Coronavírus: testes rápidos
em farmácias confundem mais do que informam
Em artigo para a
Revista Questão de Ciência, cientista discute os riscos da liberação de testes
rápidos para detectar o coronavírus em farmácias
Natalia Pasternak
A
Agência Nacional de Vigiância Sanitária (Anvisa) decidiu liberar a realização
dos chamados “testes rápidos” para detectar anticorpos do novo coronavírus (Sars-CoV-2) em farmácias. A nota técnica
publicada pela agência determina que os resultados dos testes realizados nesses
estabelecimentos deverão ter “registro e rastreabilidade” garantidos, e os
resultados devem ser informados às autoridades. Mas, afinal, o que os
resultados desses exames dizem?
Não muita coisa. A própria nota da Anvisa sobre a liberação adverte
para as limitações do procedimento. Diz o texto: “O diagnóstico de Covid-19 não
deve ser feito por uma avaliação isolada dos resultados dos testes rápidos. No
estágio inicial da infecção, falsos negativos são esperados, em razão da
ausência ou de baixos níveis dos anticorpos e dos antígenos de Sars-CoV-2 na
amostra. E o resultado do teste positivo indica a presença de anticorpos contra
o Sars-CoV-2, o que significa que houve exposição ao vírus, não sendo possível
definir apenas pelo resultado do teste se há ou não infecção ativa no momento
da testagem”.
Existe muita
confusão, na opinião pública, entre os “testes rápidos” que permitiram à Coreia
do Sul rastrear e controlar a epidemia com grande eficácia, e os “testes
rápidos” disponíveis no Brasil. A verdade é que se tratam de tecnologias muito
diferentes, com finalidades e eficácia muito diversas. Vamos entender isso.
Testes
rápidos com RNA ou anticorpos
Existem dois tipos de
testes chamados “rápidos” para Covid-19. O teste rápido molecular, que foi
usado na Coreia do Sul, é uma variação rápida do exame considerado o padrão
ouro para detecção do material genético (RNA) do vírus, o RT-PCR. Este teste,
feito do modo convencional, demora algumas horas. Suas versões rápidas,
vendidas por empresas como a americana Abbot ou a sul-coreana Seegene, reduzem
esse tempo.
Ambos,
o lento e o rápido, são testes precisos e feitos a partir de uma amostra do
nariz e/ou garganta do paciente, coletada por um “swab”, o cotonete de haste
longa que precisa ser introduzido na garganta. Para fazer essa coleta, é
necessário treinamento especializado e equipamento de proteção individual
(EPI). Requer um laboratório adequado, e profissionais capacitados.
Nenhum teste é
perfeito, e fatores que podem interferir, gerando um falso negativo (isto é,
uma falha do teste em detectar o RNA), incluem erros na coleta – é difícil usar
o swab, e o procedimento é extremamente incômodo para o paciente – e também
acondicionamento inadequado da amostra. Ora, o RNA é uma molécula que degrada
com muita facilidade.
Como
os países que usaram esse teste com sucesso fizeram para superar esses
problemas? Testaram várias vezes o mesmo paciente. E usaram o resultado para
isolar os pacientes e rastrear e testar seus contatos, gerando assim um retrato
da progressão da pandemia.
Este aí, o RT-PCR, é
o “teste rápido” que não temos no Brasil. Por aqui, temos só a versão clássica
desse exame, que é lenta, feita exclusivamente em laboratórios e em hospitais
capacitados.
O outro “teste
rápido”, que é o que a Anvisa autorizou nas farmácias, é o sorológico, que mede
anticorpos contra a Covid-19. Detecta dois tipos de anticorpos, o IgM, que
começa a ser produzido aproximadamente 12 dias após a infecção, e o IgG, que
passa a ser produzido depois de aproximadamente três semanas, e perdura no
organismo, conferindo o que chamamos de memória imunológica. Após algumas
semanas, o IgM diminui, e com o tempo sobra só o IgG.
