24 maio 2025

Uma crônica de Abraham Sicsu

Mercado da Encruzilhada, lá estive aos sábados
Abraham B Sicsu  

Manhã chuvosa. Parecia a época da Pandemia. Solitário em minha cadeira reclinável pensava em tempos idos. “Recordar é viver, eu ontem sonhei com você”, tempos felizes vividos, espaços jamais esquecidos, nosso Mercado de farras.

Sábado sempre foi dia de mercado público. Desde o início dos anos oitenta não deixo de ir. Evitava viagens, outros compromissos, era meu espaço de prazer, de animação. Aonde me sentia acolhido, aonde fiz grandes amigos.

1980, mudei para Ponto de Parada, bem pertinho da Encruzilhada e do estádio do Arruda. Lá morei onze anos, lá me estruturei, lá mantive amigos, lá tive meus filhos.

Na Almirante Noronha de Carvalho, com o vizinho Moacir, tomávamos todas, “decidíamos” o futuro do pais, divergíamos , mas éramos inseparáveis. “Rua do Governador”, como era conhecida, onde as crianças brincavam, com vacaria na Gerson de Barros Piangé, verdade, com leite batizado com água, com hortas que nos forneciam verduras.

Mercado da Encruzilhada. Cinco ou seis bares, conhecia todos, no seu interior. Elegi um como meu ponto de cachaça. Bar Academia do grande Eduardo, o da ponta, junto à sapataria.

Eduardo, um português que aqui chegou. De forte complexão física, poderia ter sido um lutador peso pesado, mas de uma doçura incomensurável. Ficamos grandes amigos.

No Academia, freqüentadores permanentes. Grupos que eram assíduos, que não sobreviveriam sem uma boa dose e um bom tira-gosto. Dois grupos me impressionavam.

A Turma das Seis, tinha até camiseta personalizada, de madrugada chegavam um pouco antes do horário, após noitadas de farras. Para o café da manhã. Como eu ia comprar peixe ou galinha, bem cedinho, sempre os encontrava.

Café nada leve, cará com carne guisada, inhame com galinha ao molho, macaxeira com um porquinho bem gorduroso. Não podiam parar, cerveja e cachaça para acompanhar. A boca entortava, difícil entender os pedidos que faziam, mas, fieis, não faltavam. Saiam lá pelas oito, prontos para apagar e se entregar aos braços de Morfeu, deus dos sonhos.

Outro, o dos velhinhos das onze horas. Tinham mesa reservada. Só sentava quem tivesse mais de setenta, preferencialmente oitenta. Na época os achava muito velhos. Nas mesas ao lado podíamos escutar as conversas. Cerca de dez senhores que toda semana lá se encontravam.

Conversas com muitas mentiras. A memória falha e os fatos são bem distorcidos.

Ver o Zeppelin chegar ao centro do Recife era recorrente. Afirmavam com convicção, perto da Conde da Boa Vista?? 

Afirmar que houve uma batalha entre os Generais Marshall, americano, e Von Rommell, alemão, que foi vencida pelo americano, outra conversa que vaticinavam como verdade histórica??

As histórias se repetiam e as horas passavam. Perto da uma hora da tarde, chegavam os filhos para levá-los para casa, bêbados, é claro. O difícil era tirar um que andava em cadeira de rodas e sempre queria uma saideira após a outra.

Lembro de uma ida a Portugal. Eduardo insistiu que fossemos, eu e o amigo Poli, à sua Vila, perto de Coimbra. Fomos recebidos como reis, com direito a “chanfana de coelho” e muito vinho. Outra hora conto essa efeméride.

Para Eduardo, os amigos portugueses mandaram muito bacalhau, três quilos, e umas dez garrafas de vinho, produção em quintais dos conterrâneos de Castel Viegas. O Bacalhau chegou, o vinho foi consumido no caminho. Sobraram duas garrafas. Também, foram enviadas duas  ou três garrafas de azeite que afirmavam ser o melhor do mundo.

Chegando ao Recife, entregamos a encomenda. Eduardo, feliz, nos convida para um “banquete”, no Mercado. Perplexos aceitamos, mas não entendemos ao certo do que se tratava.

Uma sexta feira à noite, mercado fechado, entramos por uma porta lateral, escondidos, dois casais, Moacir, eu e nossas companheiras. Num dia de lua cheia, no centro, entre os bares e as lojas de aviamento que lá existem, uma mesa bem posta com toalha chique, talheres e pratos, além das taças para o elixir de Baco.

O prato principal, um bacalhau ao forno, aquele que trouxemos, com batatas, tomates e azeitonas, em postas bem altas, regado com muito azeite português, também trazido por nós. Noite inesquecível.

A saída, pela direita com a grade semi levantada, como se fossemos clandestinos, enriqueceu mais a aventura. Uma aventura gastronômica por demais prazerosa.

Faz muito tempo que não encontro Eduardo. Vendeu o bar faz alguns anos. Soube que foi gerente de suprimentos do Hospital Português. Outro dia, perguntando ao dono do Bragantino, outro estabelecimento do mercado, me informou que ele está bem, continua casado com uma procuradora, hoje aposentada, mas não aparece mais no Mercado.

Sinto saudades daqueles tempos. Não existia isolamento, o conviver fraterno era motivação de vida feliz.

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