Radicalização da direita passa por influenciadores
considerados moderados, diz pesquisadoraMichele Prado, que pesquisa
extremismo online, diz que atores digitais que não são considerados ligados a
essa mobilização estão entre principais introdutores de teorias conspiratórias
Uirá
Machado/Folha de S. Paulo
Fazia mais de dez anos que Michele Prado havia mergulhado no ambiente online da direita quando
decidiu mudar de vida. Não foi fácil. Ela precisava largar o emprego na área de
decoração e romper com pessoas que, àquela altura, respondiam pela quase
totalidade de suas amizades.
"Eu tinha duas opções: ficar calada e manter a amizade com
as pessoas, fingindo que nada estava acontecendo, ou ser honesta
intelectualmente e ficar com as consequências", diz Prado, 44.
Ela escolheu a segunda opção. Mudou-se para o interior da Bahia
e começou a pesquisar. Queria entender o que estava por trás das mensagens que
pipocavam num grupo de WhatsApp do qual ela começou a participar após a eleição
de Jair Bolsonaro (PL),
em 2018.
"Eu via gente dizendo que Bolsonaro deveria dar um
golpe, que teria adesão popular", conta.
"Vi que não era uma direita democrata, moderada. Eram
pessoas com rejeição à democracia
liberal, com muitas coisas de desrespeito à dignidade humana."
Durante seus estudos, entendeu que muitas das teorias
conspiratórias que circulavam no WhatsApp eram teorias antissemitas
disfarçadas com outras palavras. Ficou chocada, porque vinham de
pessoas que ela considerava intelectuais e suas amigas.
Chamado
"Internet livre", o grupo agregava diversos influenciadores da
direita. "Só os grandões. Tinha deputado, jornalista, gente de
organizações de direita etc.", afirma Prado, que em 2021 publicou o livro
"Tempestade Ideológica" (Lux) e se prepara para lançar "Red Pill
– Radicalização e Extremismo".
"Esses
influenciadores da direita, principalmente esses que o pessoal acha moderados,
são os principais introdutores desse tipo de teoria conspiratória", diz a
pesquisadora. "E isso continua radicalizando as pessoas."
No ano passado, após o ex-deputado federal Roberto Jefferson (PTB) atacar policiais,
a sra. disse que não se tratava de episódio isolado.
Eventos como a tentativa de ato terrorista no aeroporto de Brasília e a
intentona golpista de 8 de janeiro estavam no seu radar? A gente
está vendo no Brasil um processo de radicalização em massa que ocorre
essencialmente online, especialmente quando a gente está se referindo às várias
correntes da extrema direita. O próprio bolsonarismo é um movimento que surgiu
online.
Dentro desse ecossistema da direita, os conceitos, as teorias
conspiratórias, as pautas e os métodos são copiados da alt-right,
dos Estados Unidos [movimento de extrema direita], e da far-right internacional
como um todo [junta direita radical e extrema direita]. Então era óbvio que, se
estávamos passando por um processo de mais ou menos 15 anos de radicalização
online, e se lá nos Estados Unidos teve a
invasão do Capitólio, aqui não seria diferente.
Lá no meu livro, "Tempestade Ideológica", eu falei que
a gente teria algo similar aqui, porque são as mesmas ideias que estão
radicalizando e mobilizando essas pessoas. E essas pessoas estão sendo
capturadas dentro de um sistema de crenças que rejeita a democracia liberal de
forma extrema, inclusive com adoção da violência.
Aqui no Brasil, vimos exemplos
de pessoas em acampamentos golpistas acreditando em
teorias conspiratórias sem nenhum lastro na realidade. Por que
que isso acontece? A nova direita do Brasil é toda baseada em
teorias conspiratórias de extrema direita. Todo o universo imaginário dessas
pessoas já está contaminado com a
mentalidade conspiratória.
Recentemente, Renan Santos, que é o coordenador do MBL [Movimento Brasil Livre], compartilhou uma
teoria conspiratória de cunho antissemita, racista, que tem alto potencial para
violência, que é a teoria da grande substituição [segundo a qual as elites
estão substituindo a população europeia branca por povos não europeus]. Só que
ele compartilhou com o nome de "transplante populacional".
