Na Interpoética:
1964: Golpe também na poesia
por Marcelo Mário de Melo
Além de antidemocrático, antipopular e antinacional, o golpe de 1964 foi também antipoético. No dia primeiro de abril vi tombar na passeata, atingido por tiros de mosquetão, o companheiro Jonas Barros, cantando o hino nacional. Jovem militante comunista do Colégio Estadual de Pernambuco, Jonas escrevia poemas de muita sensibilidade e leveza.Também foram fuzilados Ivan Aguiar, comunista de Palmares e aprovado no vestibular para Engenharia, um homem e uma mulher não identificados. A bandeira nacional restou no chão enxovalhada, escapando das mãos do estudante de jornalismo Ivanildo Sampaio, na correria com os manifestantes para escapar das balas.
Os poetas Ângelo Monteiro e Albérgio Maia de Farias, que tinha 16 anos, foram presos no DOPS. Um dia, Albérgio foi comigo à Galeria de Arte, localizada numa estrutura de cimento construída sobre o Rio Capibaribe, em frente aos Correios. Emocionado, deixou pregado na paredes um poema de homenagem a Jonas – habituê daquele espaço - que começava assim: “Na galeria de arte/há um banco de saudade/e há gestos de futuro/quebrando a serenidade.”
Para comemorar a libertação de Newton Farias, militante bancário, irmão de Albérgio, foi marcada uma farra secreta nos fundos da venda do Velho Pires, no bairro da Soledade. Entre cervejas, canções e poemas, Rui Alencar sentenciou: “as noites de sábado dos poetas/alimentam a resistência dos patriotas.”
Estudantes de esquerda faziam o jornal O Secundarista, com boa tiragem e impresso em cores, idealizado e articulado por José Fortuna de Melo, meu irmão, o meu nome constando como secretário, editado por Rômulo Lins, onde publicavam poemas Albérgio Maia de Farias, Ângelo Monteiro, Marcus Accioly, Anamárcia Veinsenher, Luis Carlos Duarte, Rômulo Lins, Diógenes Caldas e outros. O jornal não pôde mais ser editado e os seus responsáveis e colaboradores que não foram presos tiveram de se esconder da repressão ou calar a voz.
Ângelo Monteiro incorporou-se às atividades políticas da esquerda e desenvolveu uma intensa militância estudantil, marcada pela declamação de poemas desse teor: “E os verdadeiros cristãos/de fé robusta e viril/ com o cano do seu fuzil/farão o sinal da cruz” .Também fazia longos discursos previamente decorados: “Como católico, ouço a voz de Sua Santidade o papa. Como revolucionário, ouço a voz de sua Santidade o povo.” Alberto Cunha Melo e Jaci Bezerra acompanhavam a esquerda nas disputas estudantis. Depois do golpe, Jaci editou e distribuiu no Colégio Estadual de Pernambuco um jornal mimeografado intitulado Letras.
Um subproduto poético publicado no Suplemente Literário do Diário de Pernambuco, em 1965, foi objeto de gozação de Stanislaw Ponte Preta na sua coluna na Última Hora do Rio. Era um longo texto do tenente-coronel Dácio Vassimom, chefe do estado maior do IV Exército, louvando a Cruzada Democrática Feminina com coisas assim: “pelas ruas do Recife desfilando/a corja comunista desacata/sem temer uma bala ou um sopapo/a lembrar o que foi Tejucupapo”. Nas citações que fez, Stanislaw não se referiu a versos: falou em pedaços.
Na clandestinidade, de vez em quando eu me lembrava da tirada de Rui Alencar sobre as noites de sábado dos poetas. De março de 71 a abril de 79 foram oito anos, 43 dias e 19 horas de prisão e poesia, entre a Casa de Detenção do Recife e a Penitenciária Professor Bareto Campelo, em Itamaracá. Perdi nos aparelhos clandestinos e nas fugas um volume datilografado com todos os meus textos. A partir daí, passei a decorá-los.
Também escreviam poemas na prisão, Chico de Assis, Juliano Siqueira (RN) e Cláudio Gurgel (RN) Chico Passeata (CE), Severino Quirino (o Poeta da Fome, de Caruaru), e Antônio Ricardo Braz, cirandeiro de Timbaúba. Recebi livros de Ângelo Monteiro e Luis Carlos Duarte, que ainda conservo. Minha obra completa de Castro Alves foi apreendida pelo major diretor da penitenciária, junto ao Aprendiz de Crítica, de Joel Pontes, e centenas de livros foram subtraídos dos presos políticos e revendidos em sebos. Contrabandeamos por partes o Poema Sujo, de Ferrreira Gullar, cuja leitura me fez subir um degrau na tabela do exercício físico.
Virando a página, o Os Quatro Pés da Mesa Posta, publicado pelas Edições Pirata em 1980, foi uma amostra de 38 dos meus poemas carcerários.
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