Veja os crimes atribuídos a Bolsonaro pela CPI da Covid e o
que pode acontecer com o presidente
Relatório de comissão indica que
presidente cometeu crimes comuns, com pena de prisão, além de crimes da Lei de
Impeachment e contra a humanidade
Renata Galf e Géssica Brandino,
Folha de S. Paulo
O relatório
final da CPI da Covid, aprovado nesta
terça-feira (26), aponta Jair Bolsonaro como um dos principais
responsáveis pelo agravamento da pandemia no país e sugere que o presidente
seja responsabilizado e investigado por nove crimes.
Na lista, há
crimes comuns, previstos no Código Penal; crimes de responsabilidade, previstos
na Lei de Impeachment, e crimes contra a humanidade, previsto pelo Estatuto de
Roma.
Saiba quais
são os crimes apontados e o que pode acontecer com o presidente.
O que
acontece com as propostas de indiciamento da CPI?
Uma CPI não
tem poder de denunciar nem de punir ninguém. O encaminhamento
das sugestões e conclusões da comissão dependerá dos órgãos
competentes.
No caso de
crimes comuns do presidente, por exemplo, uma eventual responsabilização
dependerá de ação do procurador-geral da República, Augusto Aras.
Já no caso do
crime de responsabilidade, o primeiro passo depende do presidente da Câmara dos
Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Em relação aos crimes contra a humanidade, a
responsabilização dependeria do Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia.
Ao final de
cada bloco, são explicados os trâmites em cada um desses casos.
CRIMES COMUNS
1.CRIME DE EPIDEMIA COM RESULTADO DE MORTE
Art. 267 do Código Penal: Causar epidemia, mediante a
propagação de germes patogênicos
Pena: reclusão, de dez a quinze anos
§ 1º - Se do fato resulta morte, a pena é aplicada em
dobro.
A conclusão de
que o presidente teria cometido tal crime foi apontada em parecer de grupo
de juristas liderado pelo ex-ministro da Justiça do governo FHC Miguel Reale
Junior.
Em fevereiro,
a PGR arquivou uma representação
formulada por ex-procuradores que apontava o mesmo crime,
afirmando que a aplicação do tipo penal dependeria da possibilidade de se
encontrar e punir a pessoa que deu origem à pandemia.
O relator se
utiliza de argumentação do grupo de Reale que vai contra tal entendimento e
sustenta que o agravamento da pandemia já justificaria o enquadramento.
No parecer,
eles apontam como exemplo de jurisprudência a aplicação do crime de causar poluição,
em que não seria necessário dar início a ela, mas simplesmente atuar de modo a
agravá-la. "(...) conclui-se que "causar epidemia" significa não
apenas dar origem a uma determinada epidemia, mas também agravar, de modo
significativamente relevante, seu resultado."
2.INFRAÇÃO A MEDIDAS SANITÁRIAS PREVENTIVAS
Art. 268 do Código Penal: Infringir determinação do poder
público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:
Pena: detenção, de um mês a um ano, e multa.
A
responsabilização é sugerida por Bolsonaro provocar
reiteradas aglomerações e não utilizar máscara de proteção.
Como explicam
especialistas, esta lei é um exemplo de norma penal em branco, o que implica
que para que esteja configurada, é preciso que haja a infração de alguma
determinação. No relatório, Renan aponta diferentes leis e decretos que
Bolsonaro descumpriu em eventos públicos.
Já o parecer
do grupo de juristas da CPI argumenta ainda que o dolo (intenção) está
configurado: "o Presidente da República tinha pleno conhecimento não
apenas da situação da pandemia, das medidas preventivas obrigatórias, bem como
das determinações do poder público –tanto que, reiteradamente, as
criticava".
3.CHARLATANISMO
Art. 283 do Código Penal: Inculcar ou anunciar cura por
meio secreto ou infalível
Pena: detenção, de três meses a um ano, e multa
O relatório
indica que o presidente praticou o crime de charlatanismo ao fazer
propaganda do uso da cloroquina. "O presidente da República foi
o principal responsável pela propagação da ideia de tratamento precoce". O
documento cita uma fala de Bolsonaro, em outubro de 2020: "No Brasil,
tomando a cloroquina no início dos sintomas,100% de cura"
De acordo com
o documento, o charlatão alardeia a cura, sem se valer de respaldo científico e
que, em meio a uma pandemia, sua conduta "adquire especial gravidade, haja
vista que encontra um ambiente em que as vítimas estão na busca desesperada de
cura e portanto, se encontram em situação de maior fragilidade".