Esses influenciadores da direita, principalmente esses que o
pessoal acha moderados, são os principais introdutores desse tipo de teoria
conspiratória. E as pessoas que começam a ser capturadas por isso ficam presas
nessas câmaras de eco e formam uma identidade coletiva.
m que sentido? Se você olhar as imagens que
foram disponibilizadas da invasão [em Brasília], você observa que a maioria das pessoas está
gravando, fazendo selfie. Isso é um recurso de identidade para as
pessoas que estão ali. Elas põem na câmara de eco, onde elas se acham pertencentes
a algo muito maior. Elas saem do anonimato. Elas têm uma identidade coletiva
construída à base de teorias conspiratórias que desumanizam outros grupos e que
têm total rejeição à democracia liberal.
Não é só extrema direita que está capturada pela mentalidade
conspiratória. É a direita em si. Porque são os influenciadores, talvez por
desinformação de muita gente, que continuam até agora a disseminar teorias
conspiratórias, mas com outras palavras, com eufemismos, como no caso do
"transplante populacional". E isso continua radicalizando as pessoas.
No 8 de janeiro, as pessoas de fato achavam que iriam
derrubar o governo? Não era um grupo homogêneo. Ali tinha
muitos oportunistas, pessoas que viram a confusão e aproveitaram para tirar
algum proveito. Mas a maior parte realmente acreditava que aquele ato de
violência iria provocar a interrupção da ordem democrática.
Aqueles manifestantes que estavam
acampados em frente a quartéis potencializaram o extremismo
violento. Quando você está dentro da radicalização online, você não tem todos
os meios para cometer o ato. No acampamento, os manifestantes tiveram uma
radicalização híbrida, online e offline. Isso aumenta o investimento emocional
no extremismo violento.
Como se fosse realmente uma incubadora para a ação violenta. E quando aquilo foi permitido
pelas Forças Armadas e pelas demais instituições, as pessoas se
sentiram mais empoderadas para considerar a solução da violência como legítima.
Logo após os ataques, a sra.
afirmou que a ação não se restringiria a Brasília. No entanto, não houve mais
nada tão expressivo. Por quê? Eu acho que é momentâneo, porque
a mobilização continua. As pessoas ainda não estão desengajadas, não estão
desligadas. O volume de pessoas presas dá uma atenuada no ímpeto de quem
eventualmente poderia querer continuar com esse tipo de ataque. Mas pode
esperar que vai continuar. Não vai parar.
A atuação do Bolsonaro no fim
do mandato foi criticada por bolsonaristas. Isso vai fazer com que o
bolsonarismo fique mais fraco? Houve uma decepção com
Bolsonaro. Para muitas dessas pessoas, ele não foi extremista o
suficiente, não estava representando o que eles acreditam ser uma
direita. Então elas vão buscar outro ídolo, outro avatar, outro candidato para
suprir essa necessidade. A extrema direita no Brasil não se resume ao Bolsonaro
ou ao bolsonarismo. É maior. Eles vão se reagrupar, como já está acontecendo.
Qual é a sua avaliação sobre a
reação institucional ao extremismo, sobretudo a do Supremo Tribunal Federal? Só
chegamos a essa situação porque as outras instituições foram muito omissas.
Foram muito improdutivas, inconsequentes e irresponsáveis. Porque houve muitos
alertas a respeito do processo de radicalização.
Cabe aos parlamentares exigir das agências de inteligência
relatórios de monitoramento do extremismo violento no Brasil, por exemplo.
Pedir relatórios a respeito da infiltração de extremistas em forças militares.
Nada disso foi feito nos últimos anos. Então sobrou para uma corte [o STF]
tomar conta desse problema sozinho, o que a torna um alvo.
O que o Brasil deveria fazer
para combater o crescimento da violência extremista? A gente
tem que pensar em formas como os programas de PCVE [prevenção e combate ao
extremismo violento, na sigla em inglês], que existem em outros países. O
Brasil está uns 15 anos atrasado nisso. Mas uma coisa importante de dizer é que
não abarca só a extrema direita. Precisa ter disposição de abordar todos os
extremismos, da direita à esquerda. Não pode pensar com a perspectiva
político-eleitoral.
