Lembrança do mar
Valéria Santos*
Não gosto dos dias de
domingo. Não agora. Quando eu era criança, amava os domingos. O dia mais
espichado da semana. Era tanta diversão, e tudo cabia no domingo. Se o dia
tivesse uma cor, os domingos da minha infância eram da cor do sol. Sim. amarelos e salpicados de poeira. Aquela poeira boa que as brincadeiras borrifavam
no ar. Acho que estou meio poética hoje. Só que, nos tempos de coronavírus,
todos os meus dias foram espichados, sem a cor ensolarada de minha infância.
Hoje é terça, mas
parece domingo. Choveu logo de manhã, e o céu continua da cor das cinzas de um
cigarro sempre aceso. Não gosto de cinza. É a cor da tristeza. Dizem que nos
países frios, como a Suíça, por exemplo, as pessoas são meio tristes. O Brasil
ficou meio triste também. Mesmo quando a cor do céu coincide com a do mar, há
uma tristeza sobrevoando e pousando no semblante das pessoas.
Sinto saudade do mar.
Eu devia ter ido mais à praia, antes da pandemia. O mar sempre me acalmou. Na
minha adolescência, especificamente nos meus dezesseis anos, a voz do mar,
aquele som característico, tornou-se familiar. Eu caminhava diariamente na
beira da água, sentindo as ondas lambendo minhas pernas, feito cachorrinho. O
mar é afoito, é barulhento. Ele amenizou um pouco a minha solidão precoce.
Foi naquela fase da
minha adolescência, na praia de Pau Amarelo, que eu encontrei na areia uma
concha. Uma pequena concha. Até hoje a tenho comigo. É meu talismã. Quando me
sinto apreensiva, nervosa, rezo com ela entre as mãos. Já se passaram muitos
anos que eu arranquei a concha da presença constante do mar. Mas ele ainda
sussurra dentro dela, ainda conta segredos, talvez declame cantigas dos tempos
medievais.
Acho que isso é amor.
Acho que o mar e a concha se amam de verdade. Em algum momento, ele entrou
dentro dela e nunca mais saiu. Então encosto de vez em quando a concha em meu
ouvido e Poseidon sussurra aquele som marinho.
Faz quase cinco anos
que moro perto do rio Capibaribe. Tão oposto ao mar. Tão silencioso, o rio. Tão
absorto e reservado. Parece um intelectual cercado de livros antigos. Às vezes
ele incha, como diz o poeta. Ganha uma aparência úmida, redonda, até sensual. É
quando o mar deságua nele as suas águas salgadas e sapecas. Há nesse encontro
uma purificação. Acho mesmo uma bênção o encontro entre o mar e o rio.
Pena que o homem
espalhou doenças no rio. O homem também espalhou doenças no ar. Por que o ser
humano não consegue comungar inteiramente com a natureza? Há tanta paz na cantoria dos pássaros!
Exceto as araras. Não vejo araras em Recife, mas quando eu morava em Goiânia,
minha terra natal, as araras voavam dos galhos das árvores para o céu distante
e faziam aquele barulho ensurdecedor que não chega perto do canto de um sabiá
ou de um rouxinol. Deve ser porque já são muito bonitas, as araras. Devem dizer
com aqueles gritos horrorosos: “Não temos talento para a música, mas somos
lindas”. Também conheço muitas cantoras lindas sem o menor talento. Eita, mudei
de assunto, né?
Como eu gostaria de
ver o mar. Sentir a areia nos pés. Ver as pedras. Os arrecifes que divisam dois
territórios. Para além dos arrecifes, o perigo.
Ah, se pudesse ser assim....
Se o vírus estivesse para além dos arrecifes! Mas o homem deixou-o entrar. Não
demarcou território. Não protegeu nossas fronteiras. Não protegeu o povo
brasileiro.
Vou pegar a minha
concha. Quem sabe o mar declame alguma poesia que me faça sentir melhor nesta terça-domingo.
[Iustração: Ivan Aivazovsky]
*Professora, cronista
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