4. PREVARICAÇÃO
Art. 319 do Código Penal: Retardar ou deixar de praticar,
indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei,
para satisfazer interesse ou sentimento pessoal
Pena: detenção, de três meses a um ano, e multa
O relatório
afirma que o presidente cometeu crime de prevaricação ao deixar de comunicar
investigadores sobre as suspeitas envolvendo a importação da vacina Covaxin,
que lhe teriam sido relatadas em março de 2020 pelo irmãos Miranda. O caso veio
a público em junho, em depoimento à CPI.
Em 12 de
julho, após pedido da PGR, a Polícia Federal
instaurou inquérito para investigar tal suspeita. O procedimento foi
aberto a partir de notícia-crime apresentada por senadores da CPI ao STF e de
pressão da ministra Rosa Weber à Procuradoria.
"O
inquérito policial prometido pelo presidente da República somente foi
instaurado no dia 30 de junho de 2021, dias após os depoimentos dos irmãos
Miranda à CPI. Restam claras e comprovadas, portanto, as omissões do chefe do
Poder Executivo, do ex-Ministro Eduardo Pazuello, do ex-Secretário-Executivo
Elcio Franco e do atual ocupante da pasta da saúde, Marcelo Queiroga, condutas
que se subsumem ao tipo penal da prevaricação."
5. EMPREGO IRREGULAR DE VERBA PÚBLICA
Art. 315 do Código Penal: Dar às verbas ou rendas
públicas aplicação diversa da estabelecida em lei
Pena: detenção, de um a três meses, ou multa
No relatório,
Renan incluiu ainda o gasto do governo
com medicamentos sem eficácia científica comprovada contra a
Covid-19. como suposta prática de emprego irregular de verba pública.
O documento
afirma que, em uma fase inicial, a busca pela cura poderia se sobrepor à
obediência a normativos sobre uso de recursos públicos, mas que o presidente e
o então ministro Pazuello teriam continuado a empregar recursos "mesmo
depois de se demonstrar que a cloroquina era ineficaz no combate à
Covid-19".
O relatório
cita que a OMS (Organização Mundial da Saúde), em junho de 2020, já recomendava
a não-utilização da cloroquina e indica produção de comprimidos solicitadas
pelo governo em abril, maio e em julho. "O Presidente Bolsonaro inseriu-se
na cadeia de comando dessa prática ilícita, como autor intelectual, enquanto o
Ministro funcionou como seu operador."
6. INCITAÇÃO AO CRIME
Art. 286 do Código Penal: Incitar, publicamente, a
prática de crime:
Pena: detenção, de três a seis meses, ou multa.
O relatório
sugere que o presidente teria incitado publicamente à prática de crime ao
"estimular a população a se aglomerar, a não usar máscara e a não se
vacinar".
Para o
relator, com tais falas, Bolsonaro estaria incitando a população a infringir
determinação do poder público destinada a impedir a propagação de doença
contagiosa, que é crime de acordo com o artigo 268 do Código Penal.
O documento
cita ainda live em que o presidente incentiva pessoas a "invadirem
hospitais e filmarem para mostrar leitos vazios", neste caso os crimes
relacionados seriam os de invasão de domicílio e de colocar pessoas em perigo
de vida.
7. FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTOS PARTICULARES
Art. 298 do Código Penal: Falsificar, no todo ou em
parte, documento particular ou alterar documento particular verdadeiro:
Pena: reclusão, de um a cinco anos, e multa
Para embasar
sua teoria de supernotificação de mortes pela Covid, Bolsonaro utilizou, em
junho de 2021, um suposto relatório do TCU (Tribunal de Contas da União) que
teria concluído que 50% das mortes por coronavírus teriam sido por outras
doenças. Desmentido pelo
órgão no mesmo dia, o presidente chegou a voltar atrás.
Segundo o
relatório de Renan: "Não há dúvidas de que o Presidente Bolsonaro
falsificou parte da análise feita pelo auditor Alexandre, nele incluindo o
timbre do Tribunal de Contas da União".
De acordo com
depoimento de auditor do TCU
que teria feito a análise não oficial, o arquivo tinha sido
encaminhado por ele a seu pai via WhatsApp e não tinha a inscrição do TCU, o
que, de acordo com a CPI, "foi confirmado pela Polícia Legislativa, que
periciou o aparelho celular do auditor".
COMO FUNCIONA A PUNIÇÃO PARA CRIMES COMUNS
No caso de
eventuais crimes comuns do presidente da República, o encaminhamento cabe à
PGR, que pode instaurar um inquérito para investigar o que ainda julgar
necessário ou oferecer uma denúncia ao STF (Supremo Tribunal Federal), se
entender que há elementos suficientes.
