Hipocrisia
e ciência
Cícero Belmar*, na
Revista de Crônicas Rubem
Para se livrar de tanta notícia punk sobre a pandemia, você
procura uma novidade diferente para ler e depara com esta, que tanto dá para ri
quanto para chorar: o Supremo Tribunal Federal, reunido de forma remota, por
videoconferência, anulou a restrição de doação de sangue por homens gays. Foi
uma decisão histórica, tomada no dia oito de maio.
Dá para rir de alegria porque
comprova que a razão, a ciência e o humanismo foram superiores à ignorância, o
autoritarismo e a demonização do ser humano. Mas também dá para chorar porque é
impensável que até o mês de maio do ano da Graça de 2020, do terceiro milênio
Depois de Cristo, o Brasil ainda insistia em manter regra de ideologia
medieval.
Detalhe importante: o
julgamento só ocorreu porque o ritmo de doações foi reduzido, devido à pandemia
da covid-19, resultando na queda dos estoques dos bancos de sangue no País.
Então, a Defensoria Pública da União pediu agilidade no caso que estava parado
desde outubro de 2017.
Por mais que deixe de existir,
a restrição de doação de sangue por parte dos homens gays continuará sendo uma
nódoa da sociedade brasilDá pra rieira.
Essa restrição foi criada
quando ainda se pensava que a Aids era a espada da ira divina voltada para o pescoço
de quem gostava de pessoas do mesmo sexo. Essa opinião doentia ditou,
inclusive, parâmetros do que é certo e errado, serviu de base para decisões de
governo e fez a cabeça de muita gente sobre o padrão de “normalidade”.
Era a década de 1980 e o fundamentalismo
mostrava as garras, querendo escolher e unificar um modelo de ética para o
comportamento social. O argumento do sangue gay, na época, veio a calhar. Dizer
que ele era contaminado teve eficácia garantida. Conservadores (de ontem, hoje
e sempre) querem uma sociedade abstrata, formatada, baseada numa educação
puritana de uma elite branca e heterossexual. Para esses, existem dois sexos: o
lícito e o ilícito.
Quem pratica o ilícito não faz
parte dos “eleitos”. Muitos fundamentalistas se sentem no direito de pedir a
expulsão, do Paraíso, desses “impuros e pervertidos”. Não são poucos os que
lançam o homossexual no limbo do inferno da sociedade. Quando a epidemia da
Aids foi conhecida, encontrou eco nessa hipocrisia, que é prima-irmã da
ignorância. O sangue dos gays foi rejeitado.
Essas pessoas entendem que a
experiência humana só admite o heterossexual, como se a natureza impusesse uma
sexualidade. Para essas, é melhor aceitar uma tirania do que um
homossexual. Julgam e condenam, sem admitir o contrário. O pior é que, em
muitas vezes, a hipocrisia vira ciência.
Se isso serve de consolo, já
houve épocas bem piores na história da nossa civilização. Não faz muito tempo,
autoridades de saúde tratavam a diversidade da orientação sexual como doença
mental. Em diversos países “o crime nefando” era previsto em lei, cujas
penalidades iam do cárcere à condenação à morte.
Tudo isso é lamentável, mas
também contraditório. Sabe por quê? As pessoas são ambíguas quando acham que a
“sociedade” tem que ser viril. Não tenho dúvidas de que a opção pela
virilidade, nesse caso, é apenas o objeto do desejo sexual de quem pensa assim.
Um desejo que pode ser
inconsciente, mas existe de fato. Nesse caso os conservadores, homens ou
mulheres, que querem uma sociedade viril, certamente a-do-ram uma testosterona.
Só se sentem realizados num ambiente de machões e machistas.
Hoje, quando esperamos o fim da
pandemia, para “começarmos uma nova era”, temos que pensar nessas coisas. Até
por que o novo tempo, que é tão aguardado, não vai se instalar enquanto a
gente não se permitir às mudanças interiores. Nada vai acontecer enquanto as
liberdades pessoais, inclusive a sexual, continuar sendo uma prisão.
*Cícero Belmar é
escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças
de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana
de Letras.
[Ilustração: Paul Klee]
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