Quatro
dias de trabalho semanais: quando menos é mais
Cláudio Carraly*
Nos últimos anos, a ideia de uma semana de trabalho de quatro dias tem se consolidado como uma alternativa viável para repensar a organização do trabalho nas sociedades contemporâneas. O debate não se restringe apenas a círculos acadêmicos ou empresariais, ele se espalha por diversos setores da sociedade, impulsionado tanto por novas demandas sociais quanto pelos rápidos avanços tecnológicos. Países como o Reino Unido e o Japão estão à frente dessa tendência, experimentando novos formatos de trabalho que prometem melhorar a produtividade e a qualidade de vida dos trabalhadores, no Brasil, essa proposta também ganha fôlego, com empresas iniciando experimentos desde o ano de 2023.
No entanto, a questão da redução da jornada de trabalho não é um simples ajuste na forma como organizamos nossos dias. Ela está intrinsecamente ligada a transformações econômicas, tecnológicas e filosóficas que desafiam a estrutura do trabalho como a conhecemos. Para compreender a proposta de uma semana de trabalho de quatro dias, é necessário explorar não apenas os números e resultados de experimentos recentes, mas também as raízes históricas e teóricas que iniciaram essa prática de trabalho e agora quais os motivos que dão suporte a essa quebra de paradigma.
A jornada de trabalho de cinco dias por semana, que hoje parece tão comum, é uma criação historicamente recente. No início do século XX, Henry Ford, fundador da Ford Motor Company, introduziu a semana de trabalho de cinco dias visando garantir que seus funcionários tivessem tempo livre para consumir os produtos que fabricavam, o carro era promovido como além de um simples meio de locomoção, sua propaganda utilizava o apelo de liberdade e lazer. Essa decisão tinha uma lógica puramente capitalista, ao reduzir a carga horária, Ford esperava aumentar a demanda dos seus bens de consumo e, consequentemente, impulsionar o ciclo econômico de um produto qu e até então não era produzido em massa.
No entanto, à medida que o século XX avançava, a ideia de uma jornada de trabalho fixa foi sendo questionada por economistas e filósofos. John Maynard Keynes, por exemplo, previu que o progresso tecnológico permitiria que as sociedades desenvolvidas adotassem semanas de trabalho significativamente mais curtas no futuro. Segundo Keynes, a automação e a mecanização aumentariam tanto a produtividade que, no século XXI, seria possível trabalhar apenas 15 horas por semana sem que houvesse perda de eficiência.
Apesar de tais previsões, o que se observou foi uma tendência contrária. Embora a tecnologia tenha de fato aumentado a produtividade, a jornada de trabalho, especialmente em economias capitalistas, permaneceu inalterada ou até se intensificou em alguns setores. Essa contradição entre progresso tecnológico e a manutenção da carga horária coloca em evidência as limitações do sistema econômico vigente, que busca maximizar os lucros à custa da exploração do tempo de trabalho.
Karl Marx, em sua crítica ao capitalismo, já argumentava que a alienação do trabalhador não se dava apenas pela falta de controle sobre os meios de produção, mas também pela relação entre tempo e trabalho. Para Marx, a intensificação da jornada era uma das formas mais eficazes de extrair mais-valia, ou seja, de aumentar os lucros sem necessariamente aumentar os salários. Esse sistema de exploração gera uma relação de dominação entre o capital e o trabalho, em que o tempo do trabalhador é constantemente sequestrado em prol da maximização dos lucros.
Herbert Marcuse, filósofo da Escola de Frankfurt, ampliou essa análise ao afirmar que o progresso tecnológico deveria, idealmente, libertar o ser humano da necessidade de trabalhar longas horas. Em vez disso, o que se observa é a manutenção do "princípio do desempenho", no qual a produtividade e o trabalho são as métricas centrais de valor social. Para Marcuse, uma verdadeira emancipação humana só seria possível se o "princípio do prazer" substituísse o foco obsessivo no desempenho, permitindo uma vida mais equilibrada e orientada pela realização pessoal e plenitude humana.
Um dos grandes paradoxos do avanço tecnológico é a criação de empregos que o antropólogo David Graeber denominou de "bullshit jobs" (empregos inúteis). Em seu livro de mesmo nome, Graeber argumenta que muitos dos empregos modernos são desprovidos de sentido ou propósito, existindo apenas para preencher uma estrutura corporativa que busca expansão contínua, mesmo sem necessidade real.
Esses são cargos cuja função é muitas vezes nebulosa e que, segundo seus próprios ocupantes, poderiam desaparecer sem qualquer impacto significativo na sociedade, normalmente ocupados por trabalhadores que já tem uma tarefa necessária na organização e acumula essas funções sobrecarregando-o, pior, sem a devida compensação financeira. A manutenção desses cargos expõe um dos grandes dilemas do sistema capitalista contemporâneo, embora a tecnologia permita a automação de várias funções, as empresas e instituições continuam a criar empregos desnecessários para sustentar a l&o acute;gica de expansão e consumo.