A denúncia
somente pode ser feita pelo procurador-geral da República, cargo ocupado por
Augusto Aras. Para que o presidente seja julgado pelo Supremo, porém, é preciso
ainda o aval de 342 deputados federais.
Diante da
inação de Aras em relação a Bolsonaro, senadores temem que as investigações da
CPI acabem sendo engavetadas. Em declarações públicas, eles têm aventado a
possibilidade de, neste caso, ir direto ao Supremo por meio de uma ação penal
privada subsidiária da pública. Para tanto, dependeriam, contudo, de vítimas
dos crimes ou de seus representantes.
8. CRIME DE RESPONSABILIDADE
Art. 7º da Lei 1079: São crimes de responsabilidade
contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais:
9 - violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do
art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da
Constituição
Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade
na administração:
7 - proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo.
O relator
afirma que a minimização constante da gravidade da covid-19, assim como a
criação de mecanismos ineficazes de controle e tratamento da doença, com ênfase
em protocolo de tratamento precoce sem o aval das autoridades sanitárias
mostram que Bolsonaro atentou contra a saúde pública e a probidade
administrativa.
O documento
cita ainda falta de coordenação política, de campanhas educativas sobre a
importância de medidas não farmacológicas, o comportamento pessoal de Bolsonaro
contra essas medidas, além da omissão e o atraso na aquisição de vacinas.
A professora
de direito constitucional Carolina Cyrillo, da UFRJ (Universidade Federal do
Rio de Janeiro), afirma que a CPI conseguiu provas de que o presidente violou o
direito à saúde à população e que agora o presidente da Câmara, Arthur Lira,
enfrentará o ônus de ignorar as denúncias.
"Quando
[Bolsonaro] faz ações negacionistas da pandemia, ele coloca a vida das pessoas
em risco e os direitos de saúde como um todo em risco", diz.
COMO FUNCIONA O IMPEACHMENT
Cabe ao
presidente da Câmara, Arthur Lira, pautar o pedido de impeachment contra
Bolsonaro. Cyrillo explica que não há diferença jurídica pelo fato de a
solicitação ser feita pela CPI. Caso Lira receba o processo, é preciso ainda o
aval de 342 deputados para que ele seja autorizado. A instauração e o
julgamento ocorrem no Senado, onde é preciso o voto de 54 dos 81 senadores para
que o presidente perca o mandato.
9. CRIMES CONTRA A HUMANIDADE
Art. 7º do Decreto 4.388 - Entende-se por "crime
contra a humanidade", qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no
quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população
civil, havendo conhecimento desse ataque:
b) Extermínio
h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por
motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de
gênero (...)
k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente
grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física
ou mental
Bolsonaro é
responsabilizado pelo colapso da saúde pública em Manaus, capital do Amazonas,
com a falta de oxigênio em hospitais que causou a morte de pacientes. Também é
citada a disseminação de um protocolo clínico com medicamentos para tratamento
precoce por uma comitiva do Ministério da Saúde no local.
Renan também trata da distribuição do chamado 'kit Covid' a pacientes da rede
Prevent Senior, além de testes feitos em pessoas internadas em unidades
hospitalares sem autorização prévia.
O presidente
responde ainda por ataques contra a população indígena, "por meio de uma
política de Estado de adoção de medidas concretas e de omissões deliberadas que
resultaram no número de contaminações e de mortos proporcionalmente superior ao
que atingiu as populações urbanas".
A ex-juíza do
Tribunal Penal Internacional, Sylvia Steiner, que fez parte da comissão de
juristas que formulou um parecer com sugestões de tipificações para a CPI, diz
que o objetivo foi demonstrar que há crime contra a humanidade quando ocorre um
ataque generalizado ou sistemático contra a população civil.
"A soma
de medidas ou de omissões em relação à prestação de serviço de saúde pública
tanto às comunidades indígenas, como, mais especificamente, à população do
Amazonas e da região da Grande Manaus, pode ser entendida como um ataque na
medida em que houve uma política deliberada de deixar de dar assistência",
diz.
COMO FUNCIONA A PUNIÇÃO
Tipificados
pelo Estatuto de Roma, os crimes contra a humanidade são julgados pelo TPI.
Para que isso ocorra, Steiner explica que o relatório da CPI deve ser
comunicado à corte, que dá início a uma fase preliminar, que dura pelo menos um
ano, e na qual é avaliado se o crime é de competência da corte, se ele já está
sendo investigado e se ele tem gravidade suficiente.
Se for esse o
caso, a investigação é aberta, podendo resultar na denúncia e, se esta for
aceita, no julgamento do acusado.
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