Para compreender o fascismo tardio
Crítico
cultural italiano adverte: de pouco valem analogias com Hitler ou Mussolini.
Ultradireita bebe nos métodos da dominação colonial e racista, ressurge sempre
que a ordem do capital está em xeque e é convocada pelas democracias liberais…
Lisa
Lowe, no Verso Books | Tradução: Antonio
Martins/Outras Palavras
No mundo contemporâneo, bombas destroem implacavelmente escolas, hospitais e suprimentos de água, expulsando pessoas de suas casas. Medidas de “austeridade” aprofundam os abismos econômicos globais, enquanto governos autoritários submetem os mais vulneráveis, pobres e desabrigados, à violência estatal e ao encarceramento. É um tempo, nas palavras escritas por Antonio Gramsci em uma prisão fascista um século atrás, em que “o velho mundo está morrendo e o novo não pode nascer”; em que os fracassos de uma antiga ordem político-econômica e os “sintomas mórbidos” dos Estados-nação imperiais assolados por crises de legitimação coexistem com alternativas emergentes que lutam para nascer. Ao redor do mundo, multidões vão às ruas para pedir um cessar-fogo em Gaza, protestar contra assassinatos policiais de homens e mulheres negros desarmados na América do Norte, exigir moradia para migrantes e o fim do encarceramento em massa, e proteger cursos d’água e terras da extração e da construção de oleodutos. O caos resultante do regime moribundo traz suas próprias atrocidades e novas formas de terror, mas também torna possíveis novas relações ainda não realizadas. Esses movimentos coletivos – atravessando diversas histórias coloniais e capitalistas, regiões e populações – compreendem condições diferenciadas, mas interligadas, de promessa e perigo que se unem neste momento histórico urgente e que parece às vezes incompreensível.
Leio o livro
erudito, elegantemente pensado e pacientemente argumentado de Alberto Toscano, Late
Fascism [Fascismo Tardio], como um esforço de nos oferecer os
meios históricos e filosófico-políticos para compreender o fascismo em nosso
tempo, ao ajustar as contas com o fascismo na longa duração. Como as linguagens
políticas disponíveis estão saturadas por lógicas liberais, elas frequentemente
velam e obstruem a compreensão do “presente político”. Contribuem para o reconhecimento
equivocado do “fascismo” como espetacular e excepcional, em vez de integrante
do casamento moderno entre democracia liberal e capitalismo. O Late
Fascism de Toscano enfatiza que esse reconhecimento equivocado
é um obstáculo primário para entender, organizar e lutar eficazmente contra as
múltiplas contradições do nosso presente político.
Ao
discutir a natureza e a etiologia do fascismo tardio, Toscano nos leva além dos
exemplos europeus do período entre guerras do “tipo ideal” do fascismo e desconstrói
a suposta oposição entre fascismo e democracia liberal. Enfatizando que o
fascismo não é monolítico ou genérico, e não possui um modelo singular e
estático para o qual possamos identificar analogias ao marcar uma lista de
características, ele argumenta que devemos, em vez disso, abordar o fascismo
como um processo com múltiplas origens, localidades e temporalidades, ocorrendo
dinamicamente em relação a condições específicas. De certa forma (embora ele
não se expresse exatamente assim), Toscano está argumentando que “o fascismo é
uma estrutura, não um evento”, significando que ele não é uma aberração do
período de guerra europeu, nem um estado natural original do qual emerge o
antídoto da liberdade política liberal, mas sim uma característica persistente
da história do liberalismo colonizador e do capitalismo colonial. A democracia
liberal não é o antídoto do fascismo, mas sim sua condição de possibilidade. O
governo fascista pode incluir, mas não se limita exclusivamente a, Estados
autoritários ultranacionalistas. Dentro dos Estados liberais, ele anima a perda
econômica e o abandono social, e armazena energias libidinais atávicas não
resolvidas, liberadas pelas crises e crueldades da ordem social desigual, e as
volta contra outros raciais,
religiosos, sexuais e de gênero.
Toscano elabora
ainda que podemos entender o fascismo como a constelação de formações reativas
através de aparatos ideológicos e estatais, com o objetivo de manter ou
sustentar uma ordem social em decadência. Ele não é separável dos colonialismos,
mas sim intimamente interconectado tanto com o despossessão indígena histórica
e contínua, quanto com o cativeiro e a escravidão nas plantations e
a contrarrevolução; os fascismos se desdobram em oposição e em antecipação a
rebeliões insurgentes que desafiam ou transformam o regime de propriedade
existente, a partir dos povos, locais e regiões onde a ocupação e o governo
tênue foram estabelecidos. Essa é a razão pela qual Toscano se baseia
especialmente nas tradições radicais negras e anticoloniais para teorias
incisivas sobre o fascismo — não apenas para evidenciar que reconhecemos mal o
fascismo, se o limitarmos à Itália de Mussolini e à Alemanha de Hitler, mas
também para argumentar que o fascismo é uma formação ancorada no capitalismo racial
e colonial, que precede e persiste além do exemplo europeu. Entre as muitas
contribuições valiosas do livro, é essa que abordo no restante dos meus
comentários.