Esse cenário revela o quanto o progresso tecnológico poderia ser utilizado para reduzir a carga horária e libertar o ser humano para atividades mais significativas, criativas e diruptivas. No entanto, o sistema atual não tem interesse em garantir essa libertação. Ao contrário, ele perpetua um ciclo de alienação, onde a criação de empregos inúteis serve apenas para manter a ilusão de que o trabalho é indispensável para a economia, mesmo quando ele não gera valor real.
Diante desse contexto, a proposta de uma semana de trabalho de quatro dias surge como uma tentativa de reequilibrar a relação entre trabalho e vida pessoal. Em um dos maiores estudos sobre a semana de trabalho de quatro dias, realizado pela organização "4 Day Week Global" em 2022, participaram 61 empresas e cerca de 2.900 trabalhadores no Reino Unido. O experimento registrou resultados promissores, com 91% das empresas optando por manter a semana reduzida após o término do estudo. Além disso, houve um aumento significativo na produtividade e melhorias no bem-estar dos trabalhadores, conforme relatado pelo estudo (The Guardian, 2022).
Em novembro de 2023, 21 empresas brasileiras iniciaram uma fase de teste para a implementação da semana de trabalho de quatro dias, monitorada por sindicatos e organizações sociais. O objetivo é avaliar se a redução da jornada pode ser aplicada sem prejuízo à produtividade e com benefícios para a saúde mental e física dos trabalhadores (Folha de S. Paulo, 2024). Os dados iniciais desses experimentos são promissores, essas empresas que adotaram a jornada de quatro dias relataram não apenas aumento significativo da receita, mas também melhorias profundas na retenção de talentos e da satisfação dos funcion&a acute;rios. Em termos de saúde mental, mais de 40% dos trabalhadores relataram uma redução significativa nos níveis de estresse, enquanto 35% notaram uma melhora na qualidade do sono.
Um dos desafios centrais na integração da semana de quatro dias é a interação com a automação crescente, que leva à substituição de trabalhadores por máquinas e algoritmos em várias áreas. Esse paradoxo aparente — o aumento do desemprego causado pela automação ao lado da redução da carga horária — exige uma abordagem inovadora para evitar a exclusão de trabalhadores do mercado. Uma solução possível é a adoção de políticas de redistribuição do trabalho, na qual o tempo economizado pela automação poderia ser convertido em mais empregos de jornada reduzida.
Assim, em vez de concentrar as horas de trabalho em um número menor de pessoas, as empresas poderiam reconfigurar suas operações para contratar mais trabalhadores em jornadas mais curtas.
Complementarmente, programas de requalificação e educação continuada seriam fundamentais para preparar trabalhadores para as funções que a automação não pode desempenhar, promovendo uma transição que valoriza a mão de obra humana nas áreas mais criativas e significativas.
Apesar dos resultados promissores, existem obstáculos significativos para a implementação em grande escala de uma semana de quatro dias. Setores como saúde, segurança e serviços essenciais enfrentam desafios logísticos mais complexos, uma vez que suas operações exigem atendimento contínuo. Nesse sentido, a semana de quatro dias deve vir acompanhada de uma política pública que permita a transição gradual, ao mesmo tempo em que apoia os trabalhadores com treinamentos e recursos para se adaptar a novos papéis, além da absorção do enorme exército de reserva de desempregados que temos por todo mundo.
Outro aspecto a considerar é a adaptação cultural. Em países como o Brasil, onde a cultura do "trabalho duro" é fortemente associada ao sucesso, a aceitação de uma jornada reduzida pode encontrar resistência tanto entre empregadores quanto entre os próprios trabalhadores. Além disso, existe a questão da equidade: enquanto setores com maior automação e flexibilidade podem adotar a semana de quatro dias com facilidade, trabalhadores em setores mais precarizados ou intensivos em mão de obra podem não ter acesso aos mesmos benefícios. Isso torna essencial a criação de políticas de Estado que ofereçam suporte e inclusão para todos.
A proposta de uma semana de quatro dias representa uma oportunidade única para repensar as relações de trabalho em um mundo cada vez mais automatizado. Com desafios, mas também com grandes benefícios em termos de produtividade, saúde mental e qualidade de vida, esse novo paradigma abre caminho para uma sociedade mais justa, onde o trabalho é parte integrada de uma vida equilibrada e significativa. A adoção de uma semana de trabalho de quatro dias tem o potencial de se tornar um marco na evolução das relações trabalhistas, promovendo um futuro em que o bem-estar e o tempo livre ocupam o centro da vida dos trabalhadores.
*Advogado, ex-Secretário Executivo de Direitos Humanos de PernambucoLeia sobre
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