Elias Jabbour: “O
futuro do Brasil está ao lado da China”
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Entrevista do professor
da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), Elias Jabbour, para o Zero
Hora. Publicada em 01.06.2023.
Um
dos autores do livro “China: O Socialismo do Século XXI”, Elias Khalil Jabbour
é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ) e um dos principais especialistas brasileiros sobre o
gigante asiático. Ele desfruta da confiança da ex-presidente Dilma Rousseff,
atual dirigente máxima do Banco do Brics, para o qual Jabbour está por ser
nomeado diretor.
Nesta
entrevista, concedida no início de maio, ele apresenta a tese de que a
Revolução Chinesa, em 1949, desdobrou-se na “maior transformação social da
história da humanidade”, comenta os riscos iminentes de uma guerra convencional
entre Estados Unidos e China e projeta uma futura ordem mundial com o declínio
da hegemonia norte-americana e ocidental.
Para
Jabbour, o desenvolvimento chinês representa, atualmente, o grau máximo que a
inteligência humana pode alcançar. Ele ainda rechaça críticas ocidentais que
apontam censura, restrições à liberdade e governo ditatorial do Partido
Comunista Chinês.
Alguns analistas
consideram que estamos no início de uma Guerra Fria 2.0. Porém, há
divergências. E havia, na Guerra Fria original, dois campos ideológicos
singulares. Hoje, as economias de China e EUA estão entrelaçadas e há dúvidas
se a China deseja ampliar sua influência. Há semelhanças?
Há uma tensão, mas é diferente porque envolve algo que o Ocidente tem medo
desde o século 15: uma união Eurásica. E isso está se concretizando agora. Esse
é o grande ponto de receio do Ocidente porque, pela primeira vez nos últimos
500 anos, o que se chama de Ocidente (Europa e América do Norte) já deixou de
ser o agente dinâmico do mundo, do ponto de vista econômico. Isso é uma
novidade: desde que Cristóvão Colombo chegou à América, o momento que estamos
vivendo hoje talvez seja o grande turning point. Lenin, no final da vida,
trabalhava com a ideia de retirar a guerra do campo militar e trazê-la para o
campo comercial. Os chineses conseguiram isso seguindo o que o Lenin procurava:
investimento estrangeiro para atrair tecnologia e concessões ao setor privado
interno. O que Lenin não conseguiu completar: integrar a União Soviética ao
resto do mundo e, com suas riquezas naturais, ligar o resto do mundo à União Soviética.
A China fez isso com o Ocidente. O destino do Ocidente está umbilicado com a
indústria chinesa ou mesmo com a tecnologia consumida na China. A China se
integrou à economia global. Consegue ter o governo americano contra ela, mas há
empresas dos EUA que não aceitam isso. Isso não aconteceu com a União
Soviética, que foi isolada em um bloco, fazendo comércio consigo mesma. E,
quando ela começou a fazer parte da divisão internacional do trabalho, entrou
como exportadora de petróleo e gás, e não como a China, que é exportadora de
produtos de alta complexidade. É uma guerra híbrida, comercial e convencional.
Em um artigo, o senhor
avaliou que teremos uma Terceira Guerra Mundial, possivelmente entre EUA e
China, e que o estopim será a questão de Taiwan. Acredita que essa tensão pode
levar a um conflito de fato?
Já está acontecendo, e é pela Ucrânia. Esse conflito pode se espalhar para o
restante da Europa. A China vai fazer o possível para que não chegue à Taiwan.
Mas há luz no fim do túnel: as forças separatistas de Taiwan perderam as
últimas eleições. Agora, isso significa que os americanos irão entregar Taiwan?
Significa que os americanos vão deixar de usar Taiwan para provocar a China e
elevar a escalada da provocação? Acho que pode virar uma guerra convencional,
mas não sei quando. A China tem margem de manobra em Taiwan. A população
taiwanesa é contra a guerra. Não é fácil arrumar uma confusão na região. Uma
guerra ali vai destruir 10 das 30 maiores cidades do mundo. Não é brincadeira.
Todos saem perdendo?
O mundo todo vai perder. A China sabe da sua incapacidade militar diante dos
EUA. O atual chefe da diplomacia chinesa disse isso. Não interessa para a China
o conflito. Agora, se houver, e acho provável que aconteça, a resposta vai ser
just in time. No mais alto calibre. A China pode destruir Washington e Nova
York. Tem capacidade militar para isso. A mesma coisa os americanos em relação
a Pequim, Xangai, Guangzhou. Pode acabar em uma guerra nuclear também.
