03 fevereiro 2023

Cerco ao ex-presidente

Conhecereis a verdade e ela poderá levar Bolsonaro para a cadeia

O melhor meio de enfrentar quem quer desestabilizar o funcionamento das instituições é o próprio funcionamento das instituições. Esse é o teste fundamental do estado democrático de direito. Os ataques de 8 de janeiro de 2023 não foram espontaneamente gerados, eles estão em um contexto de uma série de crimes. E é preciso entender qual é o papel de Jair Bolsonaro nesses crimes
Antonio Carlos Souza de Carvalho/Le Monde Diplomatique


Menos de um mês depois de deixar a Presidência da República, os problemas de Bolsonaro com a justiça se avolumam e indicam a necessidade de forte posicionamento das instituições em defesa do estado democrático de direito e da Constituição.

Todo o funcionamento do sistema de justiça é um ato de proteção à sociedade. No momento em que as instituições deixam de funcionar, total ou parcialmente, abre-se uma fissura no sistema de proteção de direitos que precisa ser devidamente reparada. A velocidade com que o Brasil afundou numa crise humanitária é alarmante, e isso não é novidade em nossa história. Essa crise foi negligenciada e negada por Bolsonaro.

A repetição de comportamento de um governo que nega a realidade só é possível porque não se estabeleceu até hoje uma memória nacional a respeito do que significam governantes dessa laia. A frase “que não se esqueç a para que nunca mais aconteça” nunca foi tão necessária ao debate democrático brasileiro. Entre tantos fatores, é imperioso destacar que essa tragédia aconteceu porque a sociedade brasileira não se encontrou com seu passado e com as injustiças históricas cometidas pelos poderes instituídos política e economicamente. E, ao não se encontrar, criou espaço para que o poder não emanasse do povo e, assim, o elemento fundamental da concepção do Estado brasileiro foi enfraquecido.

Bolsonaro é a repetição de inúmeras ocasiões da história em que o poder deixou de emanar do povo. Ao selecionar uma parcela da população para ouvir e atender aos interesses, o ex-presidente se imputou em dois problemas: o polí tico e o jurídico. Politicamente, Bolsonaro foi o pior presidente desde a redemocratização porque atuou de forma sistemática para estabelecer um projeto de poder que não respeita a democracia, que ataca opositores e que entende que o “poder da caneta” é suficiente para determinar os rumos de uma sociedade.

E o problema político deve ser resolvido pela política. Primeiro, a população, nas urnas, expressou a vontade de trocar a mão que comanda a caneta. Agora, a sociedade civil precisa cumprir seu papel de dialogar e estabelecer um consenso a favor de um Estado cujo papel seja cumprir integralmente a Constituição. A defesa da democracia não pode ser papel exclusivo de um partido ou de um grupo político que disputa as eleições. Defender a Constituição não é ideologia. Atacar a Constituição é atacar a sociedade brasileira e tentar impor um modelo político fascista ao país. A política hoje dá guarida a pessoas que pensam dessa forma. E aí, sim, o campo democrático que ocupa as cadeiras legislativas e executivas no Brasil afora precisa lidar com nomes que expressam essa ruptura institucional: Sergio Moro, Hamilton Mourão, Flávio e Eduardo Bolsonaro, Carla Zambelli, Ricardo Salles, Damares Alves, Tarcísio de Freitas, Augusto Heleno, Braga Netto, Deltan Dallagnol, Eduardo Pazuello, Anderson Torres e tantos outros. Esses nomes representam a oposição política ao governo democraticamente eleito, mas também representam um projeto que tentou desestruturar o sistema político brasileiro.

Eventualmente, esses nomes podem, inclusive, não ter participação passível de responsabilização jurídica na intentona golpista de 8 de janeiro. Porém, é papel do sistema político derrotar essas pessoas. Essa é a tarefa da política brasileira. A política não deve centrar seus esforços no funcionamento do sistema jurídico, porque a proteção da lei e da democracia é papel primordial do Ministério Público e do Poder Judiciário.

Cabe destacar que as Forças Armadas não possuem papel nenhum nesse debate. Os ex-militares que foram para a política devem ser tratados como políticos, e os atuais militares que insistem no ativismo político devem ser retirados de seus postos, uma vez qu e o cumprimento do papel institucional das forças não demanda opinião sobre o governo ou sobre a conjuntura política nacional.