Pensadores anticoloniais têm sido os analistas mais incisivos dos fascismos. Em
seu Discurso sobre o colonialismo,
de 1950, o martinicano Aimé Césaire identificou as origens do fascismo no
projeto de subjugação colonial ao afirmar que a Europa só conseguiu reconhecer
a vergonha e a brutalidade da “humilhação do homem” quando empregadas pelos nazistas
contra europeus brancos, algo que “até então havia sido reservado
exclusivamente aos árabes da Argélia, aos coolies da Índia e aos negros da
África”.1 Em Como a
Europa subdesenvolveu a África, o guianês Walter Rodney escreveu
que “o fascismo era um monstro nascido de pais capitalistas… o produto final de
séculos de bestialidade capitalista, exploração, dominação e racismo exercidos
fora da Europa”.2 O George Padmore, de Trinidad considerava o apartheid na
África do Sul como o Estado fascista clássico, e o poeta afro-americano
Langston Hughes frequentemente declarava que as condições enfrentadas pelos
negros na América eram “fascistas”. Em outras palavras, antes que a violência
nazista viesse a epitomar o fascismo, pensadores radicais negros já detalhavam
fascismos associados à despossessão colonial e à escravidão racial.
Toscano invoca A
Reconstrução Negra na América (1935), de W.E.B. Du Bois, como
um texto-chave na análise do entrelaçamento entre fascismo e democracia
liberal. Du Bois argumentou que a escravidão estava no cerne do capitalismo
liberal moderno. A brutal mercantilização de seres humanos pela escravidão não
apenas desmentia as reivindicações de democracia liberal dos EUA. A
possibilidade de rebelião escrava também tinha a força para transformar o
sistema de desigualdade racial violenta que tornava possível aos liberais falar
em “liberdade universal”. Du Bois afirmou que a escravidão não era uma
aberração da democracia liberal nos Estados Unidos; ela era, e continuou a ser,
sistêmica e constitutiva da democracia norte-americana, e da extensão do poder
dos Estados Unidos ao redor do mundo. O livro conta a história de meio milhão
de trabalhadores negros que, por meio de seu êxodo massivo das plantations
escravistas do sul, criaram um ambiente semelhante ao de greve geral. Ele
paralisou o sistema de plantations, derrubou a
Confederação e, forçou o Norte a assumir a abolição da escravidão como sua
causa.
Mas A
Reconstrução Negra acaba por relatar o que Du Bois chama de
“contrarrevolução da propriedade”: o bloqueio da liberdade negra pela
consolidação de uma aliança branca entre industriais do norte e oligarcas do
sul, e a persuasão dos trabalhadores camponeses brancos a se afastarem de uma
aliança inter-racial com os trabalhadores negros. A “contrarrevolução da
propriedade” exemplificou precisamente uma formação fascista que sustentou o
capital branco e a supremacia branca contra uma potencial “insurgência” que
tinha o poder de acabar com a escravidão e o apartheid racial, e que poderia
ter transformado uma ordem social construída sobre a acumulação por meio da
subjugação de seres humanos cativos.
Toscano se
concentra especialmente no que Cedric Robinson chamou de “construção negra do
fascismo”. Ele mostra como teóricos sub-valorizados do fascismo norte-americano
– desde os Panteras Negras no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, até
os escritos e correspondências prisionais dos presos políticos Angela Davis e
George Jackson. Ao fazê-lo, convida a repensar o debate teórico sobre o
fascismo em relação à situação dos negros norte-americanos encarcerados sob o
capitalismo racial. Como presos políticos, Davis e Jackson entendiam o fascismo
como uma forma de contrarrevolução preventiva, usando estruturas
carcerário-judiciais para suprimir ameaças percebidas à ordem social
capitalista estruturada na dominação branca. Em outras palavras, os fascismos
são sinais de crises do capitalismo racial e do excesso imperial, parasitando
tanto as fraquezas da ordem político-econômica quanto a vulnerabilidade da
oposição a ela. Toscano comenta que o fascismo é “reativo, não apenas em
conteúdo social, mas em forma temporal – seja respondendo imediatamente a um
potencial levante revolucionário triunfante ou, de forma mediada, a um desafio
já derrotado ou em declínio”.3
Ao entender que
o capitalismo é inerentemente instável, podemos observar que ele entra em crise
quando a contradição entre acumulação e exploração atinge um nível
insustentável, expresso como superprodução, diminuição dos lucros e desemprego,
por um lado, e o aumento das desigualdades de riqueza, segregação racial e
policiamento de comunidades pobres e não-brancas, por outro. Nos Estados
Unidos, essas contradições produziram dialeticamente antagonismos ao longo dos
anos 1970 que irromperam em movimentos radicais de Poder Negro, Pardo, Amarelo
e Vermelho, greves trabalhistas, rebeliões urbanas e movimentos sociais, desde
feministas negras até anti-apartheid e anti-guerra. A eles, o Estado respondeu
com o aumento da capacidade militar, policial e prisional do Estado. Ruth
Wilson Gilmore nos ensinou muito sobre como essas contradições levaram à expansão
do sistema prisional dos EUA nos anos 1980. Para justificar a si mesmo e seu
monopólio da força, o Estado trabalhou ideologicamente para compelir a
identificação com a cidadania multicultural, e puniu aquelas “ameaças” à
segurança nacional dessa cidadania ao distinguir entre o uso “legítimo” da
força pela polícia e pelas forças armadas, e a violência “ilegítima” da
dissidência e da rebelião.
