“Há racismo no Brasil?”, por José Carlos Ruy
Nos marcos da celebração do Mês da
Consciência Negra, o Vermelho está publicando em partes a obra
póstuma de Ruy, que é inédita.
André Cintra, portal Vermelho
Leia a seguir o ensaio “Há racismo no Brasil?”, primeiro capítulo do livro homônimo do escritor e jornalista José Carlos Ruy (1950-2021). Nos marcos da celebração do Mês da Consciência egra, o Vermelho divulga a obra póstuma de Ruy, que é inédita. Será publicado um capítulo do livro por dia entre 20 e 30 de novembro. Confira.
Cap 1 – Há racismo no Brasil?
Embora
haja consenso sobre a gravidade da opressão sofrida por negros e outros
segmentos não brancos da população brasileira, há quem a encare como resultado
apenas do domínio de classe, da pobreza e da falta de preparo cultural e
educacional – que impediriam o acesso dessa população a níveis mais elevados de
renda e bem-estar – reduzindo ou negando a importância do racismo.
Muitas
vezes essa avaliação resulta da comparação entre a situação brasileira e a de
outros países onde existem conflitos raciais e étnicos explícitos. Mas é
preciso analisar o assunto com mais cuidado, lembrando o alerta feito por Marx
de que toda ciência seria desnecessária se houvesse coincidência entre essência
e aparência.
O
racismo, em todos os lugares onde ocorre sempre tem como base a crença de que
alguns grupos humanos seriam superiores e destinados ao domínio, enquanto
outros seriam inferiores e destinados a servir àqueles em consequência de
características físicas (pele, cabelo, olhos, nariz, formato do crânio etc) ou
culturais (religião, língua etc).
Contudo,
embora esteja baseado neste fundamento comum, o racismo manifesta-se de maneira
diferente de lugar para lugar, época para época, condicionado pelas
circunstâncias históricas concretas da trajetória de cada povo ou país.
Em
todos os lugares o racismo parte daquela base comum para legitimar ou
justificar a desigualdade e a opressão. A valorização maior ou menor das
diferenças étnicas, físicas ou culturais, e a construção de sistemas sociais
onde elas têm papel fundamental e determinante na legitimação do domínio de um
grupo de homens sobre a maioria não decorre somente da cultura ou da psicologia
de um povo mas das condições concretas de sua evolução histórica e social que,
elas sim, estão na base da formação das características nacionais e, no caso do
racismo, de suas singularidades em cada lugar.
Só o
exame concreto da questão racial no Brasil pode revelar as singularidades do
racismo brasileiro, que é diferente do racismo norte-americano, por exemplo, ou
do sul africano, ou o de qualquer outro lugar, cada um deles com suas
singularidades.
Entre
as características próprias do racismo brasileiro, pode-se destacar a afirmação
de que, aqui, não há racismo porque o negro conhece o seu lugar – expressão que
revela um traço fundamental dessa realidade cruel que é a discriminação racial.
No
Brasil, o racismo, após a Abolição, nunca levou a um sistema legal de
segregação racial, como ocorreu nos EUA ou na África do Sul, determinando pela
lei, a negros e mestiços, lugares próprios em locais públicos ou proibindo seu
acesso a escolas e outros locais frequentados por brancos etc.
No
Brasil uma legislação segregacionista não foi necessária porque a ordem social
segregadora está introjetada em cada pessoa, levando-a a aceitar como natural
uma separação que indica a cada um o seu lugar e que, por isso, não precisa ser
explicitada através da lei.
Naturalidade
ainda não banida de todo e que reaparece toda vez que a presença de um ser
humano de pele escura em um ambiente de brancos provoque estranheza e mesmo
manifestações de hostilidade aberta.
Outro
traço do racismo brasileiro é que ele é de marca, não de origem, expressões
usadas para descrevê-lo pelo professor Oracy Nogueira. Isto é, se uma pessoa
tiver a pele clara e outros traços físicos de branco, ela pode ser considerada
branca, ao contrário do que ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos onde o que
conta é a origem: uma pessoa que tenha até um oitavo de sangue negro (isto é,
um negro entre seus bisavôs) é considerada negra mesmo que apresente traços
físicos de branco.
A forma
brasileira de tratar a questão não é melhor nem pior, mas é igualmente racista.
Ela resulta da experiência histórica do contato entre europeus (portugueses),
indígenas e africanos em nosso país, e está na base da valorização do
branqueamento, sonho explícito da classe dominante, muito fortalecido na
passagem entre os séculos XIX e XX, e cujo racismo é ilustrado pela crença de
que a eliminação do mascavo brasileiro ou do eclipse negro (expressões usadas
por Afrânio Peixoto, na década de 1930, para designar negros e mestiços) seria
necessária para criar um povo capaz de se civilizar, condição negada a negros e
mestiços por aquelas teses racistas.
Além
disso, o Brasil foi a única nação moderna de grande porte onde a escravidão
ocupou todo o território, durante mais de três séculos, realidade que
condicionou de forma mais ou menos uniforme o comportamento das classes
dominantes e dos segmentos livres da população em relação à ameaça representada
pela presença de enormes contingentes escravizados.
Finalmente,
em nosso país, a história da luta pela liberdade é a crônica de revoluções
inacabadas. As revoluções representadas pela Independência, pela Abolição da
escravatura, República ou a revolução liberal de 1930 – apenas para citar
alguns marcos históricos usuais – significaram rompimentos incompletos com o
passado, e as velhas classes dominantes conseguiram manter-se no poder, mesmo
com a incorporação de novos personagens ao cenário da luta política.
A
Abolição, que significou o fim do estatuto que oprimia centenas de milhares de
escravizados, resultou de um processo semelhante, controlado pelo alto pelos
mesmos latifundiários e grandes comerciantes (entre os quais traficantes de
escravos) que detinham o poder sob o escravismo.
A
mudança representada pelo fim do trabalho escravo não resultou de uma revolução
de caráter democrático burguês ao fim da qual emergiriam todos – negros e
brancos – como cidadãos, com plena igualdade civil e política. E, apesar de
sancionada pela constituição republicana de 1891, a igualdade foi uma lei que
não pegou. O espírito “ancién regime”, aristocrático, permaneceu intocado e é
um obstáculo societário à plena vigência do espírito democrático burguês
sinalizado pela adoção da forma republicana de governo e ação pública. As
mesmas velhas classes dominantes continuavam no comando. E foi mantida a mesma
velha hierarquia social em que coincidiam as linhas de classe e cor, relegando
os brasileiros de pele escura aos piores lugares, aos empregos mais humildes,
desvalorizados e mal-remunerados, aos cortiços e favelas, à ausência da escola;
abandonados à marginalidade, à miséria e à ignorância.
Era o
seu lugar, o lugar do negro, sancionado pela classe dominante, pelos costumes e
pela ultrapassada ciência social do início do século XX. Nina Rodrigues,
pioneiro no estudo do negro no Brasil, escreveu, num estudo publicado em 1894
(“As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”), que os negros eram
incapazes civilmente e deviam ser equiparados, perante a lei, aos menores de
idade.
Por
isso é preciso repetir que há racismo no Brasil, e seu registro é renovado a
cada divulgação de um novo censo ou novo levantamento de dados sobre a situação
social do povo brasileiro, e que revelam invariavelmente a situação de opressão
dos negros e mestiços, sempre nas piores situações de renda, emprego, educação,
saúde, moradia etc. Racismo que não só existe, mas é tão cruel quanto o racismo
em qualquer outra parte do mundo.
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Veja: Você dá mote e a gente comenta https://bit.ly/2YS51Di
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