Qual a sua avaliação
sobre a atuação dos EUA em Taiwan. O senhor fala em provocações. Qual seria o
objetivo?
Há hoje 42 tecnologias sensíveis no mundo, e a China está à frente em 37. A
grande fronteira tecnológica é a infraestrutura de semicondutores, que a China
está duas gerações atrás dos EUA. E quem tem essas infraestruturas hoje
instaladas em seu território é Taiwan. Ou seja, o que está em jogo não é
somente Taiwan, e sim a TSMC, que é a empresa taiwanesa que exporta para a
China os elementos de semicondutores. Essa fábrica é o que pode trazer para a
China independência tecnológica em relação a semicondutores. A China hoje tem 2
mil startups patrocinadas pelo Estado voltadas à produção de semicondutores.
Esse bullying tecnológico que a China sofre está tendo efeito contrário: ela
está deslocando toda a sua energia nacional para superar a barreira dos
semicondutores. O que pode ocorrer com o mundo na medida em que a China
alcançar os americanos nessa tecnologia? É evidente que o Estreito de Taiwan é
uma região ultrassensível. Assim como o Brasil é uma região ultrassensível. Se
a Ucrânia é um local de disputa hoje na Europa, se Taiwan é um local de disputa
no Leste Asiático, o Brasil também é um local de disputa na América Latina.
Acho que Ucrânia, Taiwan e Brasil são os três grandes pontos de tensão mundial
hoje.
No século 20, tivemos a
consolidação de uma ordem global liberal: o american way of life, o dólar como
lastro do comércio internacional, as organizações comandadas pelos EUA, única
superpotência emergente da Guerra Fria. A China ganha espaço e contesta essa
ordem. É possível imaginar uma ordem global sinocêntrica? A China quer isso?
A China não quer governar o mundo. Não tem essa pretensão. A financeirização é
um fenômeno interessante, porque foi fragilizando os países capitalistas
centrais a tal ponto que a distância entre a China e eles diminuiu rapidamente.
O mundo entrou em crises financeiras sucessivas, enquanto a China reduzia a
distância em relação aos americanos. A financeirização foi corroendo por dentro
o sistema, e isso foi possibilitando que a China alcançasse os objetivos que
seriam de longo prazo no curto e médio prazos. Outro ponto: o custo de você ser
hegemon no mundo é muito alto. As pessoas me perguntam: “A China quer que o
Brasil seja um país forte?”. É evidente que sim, porque ela não quer ter o ônus
de instalar bases militares na América Latina. Para ela, um Brasil forte,
industrializado, com tecido social reconstruído, com uma base industrial
tecnológica é importante. Não quer ter o ônus de ser polícia do mundo, isso não
é nem o perfil dos chineses. A ordem multipolar que a China prega conta com uma
América Latina com papel central, com Brasil, Argentina e México; a África com
papel central; e a própria Ásia, com China, Índia e Rússia, idem. Mais: o lugar
da China não é o Norte Global. Ela nunca será aceita no clube dos países
desenvolvidos. O lugar histórico dela é o Sul Global, o Terceiro Mundo. Eles se
veem nessa condição. Querem o Sul Global fortalecido porque isso, para eles, é
uma muralha também.
A esquerda critica as bases
da Otan próximas à Rússia e as movimentações dos EUA perto da China. Por outro
lado, no Ocidente, os críticos da China dizem que ela avança comercialmente,
com compras de propriedades em setores estratégicos, e que isso pode ser também
uma ameaça. Diante disso, vivemos o ápice da sinofobia, potencializada pela
pandemia de covid-19?
A sinofobia está a mil por hora até por uma questão de decadência moral no
Ocidente e de ter que se colocar a culpa em alguém. A China se declara um
Estado socialista, e há 30 anos se falava que o socialismo tinha morrido. Isso,
por si só, já é motivo para que o Ocidente fique em polvorosa. A gente tem de
dar nome aos bois: é racismo. É essa visão europeia e americana de despotismo
oriental que julga a China como ditadura. Você pega 5 mil anos de história da
China e resume a um conceito de ditadura ou democracia quando, na verdade, o
mais inteligente seria observar quais são as formas históricas de propriedade e
sistema de governo e políticos que advêm disso. O Ocidente vive uma crise da
democracia liberal. No fundo, é a crise de uma democracia que nunca existiu. O
Ocidente é uma plutocracia. Nos últimos 30 anos, cerca de cem países adotaram
democracias liberais e mais de 60 estão em crise por algum motivo: fome, falta
de governança, dívida. A sinofobia é racismo, só que os ocidentais não se olham
no espelho. O Ocidente está se desmanchando.
