Conhecereis a verdade e ela
poderá levar Bolsonaro para a cadeia
O melhor meio de enfrentar quem quer desestabilizar
o funcionamento das instituições é o próprio funcionamento das instituições.
Esse é o teste fundamental do estado democrático de direito. Os ataques de 8 de
janeiro de 2023 não foram espontaneamente gerados, eles estão em um contexto de
uma série de crimes. E é preciso entender qual é o papel de Jair Bolsonaro
nesses crimes
Antonio Carlos Souza de Carvalho/Le Monde
Diplomatique
Menos de um mês depois de deixar a
Presidência da República, os problemas
de Bolsonaro com a justiça se
avolumam e indicam a necessidade de forte posicionamento das instituições em
defesa do estado democrático de direito e da Constituição.
Todo o funcionamento do sistema de justiça é um ato
de proteção à sociedade. No momento em que as instituições deixam de funcionar,
total ou parcialmente, abre-se uma fissura no sistema de proteção de direitos
que precisa ser devidamente reparada. A velocidade com que o Brasil afundou
numa crise humanitária é alarmante, e isso não é novidade em nossa história.
Essa crise foi negligenciada e negada por Bolsonaro.
A repetição de comportamento de um governo que nega
a realidade só é possível porque não se estabeleceu até hoje uma memória
nacional a respeito do que significam governantes dessa laia. A frase “que não
se esqueç a para que nunca mais aconteça” nunca foi tão necessária ao debate
democrático brasileiro. Entre tantos fatores, é imperioso destacar que essa
tragédia aconteceu porque a sociedade brasileira não se encontrou com seu
passado e com as injustiças históricas cometidas pelos poderes instituídos
política e economicamente. E, ao não se encontrar, criou espaço para que o
poder não emanasse do povo e, assim, o elemento fundamental da concepção do
Estado brasileiro foi enfraquecido.
Bolsonaro é a repetição de inúmeras ocasiões da
história em que o poder deixou de emanar do povo. Ao selecionar uma parcela da
população para ouvir e atender aos interesses, o ex-presidente se imputou em
dois problemas: o polí tico e o jurídico. Politicamente, Bolsonaro foi o pior
presidente desde a redemocratização porque atuou de forma sistemática para
estabelecer um projeto de poder que não respeita a democracia, que ataca
opositores e que entende que o “poder da caneta” é suficiente para determinar
os rumos de uma sociedade.
E o problema político deve ser resolvido pela
política. Primeiro, a população, nas urnas, expressou a vontade de trocar a mão
que comanda a caneta. Agora, a sociedade civil precisa cumprir seu papel de
dialogar e estabelecer um consenso a favor de um Estado cujo papel seja cumprir
integralmente a Constituição. A defesa da democracia não pode ser papel
exclusivo de um partido ou de um grupo político que disputa as eleições.
Defender a Constituição não é ideologia. Atacar a Constituição é atacar a
sociedade brasileira e tentar impor um modelo político fascista ao país. A
política hoje dá guarida a pessoas que pensam dessa forma. E aí, sim, o campo
democrático que ocupa as cadeiras legislativas e executivas no Brasil afora
precisa lidar com nomes que expressam essa ruptura institucional: Sergio Moro,
Hamilton Mourão, Flávio e Eduardo Bolsonaro, Carla Zambelli, Ricardo Salles,
Damares Alves, Tarcísio de Freitas, Augusto Heleno, Braga Netto, Deltan
Dallagnol, Eduardo Pazuello, Anderson Torres e tantos outros. Esses nomes
representam a oposição política ao governo democraticamente eleito, mas também
representam um projeto que tentou desestruturar o sistema político brasileiro.
Eventualmente, esses nomes podem, inclusive, não
ter participação passível de responsabilização jurídica na intentona golpista
de 8 de janeiro. Porém, é papel do sistema político derrotar essas pessoas.
Essa é a tarefa da política brasileira. A política não deve centrar seus
esforços no funcionamento do sistema jurídico, porque a proteção da lei e da
democracia é papel primordial do Ministério Público e do Poder Judiciário.
Cabe destacar que as Forças Armadas não possuem
papel nenhum nesse debate. Os ex-militares que foram para a política devem ser
tratados como políticos, e os atuais militares que insistem no ativismo
político devem ser retirados de seus postos, uma vez qu e o cumprimento do
papel institucional das forças não demanda opinião sobre o governo ou sobre a
conjuntura política nacional.
