Boa Vista tem mercado
Abraham B Sicsu
Um ritual, todo
sábado. Morei no bairro por mais de quinze anos. Mercado da Boa Vista, bar do
Roberto. Era proibido faltar, um compromisso com o bem viver.
O Mercado tinha
árvores, mangueiras, sapotizeiro. Em baixo de suas copas se esparramavam mesas
e cadeiras. Lugar fresco e arejado. Oito ou dez boxes e seus clientes. Nada
padronizado, era diferente do que hoje é. Não era esse mar de guarda-sóis e
cadeiras uniformizados que fazem os clientes se apinharem e perderem sua
individualidade. Para os saudosistas, infelizmente, assim se tornou após a
reforma de início de 2020.
Roberto se foi há
pouco. Foi chamado lá para cima. Acredito que para o bar da música brega,
comandado por Reginaldo Rossi.
Era um técnico
experiente em telecomunicações, percorreu toda a América Latina, cansou e abriu
um bar no nosso mercado. Simpático e falador, sempre nos atendia com muito
carinho, um mais que amigo querido.
Geraldo, nosso garçom.
Eterno desempregado, com problemas familiares, tinha um filho paralítico preso.
Segredo que com nós compartilhava. O mercado era seu bico, também sua terapia.
Éramos solidários e ajudávamos quando podíamos, mas, sabíamos que não tínhamos
como fazer muito. Só o consolo e uma ajudinha pecuniária mais que lhe bastavam.
Eu era o primeiro do
nosso grupo a chegar, lá pelas dez da manhã. Tudo começava assim:
-Tem patinho? (Para
quem não sabe é um prato de feijão preto bem temperado, feito com um enorme
osso de boi com muita carne nos seus interstícios)
-Está ótimo Doutor.
- Então traga um
arrumadinho de carne de sol, com cubos de queijo. Não se esqueça de meu rum com
gelo e a coca.
Nada inventivo, mas
achava graça e repetia, semana após semana.
Roberto ganhou o
Primeiro Festival de Boteco, com o patinho como carro chefe. Não sei como, era
gorduroso demais, mas lá havia um banner que atestava a façanha.
Temos que confessar.
O bar tinha seus desencantos. A cerveja não era gelada, às vezes quente, a
comida sem grande qualidade e o cardápio nunca mudava. A rotatividade da
cozinha era grande, movida apenas pelo baixo salário do cozinheiro. Mas, a
afetividade do dono e a cumplicidade do garçom inigualáveis.
Em seguida, chegava
Izaías. Com uma pilha de livros e revistas para me doutrinar. Pensamos muito
diferente, mas somos grandes amigos. Aceitava com prazer, teria leitura para o
mês todo.
Antes de lá se
acomodar, o bom companheiro, tinha passado na Padaria Santa Cruz e comprado um
monte de biscoitinhos salgados para nosso tira-gosto. Roberto não achava ruim,
ria, achava graça, até incentivava.
Mais um pouco, chega
o Professor Policarpo. Tinha feito compras na rua da Imperatriz. Sua presença
nos trazia luzes sobre a sempre caótica situação da economia brasileira. Mais
sofisticado, pedia peixe, acepipe não usual do mercado, mas, importante para os
cuidados anti-gorduras que praticava. A cachaça e o caldinho, aceitava com
gosto e não dispensava.
O mais famoso de nós,
Doutor Gerson, só aparecia lá pelo meio dia, 5 ou 6 runs tendo se passado e
muita mentira já tendo sido dita. Perdia coisas boas da festa, mas sua presença
era fundamental. Sem ela pouco saberíamos dos movimentos culturais da cidade.
Conhecíamos os outros
barraqueiros, principalmente Dona Maria, que tinha um belíssimo bode guisado e
uma cerveja bem gelada. Vez ou outra pedia a Geraldo para pegar um prato de
frios na mercearia bar em frente ou o caprino de Maria.
