Recusei chamado de Zé Celso para atuar porque fiquei apavorada
Ele tinha a capacidade de olhar uma peça de teatro e não vê-la empoeirada no passado, porque falava do agora
Fernanda Torres/Folha de S. Paulo
É uma loucura, o casamento de Zé Celso com Marcelo [Drummond], esses xamãs que se transformam em algo maior do que eles mesmos. Fico pensando que Zé casou com Marcelo concluindo um ciclo. Aquele casamento tão perto deste acidente tão trágico parece uma coisa de Shiva [deusa hindu]. Parece essa coisa do fogo, de um ser como eles. Ele ter concluído isso um pouco antes de ir é muito impressionante.
Me lembro [da montagem do Teatro Oficina] de "Os Sertões", que começava com Zé atravessando com os atores aquele corredor e falando da parede que eles queriam destruir para alcançar o parque do Bexiga. Essa é a impressão dele, de que o Oficina não é apenas um bibelô, mas compreende a restauração do Bexiga e que arte, cultura e natureza são ligadas.
O Sesc remontou "O Rei da Vela". Zé sempre coloca o que é o atual em cena. Tinha o miliciano [na peça]. Ele tinha a capacidade de olhar uma peça de teatro e não vê-la empoeirada no passado. Não era algo parado que você vai remontar. Era algo que falava do agora. Isso é uma compreensão de teatro e de arte muito profunda.
Os atores sabiam o que estavam falando, e ao mesmo tempo aquilo era um ritual. É uma compreensão em muitos níveis do que é a arte.
Acho que São Paulo deve ao Zé o parque do Bexiga, porque não é algo para ele, para o Teatro Oficina, para a pesquisa dele. É algo para a cidade, para o mundo. O Oficina não é um teatro fechado em si mesmo no próprio ego. É um teatro ativo e operante na cidade, no país. Não há como não ter o parque do Bexiga ali.
A reencenação de "O Rei da Vela" é extraordinária, como "Os Sertões" é extraordinário, como "Hamlet" é extraordinário. Nem sempre eu estava em São Paulo, mas era sempre um acontecimento ir ao Oficina.
Lina Bo Bardi [arquiteta do Oficina] e a árvore benzida, tudo tem um significado maior do que a própria coisa quando se trata do Zé. Isso é uma noção de arte. Não é uma arte utilitária, ególatra, pequenininha. É uma arte gigante o que ele propõe. O Teatro Oficina é uma igreja, um lugar sagrado.
Luís Antônio Martinez Corrêa, irmão do Zé, me chamou para fazer "Lulu", [peça do dramaturgo alemão Frank] Wedekind, antes de morrer. Essas coisas que envolvem o Zé extrapolam a ficção. Um ano depois, Zé estava voltando para o Brasil. Ele quis fazer "Lulu" na data de um ano da morte do Luís. E ele me chamou para fazer em praça pública. Eu tinha 18 anos e fiquei apavorada, com medo. Não fui.
Há dois anos, Zé disse para mim: "eu fiquei com ódio de você, porque era um negócio superimportante". Mas eu fiquei com medo. Ele era tão carinhoso. É uma dessas pessoas que são maiores do que a própria vida.
Eu tive uma distância do Zé. Durante muito tempo tinha medo dele. Depois, fui me aproximando. O último ato que tive com ele foi quando minha mãe [a atriz Fernanda Montenegro] me ligou e falou: "o que a gente dá para o Marcelo e o Zé no casamento?" Eu falei "mãe, vamos dar uma árvore".
Teve um mandato de segurança proibindo que plantassem a árvore. É uma coisa incrível. Era um presente simbólico, claro, e tinha a ver com o parque do Bexiga e a continuidade. Tudo isso estava neste presente. Zé entendeu imediatamente, e imediatamente já tinha um mandato de segurança contra a árvore.
A coisa teatral já se estabelece, já parece uma peça do [dramaturgo alemão Bertolt] Brecht. Brecht escreveria uma peça sobre isso. Isso é o poder do Zé. Muito impressionante.
Cida Pedrosa conta sobre a arte de Lia de Itamaracá https://tinyurl.com/bddu74ku
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