Ao governo atual cabe, conforme opinou recentemente
o advogado Beto Vasconcelos, ex-secretário nacional de Justiça, o papel de
documentar e registrar historicamente as ações dos agentes públicos no
exercício de suas funções desde a r uptura institucional de 2016. É preciso
documentar e registrar historicamente o que aconteceu na intervenção militar no
Rio de Janeiro, quem mandou matar Marielle Franco, o que estava por trás dos
abusos da operação Lava Jato, o que aconteceu para viabilizar o crescimento do
garimpo ilegal e do desmatamento na Amazônia, qual foi o papel do governo na
condução do enfrentamento à pandemia, no desmonte das políticas sociais, em
especial das políticas de segurança alimentar, qual foi o comportamento do
Estado no aumento assombroso da vulnerabilidade dos povos indígenas e, por fim,
nos atos golpistas que ocorreram entre a eleição de 2022 e o dia 8 de janeiro
de 2023. Esses elementos servem a conceder responsabilização política aos
envolvidos nessa sequência abominável de tragédias. A sociedade tem o direito
de saber de forma inequí voca onde estavam e o que fizeram os agentes públicos
em todas essas situações.
Outro assunto, que se complementa à
responsabilidade política, é o da responsabilidade jurídica. Isso porque o
remédio para um governo ruim precisa ser, naturalmente, o sistema político, as
eleições e a democracia como um todo. O gov erno ruim que desestabiliza
ideológica, criminal e socialmente a sociedade deve também ser responsabilizado
juridicamente. E esse é papel do Poder Judiciário e do Ministério Público. Esse
é um elemento essencial para que se evite a repetição de tamanha ameaça à
sociedade.
Chegou o momento em que as instituições precisam
provar definitivamente que o Estado brasileiro e sua Constituição funcionam
independentemente de governo e da onda política dominante no país – essa é a
maturidade institucional que o B rasil precisa atingir. Por isso, o devido
processo legal precisa se impor sobre os agentes públicos que tinham o “poder da caneta” quando da ocorrência dessas tragédias todas.
O melhor meio de enfrentar quem quer desestabilizar
o funcionamento das instituições é o próprio funcionamento das instituições.
Esse é o teste fundamental do estado democrático de direito. Os ataques de 8 de
janeiro de 2023 nã ;o foram espontaneamente gerados, eles estão em um contexto
de uma série de crimes. E é preciso entender qual é o papel de Jair Bolsonaro
nesses crimes.
É importante relembrar a fatídica reunião ministerial
de 22 de abril de 2020. Bolsonaro, naquela oportunidade, disse: “porque se for
a esquerda, eu e uma porrada de vocês aqui têm que sair do Brasil, porque vamos
ser presos”. Naquela situa&cced il;ão, o ex-presidente falava sobre sua
reeleição e a necessidade de que fosse eleito alguém que não fosse de esquerda.
É interessante entender que, naquela altura, Bolsonaro não falou em perseguição
política que o levasse para a cadeia. Naquele momento, o então presidente
tentava intervir na Polícia Federal para impedir que as investigações sobre seu
filho Flávio Bolsonaro avançassem e para proteger seus familiares e amigos.
Dessa forma, apenas por esse ato, levando em conta
as inúmeras investigações que envolvem o ex-presidente, é muito importante
afirmar que estamos diante de um claro risco de fuga. Bolsonaro precisa ser
instado a voltar ao Brasil, voluntariamente ou não, ser processado, se
defender, ser julgado por seus atos e, se for condenado, cumprir com as
punições determinadas pelo Judiciário.
São dezenas de investigações que tiveram
substancial alteração com a saída do ex-presidente do Palácio do Planalto,
tanto pela perda de foro privilegiado como pelos acontecimentos que se
sucederam a partir da posse de Lula.
É possível estabelecer quatro categorias nas investigações
em andamento.
Há investigações de possíveis crimes contra a
administração pública, contra o estado democrático de direito, contra os
direitos huma nos e também crimes eleitorais. Ainda não é possível estabelecer
um rol completo dessas investigações porque faltam informações conclusivas
sobre vários aspectos.
Por isso, não se sabe exatamente qual é o grau
exato de participação de Bolsonaro
nesses crimes. E esse grau exato é o elemento
necessário para se estabelecer a culpabilidade e, por consequência, as
condenações. No entanto, a materialidade dos crimes e suas consequências são
evidentes.
Sobre os crimes eleitorais, houve a criação de um
sistema de disseminação de notícias falsas e de crimes de ódio no contexto das
eleições brasileiras de 2018, 2020 e 2022; abuso de poder político e econômico
na aprova&cc edil;ão de um pacote de benefícios financeiros a setores da
população semanas antes das eleições de 2022; uso da estrutura pública para a
realização das lives de campanha
do ex-presidente e no episódio da reunião com os embaixadores; e uma campanha
de difamação e de desestabilização do processo eleitoral com a disseminação de
mentiras sobre as urnas eletrônicas e questionamentos posteriores do resultado
eleitoral.