E o avanço da China
sobre propriedades e setores estratégicos do Ocidente?
A China faz o que qualquer país do mundo com projeto nacional faria. Isso não é
expansionismo, é ocupação de espaço geopolítico. Agora, se o Brasil permite
isso, é outra história. Quem está errado somos nós (brasileiros). Todo mundo
fala que a China avança, mas ela o faz porque os países permitem. E você não
vai fazer comércio ou manter uma relação de investimento com um país que faz
comércio há 3,6 mil anos e achar que está sendo esperto com eles. Você não pode
entrar no jogo com a China sem que tenha um projeto de longo prazo. Porque você
vai ser engolido. Isso independe se a China é socialista, capitalista, de
direita ou de esquerda. A capacidade que os chineses têm de fazer comércio e de
usar o comércio como arma política é impressionante. Temos de lidar com a China
com um projeto nacional, não como um país que quer vender commodity, não como
Michel Temer fez colocando um monte de empresas para os chineses comprarem.
Jair Bolsonaro também o fez. O Brasil tem de ter uma legislação dura em relação
a isso. Agora, nós não vamos pedir para que chineses tenham complacência em
relação a nós. Não vão ter. Qualquer país respeita quem se respeita. Está na
hora de o Brasil se respeitar nesse aspecto. Até porque uma das características
da China e do governo chinês é se adaptar a projetos sociais autônomos. A China
não é um país imperialista, nem colonialista, nem neocolonialista.
Pode dar exemplos?
A Bolívia. A China poderia muito bem importar o lítio boliviano e fabricar
baterias no seu próprio território. A Bolívia exigiu da China a
industrialização do lítio em território boliviano. A Etiópia está exigindo da
China a instalação de zonas econômicas especiais lá, não quer mais exportar
commodity para a China. Paquistão e Irã fizeram a mesma coisa: “Queremos
infraestrutura, transferência de tecnologia”. A China está fechando um negócio
com a Tailândia, de trens de alta velocidade, que prevê transferência de
tecnologia.
A China censura a
internet e tem presos políticos. Como você classifica o país em termos de
liberdade?
A China é uma democracia não liberal porque tem suas próprias formas históricas
de representação popular. Qualquer vila, distrito ou aldeia tem o Partido
Comunista e uma assembleia popular local. Na última reunião da Assembleia
Popular Nacional, foram mais de 3 mil destaques vindos das bases. Não existe
isso em outra parte do mundo. A gente tem de compreender que a China tem suas
próprias formas históricas de representação popular, que remontam há 2 mil
anos, a uma antiga prática de democracia à base da aldeia. Não acredito que um
trabalhador alemão, americano ou brasileiro seja mais livre do que um chinês.
Outra coisa: a China tem preso político? Quem? Os EUA têm presos políticos em
Guantánamo.
Na China não há presos
políticos?
Se alguém me mostrar que tem, vou falar que tem. E lamentarei isso.
Na sua visão, isso é
parte do discurso do Ocidente de vilanizar a China?
Não tenho problema em assumir que há presos políticos na China, desde que me
provem. Sou cientista, não torcedor. Até onde sei, não há. Restrição à
internet: no mundo inteiro há restrição à internet, não só na China. Nós, aqui,
trabalhamos 24 horas por dia para o Twitter, para o Google, a Meta. E todos
sabem no Ocidente que as big techs se transformaram em instrumento de
desestabilização de sociedades. Eu coloco a pergunta: por que a China tem de se
dar o direito de ser desestabilizada como foi o Brasil, o Irã, por conta de uma
liberdade de acesso à internet? A restrição na China não é à internet. É às big
techs, que não são chinesas. Até porque, hoje, o ouro do mundo não é o
petróleo. São os dados. E Mark Zuckerberg (dono da Meta) já confessou que
trabalha para o governo americano. Então, como a China vai permitir, em meio ao
bullying comercial e tecnológico, que suas empresas e seus cidadãos entreguem
para os EUA os seus dados? Não é uma questão moral, é política e geopolítica.
O senhor defende que
houve na China, a partir da Revolução de 1949, a maior transformação social na
história da humanidade, por tirar um grande contingente de pessoas da miséria.
Pode explicar a abordagem?
