Muitos eus
Abraham B. Sicsú
Mini série no streaming. Enciclopédia de Istambul. Nada excepcional, mas agradável para passar horas. Um fato me chama a atenção. Não passa despercebido, fico refletindo.
Uma jovem interiorana
vem para a cidade grande. Precisa ser aceita, se fazer presente na vida
universitária. De religião islâmica, sua fé é um empecilho para ser reconhecida
num grupo de teatro. Esconde, não usa o véu, nem burca. Vida dupla, a das
orações, da fé que professa, a da academia e seu grupo, em que quer ser aceita.
Contradições, crises interiores. Vida desconectada, dois mundos que não se
falam.
Sexta feira à noite.
Minha companheira me convidada para ir ao cinema. Abrirei mão da cervejinha na
Mercearia do Seu Artur, da música de Romero. Aceito. Um filme que me instiga.
O Diretor Marcelo
Gomes, de filmes sempre provocativos. Lembro de Cinema, Aspirinas e Urubus, seu
primeiro filme. O atual, com a participação de um grande neurocientista,
Sidarta Ribeiro, conheci nas lides acadêmicas e tenho o maior respeito por ele.
“Criaturas da Mente”,
tema complexo, nada simples de compreensão o tema. Mas feito de uma maneira
leve e bem agradável de ver.
Mexeu comigo.
Documentário que nos mostra o quão o mundo e, principalmente, nós mesmos, somos
desconhecidos. Uma frase não sai de minha cabeça. “Eu sou muitos eus dentro de
mim”.
Não é no mundo
exterior, mas naquilo que internamente ocorre e somos. A vida “concreta”, os
sonhos, a incorporação de entidades, os transes, viver exige diferentes
personagens, diferentes atores que representamos em nosso cotidiano, na vida
dita real e no inconsciente que nos conduz.
Interessante notar
que na antiguidade essas vidas eram aceitas, nos gregos e nos egípcios, por
exemplo, há vasta literatura sobre o assunto.
Também, nos povos
originários, indígenas e aborígenes, valorizados, vidas paralelas que seriam
vividas sem culpa, integradas às atividades corriqueiras, interpretadas por
pajés e xamans, jamais desprezadas, jamais ironizadas.
As amarras sociais
sufocam, nos enquadram, nos tiram a liberdade de ser, nelas estamos no dia a
dia, convenções que nos impedem de ser nosso eu desejado momentâneo, que nos
obrigam a assumir identidades que não nos identificam, que são exigidas por um
meio tolhedor que nos enquadra.
Não se sabe ao certo
o que são os sonhos, mas, sem dúvida, tem importância crucial para a vida
humana.
Sempre foram
interpretados. Eram, vistos como sinais divinos, como profecias. O inconsciente
analisado e vivenciado, como um mundo em que as amarras sociais podem
desaparecer, em que somos um eu em sua plenitude, longe das convenções, longe
das repressões que nos sufocam. Ou não?
A psicologia, desde
Freud, tornou campo de estudo privilegiado, as forças internas, chamadas
pulsões, a energia mental que precisa ser extravasada.
Procurando entender
as áreas e funções do cérebro humano, mais recentemente, a neurocirurgia tem
tido seu foco de estudos voltado para os
sonhos.
Sono e sonho são
preocupações atuais. Entendidos como reflexos de processos cerebrais, muitas
vezes complexos, caminhos para abordar experiências traumáticas ou de perdas de
memória. Sua compreensão, para uma corrente importante dos profissionais da
área, pode ser o caminho para uma vida mais saudável.
Nesse contexto se
enquadra Sidarta, sua experiência como profissional da área é a linha mestra
dos relatos feitos.
O documentário
apresenta bases sólidas de interpretação. Inclusive junguianas, dando ênfase à
importância de arquétipos e do inconsciente coletivo.
Mas, não só, não é um
filme de relatos científicos, está fortemente assentado em vivências e em meios
que nos levam a conhecer nossos eus interiores.
Sem receitas
pré-fabricadas, sem certezas absolutas, mostra caminhos utilizados, alguns de
tradições milenares para descobrirmos o que e para que somos. Nestes, três se
destacam além dos sonhos e me impactaram: a incorporação de entidades, os
transes e os alucinógenos.
Os rituais das
culturas das religiões afro, o incorporar de entidades, as mensagens deles
advindos, mostrados com muito respeito e consideração.
Os médiuns e os
transes, o poder que alguns seres humanos possuem. As pessoas mais sensíveis e
predispostas a uma busca de contatos espirituais que levem a outros espaços, a
outras verdades que só são desvendadas por essas conexões. Caminhos importantes
para melhor nos conhecermos enquanto sociedade.
As experiências
alucinógenas, desde os rituais com ayahuasca até os menos impactantes como os
com a jurema. Rituais secretos que permitem entrar em contato com eus muitas
vezes desconhecidos, mas que são parte de nossa personalidade. Experiências
fortes, impactantes, em geral secretas.
Fico pensando na mini
série assistida e de como, quase sempre, escondemos personagens que somos em
prol da aceitação de um mundo socialmente vigiado. De como deixamos de viver a
riqueza que nós somos em prol de algo que nos subjuga, nos torna “hipócritas”.
Muito bom o
desenrolar do filme, o mostrar de que sonhos devem ser vividos, se possível
revisados, que eus não devem ser
escondidos.
Sonhos acordados
existem. E nisso temos muito a dizer em nosso País, em nossa região. Podemos
mostrar que, pelo menos, em cinco dias ao ano deixamos tudo sair, somos o que
queremos na busca de procurar nossos diferentes perfis desconhecidos. Assumimos
nossos personagens encobertos. Carnavais, explosões que nos expõem, intensos,
vividos em plenitude.
Assistir o
documentário, uma experiência que muito diz, que pode ajudar a nos conhecer.
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[Ilustração: Alexandr Ilichev]
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