Ao governo atual cabe, conforme opinou recentemente o advogado Beto Vasconcelos, ex-secretário nacional de Justiça, o papel de documentar e registrar historicamente as ações dos agentes públicos no exercício de suas funções desde a r uptura institucional de 2016. É preciso documentar e registrar historicamente o que aconteceu na intervenção militar no Rio de Janeiro, quem mandou matar Marielle Franco, o que estava por trás dos abusos da operação Lava Jato, o que aconteceu para viabilizar o crescimento do garimpo ilegal e do desmatamento na Amazônia, qual foi o papel do governo na condução do enfrentamento à pandemia, no desmonte das políticas sociais, em especial das políticas de segurança alimentar, qual foi o comportamento do Estado no aumento assombroso da vulnerabilidade dos povos indígenas e, por fim, nos atos golpistas que ocorreram entre a eleição de 2022 e o dia 8 de janeiro de 2023. Esses elementos servem a conceder responsabilização política aos envolvidos nessa sequência abominável de tragédias. A sociedade tem o direito de saber de forma inequí voca onde estavam e o que fizeram os agentes públicos em todas essas situações.

Outro assunto, que se complementa à responsabilidade política, é o da responsabilidade jurídica. Isso porque o remédio para um governo ruim precisa ser, naturalmente, o sistema político, as eleições e a democracia como um todo. O gov erno ruim que desestabiliza ideológica, criminal e socialmente a sociedade deve também ser responsabilizado juridicamente. E esse é papel do Poder Judiciário e do Ministério Público. Esse é um elemento essencial para que se evite a repetição de tamanha ameaça à sociedade.

Chegou o momento em que as instituições precisam provar definitivamente que o Estado brasileiro e sua Constituição funcionam independentemente de governo e da onda política dominante no país – essa é a maturidade institucional que o B rasil precisa atingir. Por isso, o devido processo legal precisa se impor sobre os agentes públicos que tinham o “poder da caneta” quando da ocorrência dessas tragédias todas.

O melhor meio de enfrentar quem quer desestabilizar o funcionamento das instituições é o próprio funcionamento das instituições. Esse é o teste fundamental do estado democrático de direito. Os ataques de 8 de janeiro de 2023 nã ;o foram espontaneamente gerados, eles estão em um contexto de uma série de crimes. E é preciso entender qual é o papel de Jair Bolsonaro nesses crimes.

É importante relembrar a fatídica reunião ministerial de 22 de abril de 2020. Bolsonaro, naquela oportunidade, disse: “porque se for a esquerda, eu e uma porrada de vocês aqui têm que sair do Brasil, porque vamos ser presos”. Naquela situa&cced il;ão, o ex-presidente falava sobre sua reeleição e a necessidade de que fosse eleito alguém que não fosse de esquerda. É interessante entender que, naquela altura, Bolsonaro não falou em perseguição política que o levasse para a cadeia. Naquele momento, o então presidente tentava intervir na Polícia Federal para impedir que as investigações sobre seu filho Flávio Bolsonaro avançassem e para proteger seus familiares e amigos.

Dessa forma, apenas por esse ato, levando em conta as inúmeras investigações que envolvem o ex-presidente, é muito importante afirmar que estamos diante de um claro risco de fuga. Bolsonaro precisa ser instado a voltar ao Brasil, voluntariamente ou não, ser processado, se defender, ser julgado por seus atos e, se for condenado, cumprir com as punições determinadas pelo Judiciário.

São dezenas de investigações que tiveram substancial alteração com a saída do ex-presidente do Palácio do Planalto, tanto pela perda de foro privilegiado como pelos acontecimentos que se sucederam a partir da posse de Lula.

É possível estabelecer quatro categorias nas investigações em andamento.

Há investigações de possíveis crimes contra a administração pública, contra o estado democrático de direito, contra os direitos huma nos e também crimes eleitorais. Ainda não é possível estabelecer um rol completo dessas investigações porque faltam informações conclusivas sobre vários aspectos.

Por isso, não se sabe exatamente qual é o grau exato de participação de Bolsonaro nesses crimes. E esse grau exato é o elemento necessário para se estabelecer a culpabilidade e, por consequência, as condenações. No entanto, a materialidade dos crimes e suas consequências são evidentes.

Sobre os crimes eleitorais, houve a criação de um sistema de disseminação de notícias falsas e de crimes de ódio no contexto das eleições brasileiras de 2018, 2020 e 2022; abuso de poder político e econômico na aprova&cc edil;ão de um pacote de benefícios financeiros a setores da população semanas antes das eleições de 2022; uso da estrutura pública para a realização das lives de campanha do ex-presidente e no episódio da reunião com os embaixadores; e uma campanha de difamação e de desestabilização do processo eleitoral com a disseminação de mentiras sobre as urnas eletrônicas e questionamentos posteriores do resultado eleitoral.

