03 maio 2020

A arte do futebol


União do talento e do acaso proporcionou golaços de craques
Hoje, jogadores medíocres têm a desculpa de que estão bem marcados
Tostão, Folha de S. Paulo

Enquanto cresce, assustadoramente, o número de mortos no Brasil, clubes, federações, CBF e alguns governantes discutem, de uma maneira irresponsável, a volta do futebol ainda neste mês.
Além do grande número de pessoas necessárias para trabalhar em um jogo, mesmo sem público, existe um risco de torcidas irem para a porta dos estádios. Pior ainda será o estímulo para outras aglomerações.
Dias atrás, assisti, pela TV, a Barcelona e Bayern, pela Liga dos Campeões da Europa de 2015, título conquistado pela equipe espanhola. Foi equilibrada, na posse de bola e nas chances de gol criadas, mas terminou 3 a 0, com dois gols de Messi e um de Neymar, em um passe de Messi.
Mesmo muito bem marcado por Rafinha, Neymar mostrou porque Messi faz tanta força para o Barcelona recontratá-lo. Os dois se entendiam pelo olhar, pelo movimento das pernas. Com Neymar, Messi vai brilhar mais, e o time terá muito mais chance de ganhar títulos.
Vi, também, pelo SporTV, a vitória da Argentina sobre a Inglaterra, por 2 a 1, na Copa do Mundo de 1986, com dois de Maradona, um com a mão e outro magistral, considerado o gol mais bonito de todos os mundiais. Já vi Maradona e Messi fazerem outros gols tão bonitos, mas, quando acontece em uma Copa, fica mais maravilhoso. Em 1986, a Argentina foi campeã do mundo.
Valdano, companheiro de Maradona na seleção de 1986, hoje um pensador do futebol, disse que Maradona contou a ele que, quando recebeu a bola no próprio campo, pensou em passá-la ao companheiro. Apareceu um inglês à sua frente, e ele foi obrigado a driblá-lo. Quando quis dar o passe, outro inglês surgiu, e ele teve de driblá-lo novamente. Assim, sucessivamente, ele driblou vários ingleses, inclusive o goleiro, e fez o gol. Foi a união de um fenomenal talento com circunstâncias, uma sucessão de acasos.
Gostaria de rever, na íntegra, um dos jogos entre Botafogo e Santos, no Maracanã, com Pelé e Garrincha. Eram mais espetaculares que as melhores partidas entre as atuais e principais equipes do mundo. Como os times brasileiros dos últimos anos não estão no nível dos melhores do mundo, os jovens não viram, nos estádios, o que é um jogo tão espetacular. Por isso, ficam tão fascinados com o Flamengo atual, que joga um futebol que não conheciam.
Muitos dizem que mesmos os melhores jogos do passado eram lentos e que os craques tinham muitos espaços para brilhar. É verdade, mas os grandes espaços serviam também para os jogadores mostrarem suas limitações e deficiências. Jogadores medíocres não enganavam. Hoje, há a desculpa de que estão bem marcados.
Quando adolescente, em 1958, assisti, no Independência, junto a meu pai, a uma partida entre Atlético e Botafogo. Meu pai era americano doente, mas ele e eu queríamos ver Didi, Garrincha, Nilton Santos e outros. O técnico era João Saldanha. O primeiro tempo terminou 4 a 0 para o Galo. O jogo acabou 5 a 4 para o Botafogo. Eu babava na arquibancada.
Não temos tudo o que desejamos. Muitas coisas que queremos são perdidas. Por pouco, por vários quases, por acasos, a vida se transforma. Se eu não tivesse tido problemas no olho, teria jogado a Copa de 1974 e não teria sido médico. Por detalhes, retornei ao futebol, como comentarista. Se ainda atuasse como médico, estaria de alguma forma na guerra contra o coronavírus. A luta continua em meu isolamento social.
"A vida dá muitas voltas. A vida nem é da gente" (João Guimarães Rosa).

[Ilustração: Aldemir Martins]

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