Os crimes eleitorais são complementados pelos
crimes cometidos contra o estado democrático de direito tanto antes quanto
depois das eleições. Aqui é essencial investigar e punir o desmando com o
dinheiro público no contexto do orçamento sec reto, situação em que a
destinação de bilhões de reais é simplesmente desconhecida. O orçamento secreto
foi fundamental para manter Jair Bolsonaro no poder. Em outras palavras, esse
esquema foi o responsável por evitar que o Congresso Nacional cumprisse seu
papel institucional de fiscalizar e eventualmente punir os desmandos de um
presidente da República; por isso, podemos estar diante de um crime contra o
estado democrático de direito. Outra questão inexplicada é a interferência
explícita do ex-presidente na Polícia Federal em diversas oportunidades.
Essa questão também se relaciona com a apuração
envolvendo agentes da própria Polícia Federal que se abstiveram do cumprimento
de suas funções na investigação de crimes próximos ao ex-presidente e sua
família. Houve a criação de uma estr utura paralela de inteligência (conforme
assumido pelo próprio ex-presidente) e é preciso entender o que exatamente essa
estrutura investigou nesse período.
Sobre os crimes contra a administração pública, é
preciso apurar no que consistiram os sigilos e as despesas do cartão de crédito
corporativo do ex-presidente operadas pelo ajudante de ordem Mauro Cesar
Barbosa Cid.
Também devem ser conclu& iacute;das as
investigações sobre o esquema de corrupção dos pastores do Ministério da
Educação e do sistema de uso de parte dos salários dos funcionários dos
gabinetes da família antes da eleição de 2018 com a participação de Fabrício
Queiroz. Diante da situação administrativa catastrófica revelada pela equipe de
transição do novo governo, há que se entender de quem partiram as orientações
para que processos administrativos fossem paralisados, estruturas de governo
desmobilizadas e de mudanças nos procedimentos de processamento de dados
socioeconômicos da população brasileira. Esse esforço precisa também da atuação
do Tribunal de Contas da União. Além disso, é importante dar andamento ao
resultado da CPI da pandemia, que apontou sérias quest& otilde;es
envolvendo agentes públicos no que diz respeito ao incentivo de uso de
medicamento ineficaz para o tratamento da Covid-19, ao processo de compra das
vacinas, de fornecimento de insumos hospitalares, em especial de cilindros de
oxigênio, cuja ausência trouxe graves consequências.
Esses elementos, sob o ponto de vista da
administração pública, se complementam com reais tragédias humanitárias que
aconteceram no Brasil em consequência de decisões de governo. Há severos
indícios de crime de genocídio cometido contra os povos indígenas tanto no caso
da pandemia quanto na questão dos yanomami e de outros povos isolados que foram
feridos de morte por conta das ações de desmonte da estrutura de proteção
social e ambiental. Augusto Heleno, com as autorizações de garimpo, e Damares
Alves, com a recomendação de que o governo não enviasse ajuda aos yanomami, são
atores centrais dessa tragédia que vitimou milhares de indígenas no Brasil. O
desmonte da estrutura de segurança alimentar (extinção do Conselho Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional, desmonte do Programa de Aquisição de
Alimentos e do estoque regulador) também foi responsável direto pela tragédia
da fome que se abateu sobre o Brasil. Esses elementos devem ser processados
pelo Judiciário brasileiro, mas também deverão ser objeto da devida ju risdição
internacional responsável por julgar crimes contra a humanidade, como é o caso
do genocídio.
Essa série de crimes tem grande conexão entre si e
o projeto de poder derrotado nas urnas em 2022. A violência, o descaso com o
povo, a humilhação e o assassinato de pessoas vulneráveis são o modus
operandi de um Brasil que teima em existir desde 1500. O funcionamento
das instituições para investigar e punir os responsáveis por esses crimes não é
revanchismo histórico, é um jeito de virarmos definitivamente essa página.
Estamos falando de memória, verdade e justiça e do quanto esses elementos são
fundamentais para evitar o ciclo insuportável de repetição de tragédias sociais
que abatem a história brasileira. A democracia não é um estado jurídico que
garante a existência de eleições de quatro em quatro anos. A democracia é uma
entidade que garante a existência da sociedade e do povo brasileiro e precisa
ser praticada com base nessa ideia pelos poderes da República e sobretudo pelo
povo, esse, sim, do qual emana o poder. Nã o é Deus nem o Brasil que estão
acima de tudo e de todos. É a verdade, cujo conhecimento liberta, mas também
prende aqueles que insistem em mentir e destruir a ideia de povo brasileiro.
*Antonio Carlos Souza de
Carvalho é advogado e cientista político
O caleidoscópico tempo presente https://bit.ly/3Ye45TD
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