Desigualdades digitais e educação
Renata
Mourão Macedo e Carolina Parreiras
Núcleo de
Estudos sobre os Marcadores Sociais da Diferença (Numas), Universidade de São
Paulo
Ciência Hoje
Em março de 2020, com o anúncio no Brasil do fechamento repentino das
escolas devido à pandemia da covid-19 e à necessidade de isolamento social, o
tempo hábil para organizar a continuidade do ano letivo foi curto. Nas escolas,
em meio a muitas dúvidas, iniciou-se um debate sobre o ensino remoto e suas
consequências: ao adotar atividades escolares on-line, ainda que de
forma emergencial, o ensino seguiria sendo um direito, ou se tornaria um
privilégio reservado apenas a grupos específicos de estudantes?
Há muito se discute no Brasil o
quanto a educação é, de fato, um direito. O educador e jurista brasileiro
Anísio Teixeira (1900-1971) trouxe tal questionamento já no final dos anos
1950: “educação não é privilégio”, afirmara o autor ao defender a educação como
um direito, lutando pela universalização da escola pública gratuita e de
qualidade no país.
Nas duas últimas décadas do século 20, com a Constituição de 1988
e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, a educação no país passou a
ser formalmente garantida como “direito de todos e dever do Estado e da
família”. No entanto, inúmeras pesquisas, ano a ano, constatam as enormes
desigualdades educacionais que assolam o país, tanto no ensino básico quanto no
ensino superior. Apesar de alguns avanços recentes na democratização das
instituições educacionais, ainda temos um sistema de ensino desigualmente
marcado por critérios de raça, classe e gênero entre estudantes, assim como por
diferenças regionais.
Apesar de alguns avanços recentes na democratização
das instituições educacionais, ainda temos um sistema de ensino desigualmente
marcado por critérios de raça, classe e gênero entre estudantes, assim como por
diferenças regionais
Se tais desafios não são novos, com a eclosão da pandemia de coronavírus em 2020 e o consequente fechamento do espaço físico das escolas, tais mecanismos de criação e reprodução de desigualdades se mostraram ainda mais atuantes. Diversos operadores de diferenciação social se acentuaram, aumentando as distâncias educacionais entre escolas públicas e privadas, ricos e pobres, “herdeiros” e “não herdeiros”, como diria o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002). Para além do quadro já existente, somaram-se às desigualdades educacionais e sociais as chamadas desigualdades digitais.
Inclusão e exclusão digital
Vale ressaltar que as desigualdades digitais,
no geral, refletem, reproduzem ou espelham desigualdades sociais mais amplas,
já se constituindo desde o final do século 20 como mais um lócus de
estratificação social no Brasil. Há algum tempo, são corriqueiros debates sobre
inclusão e exclusão digital ou sobre divisões digitais, ressaltando o caráter
altamente desigual do acesso, do uso e do aproveitamento das possibilidades
oferecidas pelas tecnologias de informação e comunicação.
Conforme diferentes estudos indicam, as
desigualdades digitais apresentam forte correlação com critérios de renda e
classe social, além da articulação com outros marcadores sociais da diferença,
como cor/raça, gênero, idade e território. Embora a internet tenha se
disseminado no Brasil no final dos anos 1990 entre as classes média e alta, foi
apenas nos anos 2010 que se popularizou, especialmente por meio dos celulares,
de custo bem mais baixo que o de computadores, do aumento do uso de redes de
conexão 3G/4G e de maiores
investimentos governamentais em infraestrutura e iniciativas como o Programa
Nacional de Banda Larga (PNBL), iniciado em 2010. Ainda assim, o Brasil segue
marcado por intensas desigualdades digitais.
Dados da pesquisa TIC (Tecnologias da
Informação e Comunicação) Domicílios de 2019 apontaram que 20 milhões de
domicílios brasileiros não possuíam internet (28% da quantidade total). Ao
fazermos a intersecção com classe, apareciam desigualdades muito expressivas:
enquanto nas classes econômicas A e B a presença da internet beirava os 100% em
2019, nas classes D e E, o acesso caía para 50%. Em relação à posse de
equipamentos, as desigualdades também eram grandes: nas classes A e B, a posse
de computador era um item frequente (95% e 85%, respectivamente); já nas
classes D e E, a presença do computador caía para 14%.