A China é hoje produto da maior revolução social da história da humanidade, que
foi a Revolução Chinesa, em 1949: uma imensa revolta camponesa, após mais de
cem anos de humilhação dos mesmos países que hoje dizem que a China é uma
ditadura. De um dos países mais ricos do mundo, a China passou a ser um dos 10
mais pobres em 1949. A expectativa de vida era de 35 anos. O analfabetismo
beirava os 90%. Em 72 anos, isso mudou completamente graças a essa revolução
social. É evidente que o socialismo é um sistema social muito novo. Tem apenas
cem anos. Isso não é nada, um embrião na História. O capitalismo tem 600 anos.
O feudalismo tem mais de 2 mil anos, a escravidão, mais de 2 mil anos. A China
é um socialismo embrionário, que vai se reinventando ao longo do tempo. Advogo
no meu livro que, a partir de 1978, o socialismo chinês se reinventa, algo fora
da ortodoxia marxista. A China construiu seu próprio caminho ao socialismo.
Hoje o governo usa big data, 5G, inteligência artificial para ter uma
intervenção mais rápida na economia. Como entender que a China conseguiu gerir,
elaborar e executar milhares de projetos simultaneamente após a crise de 2008?
Isso significa uma elevação da capacidade de planejar e executar a partir da
plena utilização das inovações tecnológicas disruptivas. Falta uma ciência
social para entender a China hoje. Ela tem de ser descoberta cientificamente. O
grau máximo que a inteligência pode alcançar hoje no mundo é o que estamos
vendo na China.
Diante da aproximação
entre China e Brasil, há risco de desagradar os EUA? Em algum momento, o Brasil
vai ser forçado a escolher um lado?
O Brasil é muito grande para caber no quintal de alguém. O Brasil tem de tirar
o melhor que os americanos podem nos entregar. Eles têm condições de entregar
grandes empresas, na forma de joint ventures? Se tiverem, eu aceito. A China
tem. O Brasil, na década de 1950, planejou sua economia a partir da tendência
do automóvel. Nós não temos autonomia de lançar tendência para planejar a
economia. Temos de aproveitar as tendências de fora. A tendência naquela época
era o automóvel. Por isso, Juscelino Kubitschek traz as montadoras, ao lado
delas surgem de 2 mil a 3 mil empresas metalmecânicas. Hoje, vemos a destruição
das ligações brasileiras, um problema de soberania, inclusive: você não vai de
Porto Alegre até Manaus de carro, ônibus ou caminhão. O Brasil está com suas
infraestruturas destruídas. O básico de um país capitalista é ter
infraestruturas que unifiquem seu mercado nacional. O Brasil não tem mais isso.
E qual o país do mundo que entrega uma tendência para isso? A China. Falo de
trens, rodovias, portos. O futuro do Brasil está ao lado da China.
Japão e Austrália,
vizinhos da China próximos aos EUA, anunciaram investimento em forças
militares. A China tem como aliados a Coreia do Norte e a Rússia. Há
desvantagem em relação a aliados e isso deve ser prioridade na política externa
chinesa?
A China hoje é a maior parceira comercial de 140 países. O problema da China
não é falta de aliados. Ela tem praticamente toda a Eurásia, a África e a
América Latina a seu lado. O problema dela não é o isolamento. Ao contrário: as
pessoas não percebem que quem está se isolando é o Ocidente. Houve uma reunião
da Organização para a Cooperação de Xangai, em que metade do mundo estava lá em
termos de população, e cujo informe final foi muito claro: “Não aceitamos
ingerência ocidental nos nossos países, e não aceitamos bullying econômico ao
Irã”. Quem está sofrendo um problema de isolamento é o Ocidente. O Ocidente
está desmoralizado em todos os aspectos.
Uma crítica que se faz é
sobre a questão ambiental. A China precisa avançar nesse ponto? Como está o
debate internamente?
Se você juntar os investimentos em tecnologia verde de Europa e EUA, a China
dobra. A China é o país que mais investe em tecnologia limpa. A resposta que o
mundo está dando hoje à questão climática não é feita pelo Ocidente, e sim pela
China. É que as informações não chegam para nós.
As narrativas do Oriente
não chegam aqui?
Qual foi a última notícia boa que vocês viram sobre a China? Nenhuma. Não
chega. A gente fala de repressão à internet na China, e não fala (do mesmo
problema) no Brasil. Nós vivemos uma tempestade semiótica integral contra a
China no Brasil.
Os fatos em órbitas sucessivas https://bit.ly/3Ye45TD
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