A mesa estava
formada. O quarteto era a essência. Claro que outros se aprochegavam e tínhamos
gosto disso. O que não podia acontecer era alguém do quarteto faltar.
A cidade tem seus
personagens, pelo mercado passavam, conosco se confraternizavam.
A professora
cordelista que a cada semana mostrava um texto novo no formato dos livrinhos,
lindos, o cantor famoso que dizia poder tomar duas cervejas apenas para não
prejudicar as cordas vocais, o outro Geraldo que nunca colaborava
financeiramente no fechar da conta, saia momentos antes, o professor
universitário, frustrado com os alunos, que queria ser e se tornou escritor, os
políticos que apareciam na véspera das eleições. Éramos um pólo de atração,
nossa mesa sempre ponto de parada.
Ia chegando o
Carnaval. Temos um Bloco famoso, “Nem sempre Lilly toca Flauta”. Gerson é o
Presidente vitalício. Eleito por ele mesmo. Saíamos, nos primórdios, do Pátio
de São Pedro. Passamos para o Mercado da Boa Vista. Agrega milhares, quiçá
milhões (?), de foliões.
Grande festa para os
donos de barracas do local. Bom faturamento à vista. Dois ou três meses antes
da data, Roberto começava a me perguntar e eu, com ares de autoridade,
respondia:
- Doutor, este ano
vai ter Lilly?
- Claro, mantemos a
tradição. Será no Mercado.
- Gerson confirma?
(Sempre esquecia de perguntar antes a ele)
- Se o Conselho
Consultivo, Policarpo e eu, decidimos, só cabe a ele seguir.
Ainda bem que nosso
Presidente nunca me ouviu falar isso. Duas hipóteses eram possíveis, poderia
ficar bravo ou dar muita risada. Não tenho certeza qual a mais provável.
Na data momesca era
impossível entrar no Mercado. Apinhado de gente. Mesa nem pensar. Acho que
tinha gente que acampava de um dia para outro para não perder o lugar. Mas,
tínhamos nosso cúmplice, tratamento preferencial.
Geraldo entrava nos
diferentes boxes e sempre arrumava uns banquinhos. Duas caixas de engradados de
cerveja e estava composta a mesa. Da bebida nós tratávamos. Tínhamos
autorização para abrir a geladeira e pegar cerveja e gelo. A confiança era
total, sentíamos que viraríamos sócios algum dia.
A festa era animada.
Seis ou sete músicos da melhor qualidade, coral feminino de fazer inveja. A
mesa principal com umas vinte pessoas sentadas, cento e poucas ao redor
tietando. A multidão acompanhava o coro. Sonho que se concretizava.
Pedimos ao Guinness
Book o reconhecimento. Como ficávamos mais de três horas no local, sentados,
com certeza, éramos o Maior bloco estacionário do mundo. Impossível se mexer
muito. No máximo alguém dava uma volta na mesa para esticar as pernas. Até hoje
não tivemos resposta.
Domingo não abria o
bar do Roberto. Gostávamos de continuar a farra, íamos para o de Leléu. Com sua
música insuportável, com a falta de tira-gosto, com o administrador do mercado
dizendo que era hora de fechar. Demorava muito para isso acontecer, éramos o pretexto,
não se pode expulsar os clientes. Razão para mais algumas cervejas.
Se na Encruzilhada
criei o vício de sábado ser dia de mercado, na Boa Vista ele se tornou
indispensável. Fizemos amigos, conhecemos gente e suas diferentes formas de ver
o mundo. Além, é claro, de nos embriagarmos e empanturrarmos, razões mais que
suficientes para nos alegrarmos.
Espaço democrático,
onde não havia discriminação. Onde a fraternidade imperava e a solidariedade
também. Jamais deixávamos de atender a um passante que pedisse um copo de
cerveja, ou a um desesperado que quisesse tomar um trago de Pitú. Só não podiam
nos enganar dizendo que o trocado era para comprar um pão.
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Leia uma crônica de Ruy Castro https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/uma-cronica-de-ruy-castro_16.html
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