Socos, chutes e dedo nos
olhos
Cícero Belmar*
Esta cena é real,
filmada pelas câmeras de um prédio: dois motoristas pararam num sinal de
trânsito, desceram de seus carros, começaram a discutir, exaltados, com muita
gesticulação, e em seguida a pancadaria correu solta. Trocaram socos,
agarraram-se, um mandou o adversário para o asfalto, até que outras pessoas
apareceram no vídeo para apartar o vale tudo.
Fazia parecer brigas juvenis, mas os envolvidos eram dois homens
feitos. A cena ocorreu este mês na Avenida Agamenon Magalhães, uma das mais
movimentadas do ensandecido trânsito do Recife. Recebi o vídeo pelo WhatsApp e
fiquei impressionado com a epidemia. No caso, a de agressões e violência, que
expõe cada vez mais a natureza humana feroz.
Não digo “instinto animalesco”, em respeito à minha doce e elegante
cadela. Ela não perde as boas maneiras. Não sei qual a justificativa para
aqueles dois se digladiarem. Quero acreditar que a troca de tapas, socos,
chutes no saco e dedo nos olhos poderia não ter ocorrido. Pedir desculpas,
aceitar desculpas, é um poder que todos nós temos. Convenhamos, é até uma forma
mais urbana de resolver conflitos.
Fiquei pensativo. Concluí que aquela cena só poderia ter
ocorrido nesse estranho tempo presente. Estamos tão vulneráveis, tão abusados
em nossos direitos, agredidos na dignidade, que retaliamos de forma violenta,
com facilidade, aos desentendimentos e mal-entendidos cotidianos.
Ultimamente, temos colecionado abusos e agressões institucionais
e estruturais. No dia a dia nós nos sentimos insultados, provocados,
“assaltados”. Mas, de uma hora para a outra, parece que ficamos de mãos atadas.
Contraditórios, descontamos a raiva reprimida nas coisas mais banais e no
convívio com as pessoas. Tudo serve para uma briga, uma discussão acirrada.
Queremos tirar satisfação por causa de bobagens. Assim caminha a humanidade
nesse Brasil brasileiro.
Houve uma distorção da nossa realidade, saímos de uma democracia
cidadã direto para o fascismo. No poço fundo onde caímos a selvageria é a forma
mais fácil de reação. A cultura do ódio incentiva isso e espera que todos
sejamos delinquentes. Dar cabeçada ou querer quebrar o braço do outro são
práticas típicas desse pântano.
Assim como aqueles dois respeitosos senhores do trânsito,
qualquer coisa, vamos pra cima. Mas, reagimos com letargia quando nossa
cidadania e liberdade são infringidas. Perdidos no reino das mesquinharias, não
refletimos sobre o que de fato nos ofende, fere e causa dano.
O brasileiro não enxerga mais poesia no cotidiano. Falando sobre
isso com meu pai, Cícero, que na semana passada fez 92 anos com lucidez, ele
respirou fundo, como se não visse uma saída neste instante: “Está tudo
desarrumado, o governo e a cabeça do povo”. Nessa conversa, lembrei-me do poema Pneumotórax, de Manuel Bandeira, um clássico
do modernismo brasileiro. (Fica bem fazer a referência neste centenário na
Semana de Arte Moderna). Bandeira encerra o poema assim:
– “A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”.
*Jornalista, escritor, membro da Academia Pernambucana de Letras
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