Se ligue, meu irmão!
Cícero Belmar*
Qualquer produção
de artista brasileiro consciente, de 2016 para cá, tende a ser engajada. Não
porque vivemos em tempos de polarização política. Mas, por uma questão lógica:
é impossível que alguém que tenha a sensibilidade como condutora da expressão
artística não proponha esse diálogo da arte com a realidade. Simples assim.
Com três semanas
em cartaz, Marighella é um filme engajado. Ele estreou no Brasil no dia quatro
deste mês, aniversário da morte de Carlos Marighella. Havia dois anos foi
aplaudido de pé no Festival de Berlin, enquanto que, no Brasil, com a Gerência
das Milícias, enfrentou uns perrengues. Veio a fase mais aguda da pandemia e
ele ficou sem espaço para estrear.
O longa foi
rodado em 2016. Quem não viu, procure assistir a esse filmaço. Desconheço quem
saiu da sala do cinema apontando um defeito. Dirigido pelo também ator Wagner
Moura, conta a história dos últimos anos de vida de uma das grandes lideranças
da luta armada contra a ditadura militar brasileira, nos anos 1960.
Ao dirigir o
filme, Wagner Moura, do seu modo, protesta contra o que ele acha que estava
(está) errado. Por isso, é uma arte engajada. É um protesto e é uma denúncia de
um tempo histórico, alinhavados pelo fazer artístico do diretor. Fala do
passado, mas a sensação que dá é de que está falando dos dias atuais.
A arte engajada
não quer dizer que seja didática do ponto de vista “formativo”. De fazer a
cabeça. Também não significa que ela proponha obrigatoriamente uma intervenção
na realidade. Mas, ela faz sim um diálogo com o mundo real e nos propõe uma
reflexão sobre a verdade.
Fazer pensar é
transgressor. Qualquer arte, engajada ou não, redimensiona o nosso olhar. Mas,
o resultado dessa reflexão não é da responsabilidade do artista.
Citei 2016 logo
no comecinho desse texto porque foi o ano do impeachment da presidenta Dilma. O
sentimento de injustiça foi grande e o artista que viveu o clima e se sentiu
atingido naquele instante (e a partir dali), com certeza transferiu esta emoção
para o seu trabalho.
Por exemplo, o
filme Bacurau. Ele tem a ver com essa emoção, com essa revolta. Claro que o
diretor Kleber Mendonça Filho não mostrou no seu filme que um grupo de
políticos extremamente corruptos se uniu para afastar uma presidenta honesta, a
pretexto de “combater a corrupção”. Mas o diretor expressou sua indignação de
outro jeito, na ficção.
Esse mesmo
compromisso com a realidade levará os artistas a falarem da pandemia da
covid-19 em tudo o que foi escrito, filmado, pintado, elaborado artisticamente
de 2020 para cá. E onde entra o engajamento desse tempo? Na citação dos
desastres políticos e da má gestão da saúde, que agravaram ainda mais o nosso
sofrimento.
Arte engajada não
é nada mais do que falar do nosso sofrimento político e social dentro de um
contexto histórico. Há umas pessoas que a condenam, dizem que ela é datada,
efêmera etc e tal. São as mesmas pessoas que afirmam que arte é arte e
realidade é realidade.
De minha parte,
acho que não existe arte sem conexão com a realidade. O que justifica a arte,
no meu entendimento, é a experiência humana. E é assim na literatura, no
cinema, no teatro, na moda. Sem essa consciência da realidade social, não há
arte. Podem me apedrejar.
Nesses tempos
bicudos, a arte engajada vira tendência. Nas décadas de 1960 e 1970 havia uma
literatura engajada no Brasil, de alto nível. A exemplo de Ferreira Gullar,
Ignácio de Loyola Brandão, Antônio Callado. Em ditaduras passadas, Graciliano
Ramos, Euclides da Cunha e Jorge Amado.
Na moda dos anos
1970, a estilista Zuzu Angel dirigiu um desfile, nas passarelas cariocas, para
protestar contra o regime militar. O teatro do Oprimido, de Augusto Boal, era
de protesto. Engajadíssimo. Chico Buarque e Vandré fizeram grandes música de
quê?
A arte engajada é
cúmplice da construção da memória. Obras como o filme Marighella são uma
necessidade para a gente não deixar “o futuro repetir o passado”. Com talento e
criatividade, esse estilo de arte alerta: “Se ligue, meu irmão, sobre o que
está acontecendo ao seu redor!”.
*Cícero Belmar é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros paroesia em suas múlta crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras.
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