Antes de olhar para a extrema
direita como um objeto de pesquisa, quanto tempo a sra. frequentou esses grupos
como uma participante regular, por assim dizer? Era um
ecossistema, um ambiente. Não era um grupo específico. Eu sempre fui de
direita, minha vida inteira. Hoje não sou mais. Muita coisa aconteceu e eu acho
que estou bem ao centro. Mas em 2004, por exemplo, eu já estava no Orkut olhando
esses influenciadores.
Eu não tinha ainda a visão "direita X esquerda". Eu
era só uma pessoa que não votava no PT. Ou melhor, poderia votar no PT se eu achasse que
as propostas eram boas, mas eu preferia o PSDB. Passei a primeira década dos anos 2000 online,
conversando com pessoas que também não
votavam no PT. Não eram pessoas de extrema direita, pelo menos não
que eu soubesse na época. Só depois que eu fui recordar algumas coisas.
Depois, ali por volta de 2010, o boom da nova direita, Olavo de Carvalho,
os novos livros, tudo isso eu acompanhei como espectadora. Em 2018, votei no
Bolsonaro no segundo turno, porque eu era antipetista radical.
E no primeiro turno? Acabei votando no João Amoêdo [então
no Partido Novo]. Bolsonarista mesmo eu nunca fui. Logo depois, uma moça que
conheci no Facebook, totalmente radicalizada na extrema direita, me colocou num
grupo de WhatsApp chamado "Internet livre". Era um grupo só com
influenciadores, só com os grandões. Tinha deputado, jornalista, gente de
organizações de direita etc.
E eu fiquei observando. Eu via gente dizendo que Bolsonaro
deveria dar um golpe, que teria adesão popular. Fiquei observando aqueles
comentários internos e vi que tinha alguma coisa muito sinistra. Percebi que o
grupo estava radicalizando as pessoas.
Por isso a sra. decidiu
romper? Eu discuti com essas pessoas, fiz barraco. Então decidi estudar,
pesquisar, porque eu já via muito sinais acontecendo e eu tentava entender o
que era aquilo. Quando eu cheguei nesses influenciadores dentro desse grupo,
ficou tudo muito claro para mim. E eu vi que não era uma direita democrata,
moderada, nada disso.
Eram pessoas com rejeição à democracia liberal, com muitas
coisas de desrespeito à dignidade humana. Eu chutei o pau na barraca, foram
discussões homéricas, que sempre acabavam em misoginia.
A gente conta nos dedos quem a gente pode falar que é direita
moderada no Brasil, democrata. Em quem você pensar de influenciadores digitais
de direita que você acha moderados, você pode colocar todos dentro de um balaio
da far-right, porque todos eles trazem conceitos da direita radical e da
extrema direita transnacional.
Durante suas pesquisas, qual
foi sua maior surpresa? A primeira coisa que me deixou
chocada foi ver como eles protegem os erros uns dos outros. Por exemplo, quando
alguém aponta algo que está errado, nenhum deles analisa o argumento. Se um
deles falar que a pessoa está errada, todos passam a atacar aquela pessoa.
Outra coisa chocante foi entender que as teorias disseminadas
por eles eram teorias antissemitas. Porque eram pessoas que eu considerava
minhas amigas. Eu tentava alertar uma pessoa no grupo, mas ela dizia:
"Não, você está viajando". Aí eu chamava outro influenciador, e ele
dizia que eu estava maluca, que eu não entendia bem o que estava acontecendo.
Então eu tinha duas opções: ou ficar calada e manter a amizade
com as pessoas, fingindo que nada estava acontecendo, ou ser honesta
intelectualmente e ficar com as consequências. Eu optei pela segunda opção, que
foi mais difícil, porém mais necessária.
Michele Prado é pesquisadora da
extrema direita, é autora dos livros "Tempestade Ideológica" (Lux) e
"Red Pill – Radicalização e Extremismo" (lançamento em breve)
Águas passadas às vezes movem moinho https://bit.ly/3Ye45TD
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