Ao fazermos a intersecção com classe, apareciam
desigualdades muito expressivas: enquanto nas classes econômicas A e B a
presença da internet beirava os 100% em 2019, nas classes D e E, o acesso caía
para 50%
O TIC Domicílios 2020, realizado já durante a pandemia e com uma metodologia de pesquisa adaptada às condições impostas pela mesma, aponta um aumento de domicílios e usuários conectados, mas mostra também a persistência de desigualdades de acesso, especialmente nas classes D e E. O celular continua sendo o dispositivo de conexão mais utilizado, sendo que nas classes D e E ele representa o único meio de acesso disponível para 90% dos usuários. Comparativamente, esse número cai para 11% na classe A e para 25% na classe B. Ainda assim, os dados mostram um crescimento expressivo do acesso à internet nos domicílios das classes C e D/E (figura 1).
No Brasil, embora diferentes
políticas educacionais, como o Plano Nacional de Educação 2014-2024, prevejam a
ampliação da conectividade e do uso de tecnologias digitais no processo
educacional, pesquisas indicam grandes desigualdades. Dados da pesquisa TIC
Educação, cujo objetivo é compreender o acesso, o uso e a apropriação das TICs
em escolas privadas e públicas brasileiras, são reveladores desse cenário.
Nesse levantamento, em 2019, apenas 14% das escolas públicas
declararam utilizar alguma plataforma ou ambiente virtual de aprendizagem,
número que chegava a 64% nas escolas particulares, apontando então para
diferença muito expressiva entre a rede pública e a rede privada. Outro dado
relevante destacado em 2019 era a baixa formação de professores para
tecnologias digitais, revelando que apenas 33% tiveram algum tipo de formação
para uso do computador e da internet para atividades escolares.
Já o TIC Educação 2020, realizado também durante a pandemia, apresenta dados mais detalhados. Aponta, por exemplo, que apenas 21% das escolas (públicas e privadas) ofereciam atividades remotas antes da pandemia. Além disso, dentre os maiores desafios encontrados para a realização de atividades pedagógicas durante a pandemia aparecem como os mais apontados: dificuldades de pais/responsáveis para apoiar os/as alunos/as (93%) e a falta de dispositivos tecnológicos para acesso (86%).
Letramento digital
Além do acesso à internet e da posse de equipamentos digitais
adequados, o chamado ‘letramento digital’ também é um fator de desigualdade,
uma vez que nem todos os usuários têm intimidade com as tecnologias –
dispositivos, redes de conexão, aplicativos, plataformas – para saber
manejá-las corretamente. Os usos das tecnologias são muito diversos e se
relacionam com diferenças ligadas a escolaridade, capital cultural, idade, tipo
de inserção profissional, entre outras variáveis.
Saber fazer um currículo em um editor de texto on-line, organizar e catalogar correios eletrônicos ou
mesmo realizar pesquisas na internet em fontes confiáveis (desviando-se das
chamadas fake news) ainda são habilidades desigualmente aprendidas na
sociedade brasileira, tornando-se um ‘privilégio’ de alguns grupos sociais.
Tendo a educação como foco, cabe questionar, cada vez mais, a conectividade como um ‘privilégio social’, quando já poderia e deveria ser compreendida como um direito. Este, aliás, é o entendimento da Organização das Nações Unidas (ONU), que já reconheceu o acesso à internet como um direito humano universal desde 2011.
Transformações decorrentes da pandemia
Se tais desigualdades digitais já eram conhecidas no Brasil,
durante a pandemia, com a transferência do ensino presencial para o chamado
ensino remoto emergencial – que dependia de acesso aos conteúdos educacionais
por meio de equipamentos eletrônicos –, tais diferenças se exacerbaram. À
educação básica brasileira, já tão profundamente marcada por diversas formas de
desigualdade, somou-se mais um fator de iniquidade social.
Dados da Rede de Pesquisa Solidária publicados em boletim de
agosto de 2020 mostram que, entre março e julho de 2020, mais de 8 milhões de
crianças de 6 a 14 anos não fizeram quaisquer atividades escolares em casa.