Os crimes eleitorais são complementados pelos crimes cometidos contra o estado democrático de direito tanto antes quanto depois das eleições. Aqui é essencial investigar e punir o desmando com o dinheiro público no contexto do orçamento sec reto, situação em que a destinação de bilhões de reais é simplesmente desconhecida. O orçamento secreto foi fundamental para manter Jair Bolsonaro no poder. Em outras palavras, esse esquema foi o responsável por evitar que o Congresso Nacional cumprisse seu papel institucional de fiscalizar e eventualmente punir os desmandos de um presidente da República; por isso, podemos estar diante de um crime contra o estado democrático de direito. Outra questão inexplicada é a interferência explícita do ex-presidente na Polícia Federal em diversas oportunidades.

Essa questão também se relaciona com a apuração envolvendo agentes da própria Polícia Federal que se abstiveram do cumprimento de suas funções na investigação de crimes próximos ao ex-presidente e sua família. Houve a criação de uma estr utura paralela de inteligência (conforme assumido pelo próprio ex-presidente) e é preciso entender o que exatamente essa estrutura investigou nesse período.

Sobre os crimes contra a administração pública, é preciso apurar no que consistiram os sigilos e as despesas do cartão de crédito corporativo do ex-presidente operadas pelo ajudante de ordem Mauro Cesar Barbosa Cid.

Também devem ser conclu& iacute;das as investigações sobre o esquema de corrupção dos pastores do Ministério da Educação e do sistema de uso de parte dos salários dos funcionários dos gabinetes da família antes da eleição de 2018 com a participação de Fabrício Queiroz. Diante da situação administrativa catastrófica revelada pela equipe de transição do novo governo, há que se entender de quem partiram as orientações para que processos administrativos fossem paralisados, estruturas de governo desmobilizadas e de mudanças nos procedimentos de processamento de dados socioeconômicos da população brasileira. Esse esforço precisa também da atuação do Tribunal de Contas da União. Além disso, é importante dar andamento ao resultado da CPI da pandemia, que apontou sérias quest& otilde;es envolvendo agentes públicos no que diz respeito ao incentivo de uso de medicamento ineficaz para o tratamento da Covid-19, ao processo de compra das vacinas, de fornecimento de insumos hospitalares, em especial de cilindros de oxigênio, cuja ausência trouxe graves consequências.

Esses elementos, sob o ponto de vista da administração pública, se complementam com reais tragédias humanitárias que aconteceram no Brasil em consequência de decisões de governo. Há severos indícios de crime de genocídio cometido contra os povos indígenas tanto no caso da pandemia quanto na questão dos yanomami e de outros povos isolados que foram feridos de morte por conta das ações de desmonte da estrutura de proteção social e ambiental. Augusto Heleno, com as autorizações de garimpo, e Damares Alves, com a recomendação de que o governo não enviasse ajuda aos yanomami, são atores centrais dessa tragédia que vitimou milhares de indígenas no Brasil. O desmonte da estrutura de segurança alimentar (extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, desmonte do Programa de Aquisição de Alimentos e do estoque regulador) também foi responsável direto pela tragédia da fome que se abateu sobre o Brasil. Esses elementos devem ser processados pelo Judiciário brasileiro, mas também deverão ser objeto da devida ju risdição internacional responsável por julgar crimes contra a humanidade, como é o caso do genocídio.

Essa série de crimes tem grande conexão entre si e o projeto de poder derrotado nas urnas em 2022. A violência, o descaso com o povo, a humilhação e o assassinato de pessoas vulneráveis são o modus operandi de um Brasil que teima em existir desde 1500. O funcionamento das instituições para investigar e punir os responsáveis por esses crimes não é revanchismo histórico, é um jeito de virarmos definitivamente essa página. Estamos falando de memória, verdade e justiça e do quanto esses elementos são fundamentais para evitar o ciclo insuportável de repetição de tragédias sociais que abatem a história brasileira. A democracia não é um estado jurídico que garante a existência de eleições de quatro em quatro anos. A democracia é uma entidade que garante a existência da sociedade e do povo brasileiro e precisa ser praticada com base nessa ideia pelos poderes da República e sobretudo pelo povo, esse, sim, do qual emana o poder. Nã o é Deus nem o Brasil que estão acima de tudo e de todos. É a verdade, cujo conhecimento liberta, mas também prende aqueles que insistem em mentir e destruir a ideia de povo brasileiro.
 
*Antonio Carlos Souza de Carvalho é advogado e cientista político

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