A delinquência se desnuda
O Brasil real escancara-se com Milton Ribeiro e pastores
Janio de Freitas, Folha de S. Paulo
O jantar
era um velório antecipado e os convivas não sabiam. Foram convidados a
homenagear Gilmar
Mendes pelos 20 anos completados no Supremo. Nunca houve isso, nem o patrocinador do
gasto público, presidente da Câmara, é dado a finezas. Quem não percebeu na
ocasião ainda pode saber que Arthur Lira aproveitou a data para proporcionar na
casa oficial, entre dezenas de figurantes ilustres ou longe disso, o encontro
desejado por Bolsonaro com o ministro Alexandre
de Moraes.
Há
dúvida sobre o tempo em que conversaram o acusado e o condutor das ações penais
contra Bolsonaro. Menos de 48 horas depois, o que tenha sobrado da conversa
destroçava-se, ao som de diálogos a um só tempo suaves e fulminantes do
casal Milton
Ribeiro.
O
aviso de Bolsonaro ao ex-ministro e pastor, sobre busca da Polícia Federal em
sua casa, não foi só interferência contrária a uma investigação da Polícia
Federal.
Não foi só a violação de sigilo oficial por interesse particular e criminal.
Não foi só o conhecimento de motivos para prevenir o ex-ministro.
É também um
chamado ao Tribunal Superior Eleitoral para considerar a nova condição do
candidato Jair Bolsonaro. No mínimo, suspendendo-lhe o registro até que o
Supremo defina os rumos processuais do caso e, neles, a condição do candidato
implicado. Isso independe da responsabilização de Bolsonaro como presidente.
É um sistema
quadrilheiro que começa a desvendar-se. Ficam bem à vista duas estruturas que
têm a Presidência da República como elo entre elas. Uma age dentro da
administração pública, em torno dos cofres, e reúne pastores da corrupção
religiosa, ocupantes de altos cargos e políticos federais e estaduais. A outra
age do governo para fora, na exploração ilegal da Amazônia, em concessões
injustificáveis, e em tanto mais. Duas estruturas independentes que se conectam
na mesma fonte de incentivos, facilitações e proteção para as práticas
criminais.
A
investigação de todo esse dispositivo de saque é complexa. O desespero do pastor Arilton Moura emitiu uma informação de
dupla utilidade, para os investigadores e para os seus camaradas de bandidagem:
"eu vou destruir todo mundo", se a sua mulher for atingida de algum
modo.
Logo,
são muitos os implicados, incluindo esposas como possíveis encobridoras de bens
ilegais. E, contrariando sua simpática discrição, mesmo Michelle Bolsonaro e suas ligações com pastores
da corrupção, a começar com Milton Ribeiro por ela feito ministro.
O
que se sabe do "todo mundo" está longe da dimensão sugerida pelo
pastor. Uma das várias dificuldades iniciais para avançar com a investigação
está na própria PF, em que se confrontam a polícia de policiais e a polícia de
delinquentes (por comprometimento político ou não).
O
embate público dos dois lados apenas começou, com a certeza de que o aviso dado
por Bolsonaro partiu da PF contra a PF e, preso o ex-ministro, com ações a
protegê-lo.
É
imprevisível o que se seguirá no confronto de extrema gravidade: sem uma
limpeza no quadro de chefes de inquéritos, a confiança na PF dependerá de
saber, como preliminar, se a ação policial é de policiais ou de delinquentes. E
não é fácil sabê-lo.
Note-se,
a propósito, que eram dois os informados da então próxima prisão de Milton
Ribeiro: o diretor-geral da PF, delegado Márcio Nunes de Oliveira, e o delegado Anderson Torres, ministro da Justiça que
acompanhava Bolsonaro nos Estados Unidos, sem razão oficial para isso, quando o
ex-ministro recebeu de lá o telefonema sobre a busca policial. Sem o
esclarecimento dos seus papéis nessa transgressão, os dois bastam para
comprometer a PF até como instituição.
Quando
Bolsonaro procurava o ministro Alexandre de Moraes, com pedidos ou
propostas, já o lado policial da PF cuidava de expor, na voz do ex-ministro, o
crime de responsabilidade do presidente ilegítimo. Bolsonaro ruía com seu
governo e seus pastores. O Brasil real escancarava-se outra vez, faltando-lhe
mostrar, no entanto, onde o bolsonarismo militar vai encaixar, no novo cenário,
o seu inimigo —a urna eletrônica, preventiva da corrupção também eleitoral.
[Veja: Será aceitável que 9 crimes tão graves fiquem impunes? https://youtu.be/sJ2lSvc193E ]
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