Durante o mês de julho, enquanto apenas 4% das crianças mais ricas ficaram sem
qualquer atividade escolar, tal número foi de 30% entre as crianças mais
pobres. O relatório conclui: “Com a omissão do Estado no acompanhamento das
famílias mais pobres, a diferença de atividades realizadas em casa, entre
pobres e ricos, pode chegar a 224 horas, o equivalente a 50 dias letivos”.
Dados da Rede de Pesquisa Solidária publicados em
boletim de agosto de 2020 mostram que, entre março e julho de 2020, mais de 8
milhões de crianças de 6 a 14 anos não fizeram quaisquer atividades escolares
em casa
Na rede estadual de educação de São Paulo, segundo
dados do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo
(APEOESP), mesmo com a criação de um aplicativo para transmissão de aulas on-line que não consumia o pacote de internet do
usuário, apenas 27,3% dos estudantes acompanhavam as atividades, quando
mensurada a presença em alguns dias de maio e junho de 2020. No estado de São
Paulo, perto do fechamento do ano, cerca de 500 mil estudantes não entregaram
qualquer atividade, segundo reportagem do jornal Folha de S. Paulo. Mais uma vez, a falta de conectividade foi uma das
principais causas dessa perda de conexão com a escola, penalizando ainda mais
os estudantes de menor renda.
Se no estado de São Paulo foram formuladas
algumas iniciativas no setor educacional, ainda que insuficientes, no âmbito
federal o completo descaso e omissão foi o que prevaleceu, mais uma vez.
Enquanto os números de mortos pela covid-19 não paravam de subir, o governo
federal liderado pelo presidente Jair Bolsonaro minimizou a crise, atacando o
povo brasileiro por diferentes frentes.
Na educação, não foi diferente. O Ministério
da Educação, em gestão atribulada, que resultou na demissão de um ministro em
plena pandemia, recusava-se a adiar a maior prova brasileira de ingresso nas
universidades, o ENEM, afirmando, no início de maio, que o sistema educacional
“não foi feito para corrigir injustiças”. Ao contrário, o então ministro criou
uma campanha nas mídias que afirmava que, mesmo diante de pandemia, “a vida não
pode parar”, orientando todos os alunos a estudarem pela internet: “é preciso
ir à luta e se reinventar”, afirmava a campanha de manutenção da prova.
Após grande pressão popular via redes sociais, a data da prova foi redefinida. Já em setembro de 2020, o novo ministro da educação, o pastor Milton Ribeiro, disse em entrevista a um dos principais jornais do país que a questão da volta às aulas e do acesso à internet para estudos não eram atribuições de seu ministério. Ao findar o ano de 2020, apesar de alguns projetos de lei formulados no Legislativo, nenhuma política pública federal de garantia à conectividade e à educação remota para estudantes do ensino público tinha sido aprovada no país.
Crise e oportunidade
Se a pandemia e o consequente fechamento do
espaço físico das escolas representaram mais uma crise educacional no Brasil,
intensificando desigualdades, cabe também ressaltar que esse processo teve um
efeito positivo de promover a educação digital entre estudantes do ensino
básico. Como discutimos acima, o uso de TICs em escolas públicas ainda era restrito
no país. No entanto, a transferência forçada para o ensino remoto emergencial
nesse período levou professores e estudantes de diferentes idades a uma
familiaridade sem precedentes com variados recursos tecnológicos, revelando uma
faceta positiva e inesperada dessa crise.
Ainda assim, queremos enfatizar como, mais do
que nunca, durante a pandemia do coronavírus em 2020, a educação no Brasil se
tornou um privilégio, deixando milhares de estudantes sem garantia de seu
direito à educação. Nesse quadro de crise, coube a agentes diversos, como
familiares, professores e diretores de escolas públicas, encontrar soluções
criativas e paliativas para tentar manter a conexão com os estudantes que não
tinham acesso a equipamentos digitais adequados ou à internet.
Neste período atual de reabertura das escolas,
torna-se imprescindível estarmos atentos a essas diferentes formas de
desigualdade para garantir o direito à educação. Como afirmou Bourdieu,
reconhecer desigualdades no processo educacional torna-se imprescindível se não
quisermos, mais uma vez, “favorecer os já favorecidos e desfavorecer os
desfavorecidos”.
Reconhecer desigualdades no processo educacional
torna-se imprescindível se não quisermos, mais uma vez, “favorecer os já
favorecidos e desfavorecer os desfavorecidos”
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