
instabilidade em outros países, como o Peru. Ainda, na instabilidade e disputa
por recursos energéticos recém-descobertos na Guiana e Suriname, com grande
presença de empresas estadunidenses e europeias, mas também com aproximações
militares com os EUA. Ampliou-se a presença econômica da China na região,
envolvendo recursos e alianças estratégicas. Países vizinhos e a área amazônica
tornaram-se focos de tensão e projeção de poder de potências externas, passível
de eclosão de conflitos e intervenções militares.
A criação do CDS foi uma iniciativa inédita e a possibilidade de formar
uma agenda estratégica própria na região, incluindo projetos na indústria de
defesa, em um contexto de crescentes disputas de poder global e por recursos
naturais. A institucionalização regional ao longo dos anos 2000, por meio de
iniciativas ou com participação significativa do Brasil, mostrou-se plural,
envolvendo todos os governos sul-americanos, independente de ideologias,
constituindo capital institucional que pode ser recuperado. O processo de
integração regional é uma necessidade para somar forças e dissuadir presenças
externas, assim como para o objetivo de estabelecer uma política externa
soberana, sem submissão a interesses externos e voltada para o interesse do
Brasil.
Portanto, a retomada da integração sul-americana, incluindo a Unasul e
seu Conselho de Defesa (CDS) condiz com os interesses brasileiros, apoiando:
sua inserção soberana e independente frente às disputas globais e os interesses
das Grandes Potências; a conformação de uma América do Sul estável, pacífica e
livre da presença de potências externas e armas nucleares; a proteção ambiental
sobre áreas ambientalmente relevantes e sobre recursos naturais estratégicos
que devem ser utilizados em benefício de suas populações e do desenvolvimento
socioeconômico dos países sul-americanos.
Ao mesmo tempo, ao ser retomado, o CDS pode levar adiante uma atuação
coordenada com outros conselhos da Unasul, com a OTCA (Organização do Tratado
de Cooperação Amazônica) e com a ZOPACAS (Zona de Paz e Cooperação do Atlântico
Sul), visando: (i) manter a separação entre temas de defesa e cooperação
militar dos temas do narcotráfico e de segurança do indivíduo/cidadão, que
devem ser tratados em outros conselhos e de forma racionalizada; (ii)
contribuir com uma visão estratégica para outros conselhos (como energia e
economia e finanças) voltados para temas que possam contribuir para a segurança
e estabilidade da região; (iii) promover a proteção ambiental da Amazônia, da
Bacia do Prata e do Atlântico Sul. Para reunir interesses em torno do CDS,
seria importante identificar e impulsionar projetos da indústria de defesa
conjuntos que tenham potencial para apresentar resultados mais rápidos,
buscando associá-los à formação de cadeias produtivas regionais industriais de
maior valor agregado e intensidade tecnológica, explorando as vantagens
produtivas e tecnológicas do Brasil (em aeronaves e blindados, por exemplo),
com a atuação e apoio do BNDES. Entre os possíveis óbices, não se deve perder
de vista a falta de uma cultura integracionista entre os militares brasileiros
e dos demais países, somada à sua vulnerabilidade e à influência de visões
difundidas por Grandes Potências. Projetos pragmáticos na área de defesa
sul-americana podem ajudar a dirimir tal problema. A ideia de que gastos com
defesa são menos importantes para países supostamente pacíficos e livres de
ameaças, e/ou em desenvolvimento e com problemas internos, pode se tornar um
obstáculo ao direcionamento de recursos para a área de defesa sul-americana.
Por outro lado, a pandemia da covid-19 mostrou a importância da produção (ou
ausência) de bens estratégicos em momentos de crise e conflitos, assim como a
capacidade do Estado de criar mecanismos financeiros para financiar
continuamente (e não somente emergencialmente) setores estratégicos.
Leia também: Os chineses construíram a
engenharia social mais avançada do mundo https://bit.ly/3RW9fPJ
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