03 agosto 2018

Uma crônica para descontrair


Diálogo atravessado
Luciano Siqueira, no portal Vermelho

Dei sorte, imaginei. Fazia tempo que não viajava sozinho numa fileira de três assentos.
No assento ao lado, acomodei o iPad, pus o celular para recarregar e deixei o da janela livre. E segui lendo ‘Biografia da nação’, de José Carlos Ruy.
Uns quarenta minutos de voo transcorridos, tive que acolher a contragosto um companheiro de viagem, que me pediu licença e ocupou o assento F, à janela. Talvez da idade do meu neto Miguel, 12 anos, simpático mas excessivamente falante.
(É da índole do pré-adolescente interromper a leitura da gente durante uma viagem e introduzir a sua "pauta" sem pedir licença. Já me aconteceu algumas vezes...)
Deu-se então um diálogo atravessado por pausas prolongadas com o inquieto passageiro.
— Por que o senhor risca o livro?
— Não "risco", sublinho algumas passagens que considero importantes e faço anotações na página.
— Tem pouca coisa importante nesse livro?
— Tem muita, o livro todo é importante.
— Mas tem página que o senhor "risca" e outras o senhor não "risca" nem anota...
— Mas as partes que anoto ajudam a pensar no todo que li.
— E por que o senhor para de ler e escreve aí (apontando para o iPad)?
— Porque preciso resumir umas partes e escrever sobre elas depois.
— O senhor é escritor?
— Não. Tenho dois livros publicados, mas não me considero escritor.
— Eu pensava que quem escreve livros é escritor.
— Não é bem assim. Escritor vive de escrever, eu escrevo muito mas trabalho em outras coisas.
— O senhor estudou pra trabalhar em quê?
— Sou médico, mas não trabalho como médico. Ajudo no governo da minha cidade, sou vice-prefeito do Recife.
— Prefeito não pode ser médico?
(A essa altura somos avisados de que se iniciam os procedimentos para pouso no Aeroporto dos Guararapes e uma voz feminina o convoca: "meu filho, volte para o seu lugar").
— Dá licença? Olhe, acho o senhor muito estranho, viu?
— Estranho?
— Não entendi nada. O senhor escreve e diz que não é escritor, fala que é médico mas não trabalha como médico...
— Tá bem, amigo. Se a gente se encontrar novamente eu tentarei explicar. Foi um prazer te conhecer. Meu nome é Luciano.
— Eu sou Genivai. Tchau!
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