Exército comprou maleta espiã que intercepta ligações e liga microfone de celular, mostra depoimento
Governo Bolsonaro monitorou jornalistas, políticos e até ministros do Supremo Tribunal Federal
Cézar Feitoza e Thaísa Oliveira/ICL Notícias
O Exército comprou uma maleta espiã que permite interceptar ligações, ativar remotamente o microfone de celulares e bloquear comunicações sem a necessidade de autorização judicial para executar as tarefas.
O sistema de inteligência é chamado de GI2 e é vendido pela Verint (atualmente conhecida como Cognyte) como um complemento ao FirstMile -software espião cujo uso ilegal por integrantes da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) é investigado pela Polícia Federal.
Segundo documentos da Verint repassados por um ex-funcionário da empresa à Folha de S.Paulo, a venda casada dos produtos é sugerida a clientes pelo menos desde 2013.
Na época, a empresa usava no lugar do FirstMile outro produto, chamado SkyLock, que possui o mesmo princípio do sistema investigado pela PF – obter acesso à localização aproximada de celulares por meio de brechas nos serviços de telecomunicações.
“Um exemplo disso (uso combinado dos sistemas) é utilizar o SkyLock em conjunto com o ENGAGE GI2 para primeiro identificar a localização de uma célula alvo e, em seguida, usar o GI2 da Verint para identificar a localização precisa desse alvo”, diz trecho do material de divulgação do produto.
O GI2 foi comprado pelo Exército durante a intervenção federal no Rio de Janeiro, no final de 2018, que era comandada pelo general Walter Braga Netto. A informação foi relatada pelo vendedor da Verint Caio Santos Cruz, em depoimento à Polícia Federal obtido pela Folha.
Santos Cruz disse ainda que o Exército comprou, no mesmo pacote, os sistemas FirstMile, WebAlert e FaceDetect ao custo de cerca de US$ 10,8 milhões (R$ 56 milhões na cotação atual).
Sem explicação do Exército
O Exército afirmou, em nota, que a legislação brasileira a impede de comentar assuntos de inteligência. Procurada, a Abin disse que a informação é sigilosa para “preservar capacidades operacionais”.
Em portfólio apresentado a clientes, a Verint detalha as funcionalidades do GI2. Entre elas, estão “localizar com precisão o alvo usando um dispositivo dedicado de busca sem desativar a capacidade de comunicação do alvo” e “extrair as coordenadas GPS do telefone móvel do alvo em redes GSM e UMTS”.
Outras utilidades do equipamento são “ouvir, ler, editar e redirecionar chamadas e mensagens de texto de entrada e saída”, “ativar remotamente o microfone de um telefone móvel”, “identificar a presença de telefones móveis alvo” e “bloquear comunicações celulares para neutralizar IEDs (Dispositivos Explosivos Improvisados, em inglês)”.
A maleta espiã possui um sistema intricado. Na prática, quando o GI2 é acionado, ele passa a funcionar como uma antena de telecomunicação, e todos os celulares em um raio próximo de 1 km se conectam a ela.
Dessa forma, o operador do GI2 consegue aplicar suas funções contra todos os celulares próximos à região em que se encontra.
Uma função do sistema, porém, permite que o operador da maleta espiã selecione um celular-alvo –e, assim, todos os demais telefones voltam a se conectar com a antena mais próxima.
Após definir o celular-alvo, a maleta consegue extrair os dados e acessar remotamente somente os dados do telefone monitorado, permitindo ao operador ouvir ligações e ativar o microfone do aparelho.
O Parlamento Europeu concluiu em 2023 uma investigação sobre a utilização de softwares espiões entre os países-membros da União Europeia. Parte do documento é destinado a relatar as negociações e suspeitas envolvendo as empresas Verint e Cognyte.
O relatório final do inquérito destaca que a empresa vendeu produtos espiões para governos repressivos, como Mianmar, Azerbaijão, Indonésia e Sudão do Sul. “Neste último caso, o Serviço de Segurança Nacional do Sudão do Sul utilizou equipamento de interceptação da Verint contra ativistas dos direitos humanos e jornalistas entre março de 2015 e fevereiro de 2017.”
O documento ainda diz que a tecnologia GI2, da Verint, foi enviada a uma filial da empresa na Polônia para “fins de demonstração”. “A tecnologia GI2 permite acessar um determinado dispositivo e fazer-se passar pelo proprietário e enviar mensagens falsas através desse dispositivo”, completa.
A reportagem procurou a Verint por ligações, emails e mensagens a funcionários da empresa, mas não teve resposta.
Como funciona a integração de FirstMile e GI2
A Verint Systems é uma empresa israelense que fornece mundialmente serviços e soluções de inteligência para governos e agências. Em 2021, o grupo decidiu desmembrar seu setor de inteligência para a Cognyte Software, que manteve os contratos firmados pela antecessora com diversos órgãos governamentais brasileiros.
Em documentos enviados aos seus clientes, a Verint oferecia a venda dos sistemas SkyLock (antecessor do FirstMile e que fornece o mesmo serviço) e GI2 em conjunto. Na prática, as funcionalidades dos dois produtos são complementares.
O FirstMile utiliza uma brecha no protocolo internacional das telecomunicações, chamado de SS7 (Sistema de Sinalização nº7), para obter acesso da localização aproximada de celulares.
O protocolo funciona da seguinte maneira: quando alguém liga para o celular de outra pessoa, a rede de telefonia precisa localizar em qual antena de celular cada um dos interlocutores está conectado.
A operadora da pessoa que faz a chamada solicita à operadora de quem recebe a ligação a localização da antena. O protocolo é quase instantâneo, e a conexão entre os dois celulares é estabelecida.
Empresas de inteligência encontraram uma brecha nesse protocolo internacional ao descobrir que nenhuma operadora bloqueava os pedidos de localização -já que são muitas as solicitações feitas a todo momento.
Esses grupos viram que seria possível criar empresas de telecomunicação de fachada para solicitar às operadoras reais a localização de celulares.
O FirstMile foi criado nesse contexto. O operador do sistema consegue incluir o telefone de qualquer pessoa na plataforma e, assim, pode realizar o monitoramento em tempo real do celular.
Toda vez que o telefone entra em contato com a antena de telecomunicação ao receber ligação, SMS, ou atualizar serviço, um registro da localização do celular é feito no sistema do FirstMile.
Segundo relatos de pessoas que conhecem o funcionamento do sistema, é possível ainda realizar outros tipos de consulta, como solicitar os números de telefone conectados a uma determinada antena ou estabelecer critérios para receber notificações sempre que algum celular passar por um local predefinido.
O GI2 se torna útil neste momento. Com a localização da pessoa monitorada, obtida pelo FirstMile, o investigador pode se locomover para perto da região e usar a maleta espiã para escutar as ligações feitas pelo alvo ou mesmo ligar o microfone do aparelho sem deixar rastros.
O produto ainda consegue dar a “localização exata do suspeito para detenção, tornando praticamente impossível para os alvos escaparem, não importa o local em que estejam no mundo” -segundo documento da Verint que sugere a venda conjunta dos sistemas.
O Tribunal de Contas da União (TCU) está investigando o contrato do Exército com a empresa que ofereceu a ferramenta israelense usada pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), no governo de Jair Bolsonaro (PL), para monitorar jornalistas, políticos e até ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Firmado com dispensa de licitação, o acordo se deu por meio do escritório de Washington — um mecanismo de compras que é alvo de apuração, segundo o Estadão. A Marinha também tem contratos com a empresa.
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