Sobre o caráter do jornalismo e das instituições brasileiras
Luis Nassif, Jornal GGN
Muitos e muitos anos atrás, Cláudio
Abramo soltou a máxima: Jornalismo é o exercício do caráter.
Não bastava ao jornalista ter a
melhor opinião de ocasião. Tinha que mostrar caráter, coerência, não submeter
sua opinião ao marketing pessoal, à busca do sucesso do momento. Valia não
apenas para jornalistas, mas para homens públicos em geral. E havia direitistas
com caráter, esquerdistas com caráter, livres-atiradores com caráter,
permitindo, durante algum tempo, que os jornalões montassem uma salada de
colunistas de várias vertentes ideológicas, coerentes com suas ideias ou, no
caso de mudanças, seguindo o percurso lógico de quem, honestamente, se curvou
aos dados da realidade.
As redes sociais, no entanto, geraram
um fenômeno novo: a possibilidade de cada jornalista investir em seu marketing
pessoal. Mais que isso, a partir de 2005, com a introdução oficial do chamado
jornalismo de esgoto, há uma reviravolta no jogo. De repente, não mais que de
repente, todas as normas jornalísticas foram atropeladas. Passou-se a aceitar a
ofensa, a baixaria, o factoide como produto jornalístico. Aliás, não apenas
aceitar, como valorizar.
(A propósito, já está no prelo meu
livro, “O caso de Veja”, tentando mostrar o fenômeno do jornalismo de esgoto.)
Criou-se um novo mercado para o
jornalismo de ódio, ódio de classe, ódio contra adversários de ideias, ódio
contra os críticos do jornalismo de ódio, ódio sob encomenda, ódio de ocasião,
ódio contra a verdade, esse conceito castrador da criatividade, que, muitas
vezes, impedia de entregar o produto valorizado pelo patrão.
No início, esse jornalismo era
praticado por pessoas de talento, como Arnaldo Jabor e Jô Soares. Aberta a
jaula, no entanto, o mercado foi invadido por oportunistas de todas espécies,
cronistas musicais, cronistas mundanos, repórteres ambiciosos, jornalistas
esquecidos. Bastava vociferar contra o inimigo, criticar o politicamente
correto, dedurar jornalistas do campo contrário, para ganhar espaço nobre nos
veículos.
Nenhuma pessoa teve influência maior
sobre esse estilo do que Olavo de Carvalho. Ele importou diretamente da ultradireita
americana o estilo de desmoralizar os adversários com baixarias, sofismar,
zombar de conceitos consolidados – ironizados como politicamente corretos -,
implicar com determinados intelectuais de esquerda, ironizar as reclamações das
vítimas de baixaria. De início, seus principais discípulos foram Diogo Mainardi
e Reinaldo Azevedo. Depois, o vírus se espalhou pelas redes e pela mídia. Com a
Lava Jato, tornou-se padrão midiático geral.
O deslumbramento
com as redes sociais, além disso, revelou a enorme flexibilidade do caráter
institucional do brasileiro, a começar pelo deslumbramento de Ministros do
Supremo, considerando-se novos condutores dos povos unicamente pela
visibilidade, nas redes sociais, conquistada à custa de seus cargos públicos.
Se nem Ministros do STF que, antes, perseguiram a imagem de austeridade,
conseguiram escapar à vaidade, o que dizer então dos pobres mortais?
Criou-se, assim, uma geração de
jornalistas reflexo fiel do tipo de mídia do período.
Aí, nos Estados Unidos, aparece o
fenômeno Trump, com todos seus abusos virando o fio da opinião pública, o caso
George Floyd, a superexposição da miséria, com a pandemia, e há uma mudança na
opinião pública midiática mundial. Jornalistas carniceiros da fase trumpista
são demitidos e passam a ser alvos dos linchamentos que estimulavam.
Por aqui, a ascensão do bolsonarismo,
a Vaza-Jato, o fim do ciclo do punitivismo, soterrado pelo deslumbramento
invencível de seus principais personagens e a emulação dos movimentos
midiáticos dos EUA revertem a onda. A moda, então, volta a ser o politicamente
correto, a empatia, a solidariedade.
Aí há o aggiornamento dos jornalistas
de marketing, correndo para se colocar no novo cenário. E, assim como na saída
da ditadura, renova-se o pacto de anistia, e o interesse tático prevalece para
não atrapalhar os movimentos táticos. Se, agora, o trabalho é útil para a
causa, esqueça a coerência.
E, assim, jornalistas que se
especializaram em delações, em promover o ódio, em galgar postos colocando-se a
serviço do jornalismo de esgoto, reescrevem a biografia, com maior ou menor
talento. Na próxima onda de ódio, voltarão aos velhos princípios, da mesma
maneira que trocam de chinelos. Mas os aliados atuais ouvirão as críticas com o
mesmo muxoxo com que Augusto Aras rebate as denúncias contra Bolsonaro: é seu
direito de mudar de opinião. Afinal, a hipocrisia não é prerrogativa de nenhum
partido, nenhuma linha ideológica: é coisa nossa. E o utilitarismo é a marca
principal de todos os pactos. É útil?, esqueça o resto. Afinal, é uma sociedade
que foi construída em cima do utilitarismo, do imediatismo mais estreito.
Mas os arquivos implacáveis da
Internet anotam que, em um dia qualquer do passado, delataram colégios por
práticas políticas, denunciaram austeras professoras da USP como traficantes,
por proporem políticas de redução de danos para a droga, valeram-se das piores
baixarias para cimentar suas carreiras.
(Em favor de Azevedo ressalte-se que
pulou do barco da Lava Jato um pouco antes da mudança da onda. E tem talento.)
[Ilustração: do site democracia&política]
.
Veja: Uma tremenda
demonstração de fraqueza https://bit.ly/3lRLcVT
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