Regina, a má
Deco Costa*
“Na humanidade não
para de morrer. Se você fala em vida, do outro lado morte”. Parece uma reflexão
retirada de um livro filosófico, uma busca profunda sobre os valores e os
mistérios que nos cercam, mas não. A reflexão é, na verdade, um insulto, um
deboche, com direito a cantarolar o “Pra Frente Brasil” dos governos militares.
E vem, incrivelmente, da atual secretária de Cultura, de uma atriz, da
“namoradinha do Brasil”, de quem na maior parte da sua carreira foi associada
aos papéis da “mocinha”. Entretanto, a vilã da vida real, deixou as suas muitas
personagens apenas como um espelho do que poderia ser, sem ser.
Não conheço
pessoalmente a secretária de Cultura, só pela televisão. A vi pela primeira vez
como a “Rainha da Sucata”, no começo dos anos 90. Época da lambada. O país
recém ingresso num período democrático, após duas décadas ditatoriais, elegia
novamente um presidente civil de forma direta. A teledramaturgia era o que
seria hoje os seriados da Netflix para os mais novos. Gostássemos ou não, era
um conteúdo genuinamente nacional de forte ligação com a sociedade brasileira.
E a atriz ou o ator que aparecia sempre sorrindo ganharia sempre a simpatia do
público, como se aquele papel interpretado fosse a própria pessoa na vida real.
Se a então
“namoradinha do Brasil” dissesse que não comentaria as mortes de Moraes
Moreira, Rubem Fonseca, Aldir Blanc e Flavio Migliaccio, com receio de “não
virar obituário”, certamente iriam achar que ela estaria fazendo um papel de
vilã numa novela em que interpretava uma secretária da Cultura num governo
tresloucado. Diriam até que ela não combinaria com o tal papel.
Mas, dessa vez, não
existe papel ou interpretação. É ela. Sendo e dizendo não o que tem no script,
mas o que de fato pensa. Dizer estar interpretando uma personagem de um governo
irresponsável, não cola. A atuação, dessa vez, é própria vida real. As mortes
que ela faz pouco caso são de verdades. Enquanto ela ri cantarolando hino
ufanista de ditadura, pessoas são torturadas por um vírus e por um governo que
faz dessa pandemia um folhetim só de capítulos ruins, sem previsão de quando a
parte boa chegará.
Aliás, essa novela
repleta de capítulos tristes desde 1º de janeiro de 2019, talvez não precisemos
assistir até 31 de dezembro de 2022. Não somos só espectadores, somos também
atrizes e atores que podemos atuar e transformar a realidade.
Se eu soubesse, aos
meus sete anos de idade, que Maria do Carmo que sofreu tanto de amor por Edu,
faria o papel da secretária de Cultura Regina Duarte e sofreria tanto de amor
por Jair Bolsonaro, teria dançado menos lambada na abertura da “Rainha da
Sucata” e teria lamentado mais o futuro por trás das cortinas. A “namoradinha
do Brasil” resolveu casar com um país autoritário, fascista e desumano. Um país
que ignora os seus artistas, despreza a sua população morrendo da “gripezinha”
e debocha da quarentena com o presidente marcando churrasco e escondendo o
resultado do seu exame.
Nas eleições de 2002,
ela disse ter medo do país se tornar mais inclusivo e menos desigual, hoje o
medo é nosso: de alguém que faz parte de um governo que se transforma
diariamente num grande e triste obituário. O medo dessa pessoa fora do palco,
mas no Planalto. Uma novela real em que a mocinha deu lugar a vilã, sem textos
produzidos, com falas próprias e não do papel de que vai se interpretar. Regina
Duarte é uma pessoa má.
*Professor e advogado, mestre e doutorando em Direito pela Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE).
Fique
sabendo https://bit.ly/2Yt4W6l
Leia mais https://bit.ly/2Jl5xwF
Nenhum comentário:
Postar um comentário