Lei
do Teto, ou como transformar a economia em um jacaré
Quando a economia está desaquecida,
não há o repasse. Simplesmente porque não é a mera emissão de moeda que gera a
inflação, mas as condições objetivas na ponta
Luís Nassif, Jornal GGN
Anos atrás, o
programa do Gugu, no SBT, trouxe uma falsa entrevista com um membro do PCC. Nele,
o suposto miliciano ameaçava o governador do Estado e outras autoridades.
Descobriu-se que a entrevista era uma montagem. O programa foi autuado em cima
de uma lógica férrea:
1. Se fosse notícia falsa, espalharia o pânico em cima
de uma falsificação.
2. Se fosse verdadeira, concretizaria a chantagem.
De fato, a chantagem só se consuma quando há a
publicidade da chantagem. Porque a chantagem é uma ameaça e, no caso do PCC, a
ameaça dependia diretamente da publicidade recebida.
Mal comparando, é o que ocorre com o terrorismo em
torno da Lei do Teto.
Hoje, na primeira página de O Globo, há uma ameaça
estendida.
A notícia tem hierarquia. Títulos, chamadas de
primeira página, têm peso muito maior, ou seja, impactam muito mais o público,
do que o conteúdo em si.
Como se sabe, o governo Macri, na Argentina, eleito
sob aplauso geral do mercado e da mídia, levou o país a uma crise imensa,
especialmente devido à escassez de divisas externas. A Argentina quebrou por
falta de dólares, o que levou a uma explosão do câmbio que gerou uma enorme
inflação e desarranjou o tecido econômico e social do país.
A analogia com o Brasil não se sustenta já que o
país, desde o governo Lula está sentado em cima de reservas cambiais robustas
que preveniram as crises recorrentes desde os anos 80. Então, como estabelecer
essa comparação?
Simples: recorre-se ao “suponhamos que” e estará
resolvido. Suponhamos que o ponto inicial da crise da Argentina foi o
descontrole fiscal e, pronto!, já podemos montar nossa analogia.
Um parágrafo interno do artigo ameniza a manchete.
“Isso não significa que o Brasil vá quebrar como a
Argentina em tão pouco tempo, mas indica que há uma tendência de deterioração
fiscal que pode acabar em descontrole, como no caso argentino, e com a
consequente ruína política do presidente”.
A mensagem do PCC era a de que “ou solta nossos
líderes ou mataremos todos”. A mensagem do “mercado” é, ou respeita o Teto ou
haverá o destino manifesto de repetir a Argentina de Macri. E sua voz chegou ao
poder através da pitonisa Malu.
Pouco importa se o manifesto do PCC é falso
ou se não há relação causal entre estouro do teto e inflação. O que importa é o
efeito da ameaça, que não será amenizada por um parágrafo com três linhas. É a
mesma coisa que o jacaré da vacina, de Bolsonaro. Se o distinto público
acreditar, pouco importa se a relação é falsa. Basta acreditar, para se atingir
o efeito de fugir da vacina.
No
caso da Lei do Teto, se não houvesse a chantagem explícita da mídia, não
haveria efeito nenhum sobre a inflação.
O jogo da inflação
Vamos
por partes, para entender o jogo.
Qualquer
teoria, para ser correta, precisa passar pela “prova do pudim”. Isto é,
conferir o que se passa no mundo real, se os agentes se comportam como a teoria
preconiza.
Há
três universos a serem analisados: o das moedas em circulação, o da dívida
pública e o dos bens e salários da economia. Para financiar o estouro do teto,
o governo tem dois caminhos:
1. ou emitir mais moeda ou
2. emitir mais títulos.
No primeiro caso, o governo não paga juros; no
segundo caso, paga.
Vamos ao segundo esqueminha: os três mecanismos que
pressionam os preços, provocando inflação.
Mecanismo 1 – Custos de produção.
Mecanismo 2 – Demanda.
Mecanismo 3 – Expectativas.
Para emitir mais títulos, o governo aumenta os
juros. Aumentando os juros, aciona o Mecanismo 1, o dos
custos.
Vamos a uma continha bem simples para exemplificar.