Esse teste não
detecta a presença do vírus, ele
só pode dizer se a pessoa já teve contato com o vírus e desenvolveu anticorpos
em número detectável. Por ser mais barato e fácil de usar à primeira vista,
parece muito atraente. Mas é preciso esclarecer qual sua real utilidade. O
teste rápido pode ajudar a mapear quem já teve a doença. Mas não serve para fazer diagnóstico preciso,
nem para liberar pessoas da quarentena.
As limitações
do teste rápido sorológico
Como mede anticorpos,
ele só vai funcionar depois de 10-12 dias da infecção. Assim, perde a janela
inicial, onde pacientes
assintomáticos ou com sintomas leves estão transmitindo o
vírus.
A sensibilidade
(capacidade do teste de evitar falsos negativos) e a especificidade (capacidade
de evitar falsos positivos) desses testes variam muito. Existem diversas marcas
no mercado, e, como não há regulamentação e validação adequadas, não temos como
garantir a qualidade do teste. Reino Unido e Espanha compraram lotes de testes
da China que não funcionavam como prometido.
O transporte dos kits
de teste sem o acondicionamento adequado pode degradar reagentes, e até
temperatura e umidade do ar podem fazer diferença.
Finalmente, a
interpretação dos resultados requer cuidado. Um resultado negativo pode indicar
que a pessoa nunca teve contato com o vírus, ou pode ser erro do teste (falso
negativo). Um resultado positivo para IgM pode acontecer quando a pessoa ainda
está com o vírus, ou algumas semanas depois do fim da doença. Um resultado
positivo para IgG sugere que a pessoa teve o vírus e se recuperou, mas não
garante imunidade.
Sabendo de tudo isso, para que servem e para que não servem os
testes rápidos disponíveis no Brasil?
Diagnóstico precoce: não servem. A
janela de produção de IgM varia muito e a quantidade produzida também. Mais: a
sensibilidade e especificidade podem gerar falsos negativos e falsos positivos.
Além disso, a sensibilidade aumenta com o tempo. Em uma população de 10 mil
pessoas, por exemplo, o teste rápido mais bem avaliado do mercado, com
sensibilidade de 85% e especificidade de 99%, se usado após três semanas da
infecção, pode gerar 1 500 falsos negativos e 100 falsos positivos. Os falsos
negativos, se mal interpretados, podem dar uma falsa sensação de segurança para
a pessoa, que se não for bem orientada, pode relaxar medidas de segurança e de
isolamento.
Auxiliar no diagnóstico hospitalar: podem ser
úteis. Considerando que muitos hospitais não dispõem de RT-PCR, e que a pessoa
internada apresenta sintomas, diagnóstico clínico, e provavelmente, alta taxa de
anticorpos, o teste rápido poderia ser utilizado para confirmar o diagnóstico.
Neste caso, a informação é necessária para gerar dados sobre a real taxa de
internação e mortalidade.
Liberar individualmente pessoas da quarentena: perigosos.
Nesse caso, os falsos positivos podem sentir-se seguros quando, na verdade, nem
têm anticorpos. E mesmo no caso dos que realmente são positivos, ainda não
sabemos o suficiente para tomar a decisão. Ainda precisamos compreender se
esses anticorpos realmente atacam o vírus com sucesso, e
se a imunidade é duradoura.
Medir imunidade de rebanho: pode
ser úteis, mas não agora. Enquanto a curva da doença está em sua fase
exponencial, pouca gente tem anticorpos e o teste vai gerar uma resposta
imperfeita. Quem quiser um exemplo numérico bem dramático do tipo de distorção
que os falsos positivos ou negativos podem causar deve visitar o blog do médico Ricardo Schnekenberg. Além disso: como
os testes de farmácia serão pagos, com custo médio estimado em 200 reais, esta
parcela específica não será representativa da população.
A intenção aparente
do governo federal, de apostar nesta ferramenta para embasar “cientificamente” o
relaxamento da quarentena, é preocupante. Instrumentos científicos
só são bons guias de políticas públicas quando reconhecemos e respeitamos suas
limitações.
*Natalia Pasternak é
pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, presidente do
Instituto Questão de Ciência e coautora do livro “Ciência no Cotidiano”
(Editora Contexto). Este conteúdo foi publicado originalmente na Revista
Questão de Ciência.
Fique
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