ENTRE GOLPES
À
luz das turbulências democráticas no país, cinema revisita a ditadura militar
Em obras como Tatuagem e Amores de
chumbo, realizadores pernambucanos se dispuseram a abordar o tema com vários
enfoques
Diario
de Pernambuco/Viver 8/10/2016
Em
um período político brasileiro tão delicado, em que a palavra "golpe"
aparece carregada de significado, o audiovisual contribui para a reflexão sobre
o passado e ajuda a construir o futuro. Produções recentes ou em processo de
lançamento apresentam a ditadura militar brasileira sob novos olhares e
constatam como a memória do período ainda precisa ser evocada. Realizadores
pernambucanos também se dispuseram a abordar o tema com vários enfoques, do
premiado Tatuagem, de Hilton Lacerda, até a série de TV Histórias de
fantasmas verdadeiros para crianças, de Mariana Lacerda, em desenvolvimento de
roteiro.
Em
comum, há a sensação de conexão com uma contemporaneidade que eles nem
imaginavam há pouco tempo. É o que diz Tuca Siqueira, que finaliza o
longa Amores de chumbo. "O filme nasceu em 2008 e nunca imaginávamos
que iríamos viver um golpe neste ano. É muito surreal para gente e fico
imaginando em qual momento social ele vai ser lançado".
O
filme se passa nos dias de hoje, e o triângulo amoroso entre os personagens é
diretamente afetado pelas consequências da ditadura. Ela também dirigiu os
documentários Eu vou contar para os meus filhos e A mesa vermelha, com
depoimentos de 23 presos políticos do regime. "Acho que a maior parte do
filme trata o período por uma linha mais histórica. Depois que escutei as
pessoas nesses dois documentários, me despertou olhar forte para essas pessoas
que viveram aquele período e que estão aqui hoje. Todo mundo se transformou em
alguma coisa e se tornou alguém", diferencia. "Em Amores de chumbo,
são mostradas pessoas extremamente ativas, mas elas, ao mesmo tempo, carregam
um peso muito forte do que viveram no regime militar. São duas histórias de
amor para três amantes e eles percebem que ainda têm questões a resolver".
Tatuagem (2013)
se passa em 1978, mas essa conexão com o futuro e com questões de gênero e
sexualidade são sublinhadas a partir das escolhas do diretor. Para Hilton,
"a intenção é ter um diálogo bastante contemporâneo e construir uma ponte
entre passado e futuro que, na verdade, é o presente. São momentos diferentes,
mas acho que vivemos angústias muito parecidas. Uma coisa importante desse tipo
de projeto é trazer essa memória para a superfície, porque ela é facilmente
diluída no Brasil. Quando se fala em ditadura, parece uma coisa abstrata".
O
próprio circuito cinematográfico de produção e distribuição, ele diz, é um
setor crucial para que os novos olhares cheguem ao público."O problema é
que a gente corre o risco de ser desarticulado rapidamente. O cinema distribui
renda e não sabemos até onde os grandes produtores estão interessados nesse
poder de olhar. O circuito comercial é bastante político e tratar isso de forma
diferente é um erro", alerta o cineasta.
Para
os filmes em desenvolvimento, a situação política do Brasil tem camada ainda
mais profunda de significado às ideias. A busca por uma visão particular sobre
a ditadura se torna tarefa mais urgente. Mariana Porto vai filmar o longa
Fragmentos de um silêncio, inspirado na história de Umberto Albuquerque Câmara
Neto, militante de esquerda que contribuiu com críticas de cinema para o
Diario.
Trazer
para o presente uma faceta desse passado que o Brasil parece ter deixado de
reconhecer é um dos objetivos dela, também professora da UFPE. "Via filmes
sobre a ditadura e isso me deixava com um sentimento profundo de pesar e mãos
atadas, porque várias obras não construíam essa ligação com o hoje e eu via
que, na verdade, tudo se mistura na sociedade atual", observa.
O
filme será ambientado em 2014 e trará personagens ligados tanto a uma
militância mais jovem quanto a uma milícia privada. Os papéis, segundo Mariana,
são desdobramentos de uma situação vista ainda na ditadura. “O gesto primordial
do filme era superposição de mapas geopolíticos no Brasil. O roteiro é uma
ficção em que o personagem de Umberto é um fantasma. Ele é um estado de busca
que o protagonista, que teria a mesma idade dele se estivesse vivo”.
A
cineasta Mariana Lacerda idealizou a série de TV Histórias de fantasmas
verdadeiros para crianças, para trazer a memória a um público normalmente ignorado
quando se fala de produções audiovisuais sobre a ditadura. A ideia é fazer
quatro episódios de 26 minutos. "Tenho duas filhas, de 6 e 7 anos, e
percebo que os conteúdos da TV brasileira para crianças são aquém do que
poderiam. Elas não podem viver isoladas do mundo. Essa é a história delas, do
país onde vivem. Precisamos explicar isso", defende. "Me perguntaram:
'como você vai explicar o que é um pau-de-arara a uma criança?' Respondi:
'explicando'. Quando a resposta é imbuída de afeto, é muito passível de
compreensão", acredita Mariana. "Vou me reunir com um consultor
pedagógico para a gente saber o limite e não traumatizar as crianças",
planeja a cineasta.
RECENTES
- O documentário Retratos de identificação, dirigido pela professora Anita
Leandro e lançado em 2014, usou o acervo fotográfico do Departamento de Ordem
Política e Social (Dops) da Guanabara, do Serviço Nacional de Informações (SNI)
e do Superior Tribunal Militar para reconstituir a trajetória de quatro
guerrilheiros. Antônio Roberto Espinosa e Reinaldo Guarany, ainda vivos, falam
sobre o próprio passado e contam a história de Maria Auxiliadora Lara
Barcellos, que se suicidou no exílio em Berlim, na Alemanha, e Chael Schreier,
morto enquanto era torturado.
Em Trago
comigo, de 2015, a diretora Tata Amaral mostra a história de Telmo
(interpretado por Carlos Alberto Riccelli), diretor de teatro que monta
espetáculo sobre a resistência à ditadura militar, mas é confrontado pelo
elenco da peça, muito jovem, e que não tem conhecimento histórico a respeito
dessa passagem do país.
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