Uma empresa gasta R $500 para produzir, R $1.000
para adquirir matéria prima. Como precisa adquirir a matéria prima antes de
receber pela venda, toma crédito para capital de giro. Se paga 2% ao mês e o
giro do estoque é de 3 meses, o custo será de R$ 61,21. E o custo final será de
R$ 1.561,21.
Caso a taxa de juros aumente para 4% ao mês, o
custo financeiro aumentará para R $124,86 e o custo final para R
$1.624,86.
Suponhamos que sua margem de lucros seja de 10% e
ela produza 1.000 produtos. No primeiro caso, o preço final será de 1,72; no
segundo, de 1,79, um aumento de 4,08% unicamente devido ao fator financeiro.
Obviamente não somamos os aumentos das matérias primas também influenciadas
pelo custo financeiro.
Aí se entra no Mecanismo 2, a demanda. Ou seja, será que haverá consumidores em condições de pagar por esse aumento?
Se não houver, a única alternativa será reduzir a margem
de lucro do produtor. Ela terá que cair para 6,08% para manter o mesmo preço do
produto. Se não for suficiente, terá que derrubar mais ainda a margem. Se,
ainda assim, não conseguir vender, quebra.
Pior: essa reação à alta de juros não se restringe à
empresa em si, mas a toda a economia. Devido ao aumento de juros, toda a
economia estará pior do que no momento anterior. Então não basta voltar aos
preços do Momento 1 para conseguir colocar seus produtos. O desconto terá que
ser maior, ou então, não se vende.
E ainda não se incluiu na história o Mecanismo
3, as expectativas. Incluindo, viramos todos jacarés.
Eu sei que não há demanda para alta de preços. Mas
se o jornal diz que os preços vão aumentar, se eu não antecipar meus aumentos,
serei apanhado no contrapé e não conseguirei repor os estoques. Quanto mais
vender, maior será o meu prejuízo na hora de repor os estoques.
Quando Malu Gaspar diz que o estouro da Lei do Teto
levará o Brasil a repetir a Argentina, pouco importa se a afirmação tem ou não
base científica. Se a maioria acreditar, a profecia se realiza. E irão tratar
de aumentar seus preços, mesmo vendendo menos, simplesmente porque acreditam
que todos os preços estarão mais altos quando for repor os estoques. Então
preferem aumentar os preços – e vender menos – do que manter os preços e as
vendas.
Os juros e o jacaré da vacina
Assim como a vacina não torna as pessoas jacaré, a
emissão de moedas não gera inflação em si. Sem a intervenção de Malu Gaspar,
isso só ocorreria nas seguintes circunstâncias:
1. A economia já está aquecida.
2. A emissão provoca uma expansão no crédito, de
empresas querendo ampliar ainda mais a produção.
3. Com a economia aquecida, a ampliação da produção
aquece mais ainda, impacta os salários e as matérias primas gerando inflação. E
por que a inflação? Justamente porque, por suposto, a economia está aquecida,
isto é, vendendo muito e permitindo o repasse dos preços.
Quando a economia está desaquecida, não há o
repasse. Simplesmente porque não é a mera emissão de moeda que gera a inflação,
mas as condições objetivas na ponta: isto é, a presença ou não de consumidores
em condições de comprar produtos com preços reajustados. A não ser no caso da
profecia auto-realizada da Malu Gaspar.
E quem pratica essas altas? Especialmente as
empresas que têm poder de mercado.
Em suma, há uma enorme discussão teórica sobre os
(não) efeitos da emissão de moedas sobre a inflação, em economias desaquecidas.
Assim como uma enorme discussão científica entre vacinas e hidroxicloroquina.
Quando a discussão transborda para a discussão
leiga da mídia, todos viramos jacarés.
Em 1929, o velho Joseph Kennedy dizia que, quando o
engraxate de Wall Street começou a dar palpites de ações, a explosão estava
próxima. No caso brasileiro, quando a Lei do Teto transborda até para as
colunas políticas é hora de se pensar na diferença entre ciência e crendice.
Aqui em poucas palavras a gente se entende https://bit.ly/3mlWMJ0
Nenhum comentário:
Postar um comentário