13 janeiro 2022

O mar que nos cerca

Lembrança do mar

Valéria Santos*      

                                

Não gosto dos dias de domingo. Não agora. Quando eu era criança, amava os domingos. O dia mais espichado da semana. Era tanta diversão, e tudo cabia no domingo. Se o dia tivesse uma cor, os domingos da minha infância eram da cor do sol. Sim. amarelos e salpicados de poeira. Aquela poeira boa que as brincadeiras borrifavam no ar. Acho que estou meio poética hoje. Só que, nos tempos de coronavírus, todos os meus dias foram espichados, sem a cor ensolarada de minha infância.

Hoje é terça, mas parece domingo. Choveu logo de manhã, e o céu continua da cor das cinzas de um cigarro sempre aceso. Não gosto de cinza. É a cor da tristeza. Dizem que nos países frios, como a Suíça, por exemplo, as pessoas são meio tristes. O Brasil ficou meio triste também. Mesmo quando a cor do céu coincide com a do mar, há uma tristeza sobrevoando e pousando no semblante das pessoas.

Sinto saudade do mar. Eu devia ter ido mais à praia, antes da pandemia. O mar sempre me acalmou. Na minha adolescência, especificamente nos meus dezesseis anos, a voz do mar, aquele som característico, tornou-se familiar. Eu caminhava diariamente na beira da água, sentindo as ondas lambendo minhas pernas, feito cachorrinho. O mar é afoito, é barulhento. Ele amenizou um pouco a minha solidão precoce.

Foi naquela fase da minha adolescência, na praia de Pau Amarelo, que eu encontrei na areia uma concha. Uma pequena concha. Até hoje a tenho comigo. É meu talismã. Quando me sinto apreensiva, nervosa, rezo com ela entre as mãos. Já se passaram muitos anos que eu arranquei a concha da presença constante do mar. Mas ele ainda sussurra dentro dela, ainda conta segredos, talvez declame cantigas dos tempos medievais.

Acho que isso é amor. Acho que o mar e a concha se amam de verdade. Em algum momento, ele entrou dentro dela e nunca mais saiu. Então encosto de vez em quando a concha em meu ouvido e Poseidon sussurra aquele som marinho.

Faz quase cinco anos que moro perto do rio Capibaribe. Tão oposto ao mar. Tão silencioso, o rio. Tão absorto e reservado. Parece um intelectual cercado de livros antigos. Às vezes ele incha, como diz o poeta. Ganha uma aparência úmida, redonda, até sensual. É quando o mar deságua nele as suas águas salgadas e sapecas. Há nesse encontro uma purificação. Acho mesmo uma bênção o encontro entre o mar e o rio.

Pena que o homem espalhou doenças no rio. O homem também espalhou doenças no ar. Por que o ser humano não consegue comungar inteiramente com a natureza? Há tanta paz na cantoria dos pássaros! Exceto as araras. Não vejo araras em Recife, mas quando eu morava em Goiânia, minha terra natal, as araras voavam dos galhos das árvores para o céu distante e faziam aquele barulho ensurdecedor que não chega perto do canto de um sabiá ou de um rouxinol. Deve ser porque já são muito bonitas, as araras. Devem dizer com aqueles gritos horrorosos: “Não temos talento para a música, mas somos lindas”. Também conheço muitas cantoras lindas sem o menor talento. Eita, mudei de assunto, né?

Como eu gostaria de ver o mar. Sentir a areia nos pés. Ver as pedras. Os arrecifes que divisam dois territórios. Para além dos arrecifes, o perigo. 

Ah, se pudesse ser assim.... Se o vírus estivesse para além dos arrecifes! Mas o homem deixou-o entrar. Não demarcou território. Não protegeu nossas fronteiras. Não protegeu o povo brasileiro.

Vou pegar a minha concha. Quem sabe o mar declame alguma poesia que me faça sentir melhor nesta terça-domingo.

[Iustração: Ivan Aivazovsky]

*Professora, cronista

Veja: A poesia em seus lugares e cores https://bit.ly/3BKdwhd

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