Embora a
expansão das funções repressivas do Estado tenha multiplicado os espaços em que
as comunidades são tornadas vulneráveis à violência estatal, tal violência não
se restringe apenas ao encarceramento, militarização ou policiamento.
Comunidades racializadas pobres, imigrantes e anteriormente colonizadas têm
sido devastadas pela privatização neoliberal, desregulamentação e extrativismo
que protegem corporações e minam a proteção do trabalho e do meio ambiente
indígena; pela suburbanização e vigilância direcionada de espaços sociais
urbanos; e pelos pânicos morais em torno do “crime urbano”, imigrantes,
mulheres negras e não-brancas e comunidades queer. Essas,
também, são operações relacionadas e implicadas na expansão do Estado
carcerário dos EUA.
Angela Davis e George Jackson, em seus escritos
e correspondências prisionais, discutem a expansão do sistema prisional pelo
Estado norte-americano como uma forma exemplar de fascismo, combinando
capitalismo monopolista, imperialismo e crises capitalistas com a supressão
contrarrevolucionária da dissidência política. Em Late Fascism, Toscano discute uma das cartas da prisão de George Jackson,
em Blood in
my Eye (1972). Jackson escreve:
Quando sou entrevistado por um membro da velha
guarda e aponto para o concreto e o aço, o minúsculo dispositivo eletrônico de
escuta escondido na ventilação, a falange de capangas espiando-nos, seu
gravador de plástico disfuncional que custou uma semana de trabalho, e aponto
que tudo isso são manifestações de fascismo, ele invariavelmente tenta me
refutar definindo o fascismo simplesmente como um assunto econômico-geopolítico
onde se permite que apenas um partido exista e nenhuma atividade de oposição é
permitida.4
Jackson identifica a prisão como um
aparato do fascismo a partir da perspectiva de um prisioneiro político negro
acusado de atividade revolucionária armada, e logo em seguida assassinado por
guardas prisionais. Como prisioneiro político negro, enquadrado como “ameaça”
insurgente ao monopólio da força do Estado, Jackson escreve de forma
transparente sobre a formação contrarrevolucionária do fascismo e enfatiza a
materialidade do complexo industrial prisional, desde as tecnologias de
vigilância até o trabalho desvalorizado do pessoal prisional. Jackson está
comentando sobre o fascismo como o que Gilmore mais tarde chamaria de
“reestruturação do Estado capitalista” enquanto ele tenta avançar mas fracassa.
Gilmore enfatiza que a “solução prisional” do Estado racial americano do
pós-guerra para o fracasso do capitalismo não é um fenômeno isolado. As
decisões de construir prisões que encarceram desproporcionalmente homens e
mulheres negros – e de investir em punição industrial, policiamento e
militarismo em vez de bem-estar público, saúde ou escolas – foram centrais para
uma reorganização estrutural do “cenário de acumulação e despossessão” do
pós-guerra. Como observa Toscano, o fascismo não é apenas uma reestruturação
contrarrevolucionária do Estado capitalista. Também é uma ação incipiente e
antecipatória contra um acerto de contas adiado, suprimido ou em curso.
Alberto Toscano é um dos teóricos
políticos mais significativos e originais da atualidade. Em Fascismo
Tardio, ele lida com um vasto espectro do pensamento antifascista: de Ernst
Bloch, George Bataille e Leo Lowenthal a Angela Davis e George Jackson; de
Stuart Hall e Ruth Wilson Gilmore a Jairus Banerji e Furio Jesi. Os resultados
são reveladores. Ao retratar o fascismo não como um monolito, mas como uma gama
de respostas à crise colonial e capitalista racial, ele ajuda a desalojar o
fascismo do impasse da analogia, fornecendo os recursos para entender
efetivamente nosso presente histórico. Além disso, o exame de Toscano sobre a
longa duração do fascismo refere-se à colonialidade do presente. Nas palavras
de Cedric Robinson, ele “ressuscita eventos que foram sistematicamente apagados
de nossa consciência intelectual”,5 e nos permite entender nossas
condições presentes de uma nova maneira.
Notas:
1 Discurso sobre o colonialismo, Monthly
Review Press, 1955/1972.
2 Walter Rodney, Como a Europa
subdesenvolveu a África, Verso Books, 1972/2018.
3 Toscano, p34.
4 George Jackson, Sangue em Meu Olho,
citado em Toscano.
5 Cedric Robinson, Uma Antropologia do
Marxismo, Ashgate, 2001.
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