Quem são os corpos matáveis para
o projeto liberal-fascista
A lógica capitalística que pensa corpos
como “capital humano” enxerga nos povos originários, que não organizam sua vida
na dinâmica de acumulação, um peso social. Os Yanomami mostram que é preciso
romper com essa ideia
Túlio
Batista Franco/OutraSaúde
“Isso [pensar o
futuro] implica responsabilidade, em não negociar mais nada, em não aceitar os
termos que o capitalismo impõe: de sermos uma sociedade da mercadoria e
pronto.”
(Ailton Krenak)
Nesta semana o
Brasil e o mundo viram estarrecidos os corpos famélicos que habitam o
território Yanomami, em Roraima. Desnutrição grave associada a outras doenças
abraçou parte significativa da população indígena em todas as faixas etárias,
mas crianças e idosos são os mais atingidos. O nome para designar este povo,
“yanomami”, foi produzido pelos antropólogos a partir da palavra yanõmami que,
na expressão yanõmami thëpë, significa “seres humanos”.
Para o governo
Bolsonaro de característica liberal-fascista, apesar do nome Yanomami, “seres
humanos” é uma expressão em que ele não reconhece aos povos originários.
Arrisco dizer que este governo se associa à versão do neoliberalismo, que
qualifica o corpo como um “capital humano”, e como tal ele é monetarizável, ou
seja, se atribui um valor aos corpos. O “capital humano” é calculado com base
na sua origem social, padrão de consumo, renda, formação escolar, cor, gênero,
etnia, etc… A sociedade financista se firma sobre estes conceitos, e se
consolida na sociedade ao produzir um novo protagonista social, ao
ressignificar o sujeito econômico cujo centro da sua atividade é a
“concorrência”. Assim, o novo sujeito social, liberal, passa a ser o centro
nevrálgico de disseminação do ideário liberal, e sua prática na microfísica das
relações humanas. Foucault foi profético no seu curso no Collège de France em
1978, “O Nascimento da Biopolítica”, ao dar visibilidade à genealogia do
neoliberalismo, e associá-lo à produção da vida, uma biopolítica associada à
acumulação, competição, ganância, egoísmo e dinâmica concorrencial na vida
cotidiana.
O “sujeito da
concorrência” se institui a partir de um vigoroso processo de subjetivação
liberal-fascista, que tem como instrumentos a linguagem direta e metafórica
popular, mídias de fácil consumo abastecidas por “Fake News”, produção do
inimigo, persecução e ódio. A subjetividade capitalística constitui modos de
vida na população que leva à disseminação da lógica financista na economia, e
instaura o fascismo, não só como regime político, mas, constitui no cotidiano
“uma vida fascista”, onde as pessoas passam a operar sua vida tendo como
referência os valores, pensamentos, ações que sustentam todo tipo de
discriminação, tendo o racismo à frente, no caso brasileiro. Assim, o modo de
vida fascista se institui entre nós.
“O povo da
mercadoria’. É assim que o grande Xamã Yanomami Davi Kopenawa reconhece as
pessoas que enxergam nas florestas os insumos que são precificáveis, o povo que
“come tudo que vê pela frente”, os rios, montanhas, árvores, o ar. De forma
predatória avançam com fogo sobre as florestas, formam imensas cicatrizes na
terra em busca do ouro, deixam as montanhas sangrando, enfim, como nas palavras
do Xamã, vão produzindo a “queda do céu”, o fim do mundo para os Yanomami. O
imenso bioma amazônico com sua materialidade e espiritualidade, significa o
mundo, e sua destruição levará ao fim do povo que ali habita. O pensamento
liberal-fascista de tão obtuso e precário, é incapaz de reconhecer que a pessoa
humana é parte constitutiva da natureza, e não sobreviverá sem que esta esteja
viva e produtiva.
A lógica
capitalística que pensa os corpos como “capital humano”, enxerga nos povos
originários, que não organizam sua vida na dinâmica de acumulação, como vidas
que por isto mesmo representam um peso social ao estado, e então, são
dispensáveis, elimináveis, matáveis.
É com este
pensamento que o governo liberal-fascista no Brasil pensou a política para os
Yanomami, ou seja, sua eliminação facilitaria o almejado objetivo de apossar
das suas terras, e explorar o ouro presente no subsolo. Mesmo que isto custasse
as milhares de vidas humanas, silvestres, enfim, a destruição do bioma
amazônico na região. O abandono é uma forma de homicídio, em se tratando de um
povo, é genocídio. A exposição do povo Yanomami à inanição, violência, mercúrio
e outros metais, maus tratos, malária, pneumonia, Covid-19, e outros males
mortais foi um projeto de extermínio. Esta necropolítica ceifou a vida de 570
crianças, que morreram de causas evitáveis, dados subnotificados segundo
indigenistas, assim como centenas de adultos foram mortos, debilitados,
impedidos que estiveram de realizar as atividades corriqueiras de plantio, caça
e pesca.
Toda trágica
experiência atual dos Yanomami, a que o mundo assiste horrorizado, tem sua
origem e fundamento no neoliberalismo, irmão siamês do fascismo. Um mundo de
paz e harmonia, equilíbrio climático, bem-viver, será uma conquista que virá
com o esforço coletivo de defesa da democracia, e impedimento a qualquer
tentativa em estabelecer um governo autocrático e liberal de se estabelecer no
Brasil. Estamos longe disto, mas o futuro começa a ser construído desde já.
Os esforços atuais
de reconstrução do país devem ser ao mesmo tempo a reconstrução de um povo com
base no seu próprio protagonismo. A democracia direta precisa estar associada à
democracia representativa, trazendo as comunidades para opinarem sobre seu
próprio futuro. Esse fazer cotidiano dos grupos e movimentos sociais é um
aprender permanente com as experiências. A política tem uma dimensão pedagógica
que lhe constitui fortemente, no modo freiriano de experimentar o mundo:
aprender fazendo, lutando, esperançando, sempre no gerúndio, porque é um
acontecendo, permanente e ilimitado.
É assim que se
pensa ser possível promover uma ruptura com o pensamento e subjetividade
liberal. O antídoto ao “sujeito liberal”, passa pela constituição do “sujeito
solidário”, formado com base na ideia de comunidade, produção do comum, onde
estão presentes práticas de vizinhança, proximidade não apenas territorial, mas
de pensamento. Os Yanomami assim como outros povos originários podem nossos
mestres nessa construção. Reconhecer que eles são os guardiões da nossa casa,
que a floresta amazônica só existe porque eles estão lá, e que o “futuro é ancestral”
por força de tornar possível a preservação da vida no planeta.
Os corpos infantis
fragilizados das crianças Yanomami, sangram também a nossa alma. Serão
dispositivos para produzir potência, força motriz social e histórica para a
necessária e radical mudança do país e de seu povo.
As
múltiplas faces do que acontece https://bit.ly/3Ye45TD
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